A violência sexual à luz do conceito ampliado de segurança pública

13/08/2020

Em que pesem os danos que produz, a violência sexual tem sido negligenciada no campo acadêmico e das políticas públicas. Apenas em período recente é que se tornou objeto de debates científicos mais intensos. Também é de hoje a preocupação para com esse tipo de transgressão enquanto delito culturalmente motivado. Na esfera das evidências anedóticas, são comuns os relatos de violência praticada para a satisfação da lascívia e o confronto de narrativas se estabelece ora em defesa da vítima, ora em defesa do vitimário. Já na seara científica, conforme pesquisa realizada pelo Instituto Fiocruz, 16 milhões de brasileiras acima de 16 anos foram sexualmente vitimadas em algum período de suas vidas (BRASIL, 2019, p. 6). O objetivo deste artigo é apresentar o conceito ampliado de segurança pública e a sua relação com os direitos das vítimas em face aos crimes contra a dignidade sexual.

 

1. Liberdade e Sociedade: segurança como ratio essendi do Estado

O estudo das relações sociais é próprio a disciplinas como a filosofia, a antropologia, a sociologia e o Direito, cada qual com a sua abordagem e em suas medidas, e, definitivamente, perpassa a compreensão dos motivos que ensejam a vida em sociedade.  

Segundo Platão (428–347 a.C.), os indivíduos submetem-se à Pólis por lhes faltar autarquia, porque sua congênita imperfeição os fez incapazes de proverem às urgências da vida. (DEL VECCHIO, 1979, p. 40). Aristóteles (384––322 a.C.) compreende o Estado (cidade) como criação natural, consequente ao fato de que, isolados, os indivíduos não são autossuficientes, mas elementos de um todo. O homem, nesses termos, é um animal político (zoon politikon) (ARISTÓTELES, 2000, p. 146).

Francisco Suarez (1548-1617) afirma que não foi conferido ao homem o poderio político sobre seus pares, de modo que esse domínio não haveria de ter fundamento diverso do consenso, “através do qual a multidão se reúne em um só corpus politicum” (DEL VECCHIO, 1979, p. 84).

Hugo Grócio (1583––1645) acrescenta que o senso social é a fonte primeira do Direito, ante a inafastável demanda dos homens, de ordem moral e racional, pela vida em sociedade (DINIZ, 2009, p. 39). Semelhante é o que ensina Samuel Punfendorf, ressalvado que “para ele, a lex naturalis não era voz interior da natureza humana, como pretendia Grotius, mas resultava de forças exteriores, ligando os homens em sociedade” (DINIZ, 2009, p. 39). Segundo Punfendorf, o indivíduo parte do natural estado de solitude (imbecillitas) ao premente anseio de reunir-se em sociedade (socialitas) (DINIZ, 2009, p. 40). Friedrich Von Savigny, enfim, esclarece que o Direito nasce como produto histórico das relações sociais, melhor dizendo, do espírito do povo (Volksgeist).

Fato é que os homens se organizam em sociedades. Onde está o homem, há sociedade; onde está a sociedade, existe o Direito (ubi societas, ibi jus). A necessidade da vida social muito diz, numa visão contratualista, com a demanda por segurança. Surge ela, e também o Estado, para a solicitude de um bem-estar negativo do cidadão. Nesse sentido, Wilhelm von Humboldt (2004, p. 187) fundamenta que o objeto  principal da criação do Estado é contra-atacar o mal que decore do desejo humano por transgredir seus próprios limites e a discórdia produzida por tal apropriação indevida do direito dos outros. Em síntese, existe o Estado para a garantia da segurança.

 

2. Crime e Direito Penal: o elemento perturbador e o elemento garantidor

O empreendimento contratualista inaugural foi de legitimar a existência e a atuação do Estado como instrumento de tutela da propriedade, inclusive a do corpo. No contexto do direito penal, trouxe duas necessárias preocupações: a prevenção do delito e a proteção do indivíduo contra a atuação arbitrária do poder público.

Pode-se dizer que o Direito Penal se apresenta como garantidor mediato no combate ao crime, elemento perturbador da sociabilidade. Bevilaqua (1896, p. 61) assume que o elemento garantidor é indissociável do elemento perturbador que se lhe opõe, sendo inviável estudá-los separadamente.

Ocorre que nem sempre o sistema formal de justiça realiza as promessas por ele próprio enunciadas, de modo que a segurança e a proteção de bens jurídicos termina prejudicada, destacadamente nas situações em que a atuação das instâncias de controle, por si só, mostra-se vocacionada à perturbação da sociabilidade.

 

3. Criminalidade Sexual: O Sistema de Justiça e a reprodução de violência

A vitimização pode ser entendida em três níveis: primário, secundário e terciário. Conforme leciona Luis Rodrigues Manzanera (2002), os danos experimentados pelas vítimas da violência sexual, em todos os níveis de vitimação, é substantivamente mais sensível.

A vitimização secundária decorre do contato entre as vítimas e o sistema de justiça, nas pessoas do delegado de polícia, promotor de justiça, serventuários, juiz e outros. A vítima, muitas vezes, é obrigada a reviver o fenômeno traumático, e acaba estigmatizada, sendo-lhe negada a articulação de suas necessidades. 

Isso ocorre porque, consoante ressaltou Carvalho (2009, p. 167) a intervenção do Estado na repressão de sobredita delinquência demonstra potencial para romper com a justiça, agredindo direitos de todos os envolvidos, no caso das vítimas, por lhes usurpar o conflito.  

Para Baratta (1997, p. 176), o sistema é seletivo e imuniza certos grupos hegemônicos; escudado por seu alegado caráter fragmentário, decide por negar proteção à vítima, destacadamente no campo delitivo de que se fala. Zaffaroni (1988, p. 130) complementa que o sistema penal alcança um número reduzido de infratores, com base em critérios seletivos, e não atende os interesses do ofendido.

Vera Regina conclui que: “o tratamento que o sistema de justiça criminal confere à violência sexual, particularmente ao estupro, pode ser formulado na promessa de punir em definitivo, não há esta punição, e na forma de impunidade imunidade, reafirma-se o continuum e a solidariedade masculina destes controles” (ANDRADE, 2010, p. 99).

É possível afirmar, então, que existe uma relação indissociável entre a impunidade, as cifras ocultas da delinquência sexual e o tratamento conferido às vítimas pelo Sistema de Justiça, o que resulta a desconfiança geral, por parte das mulheres, especialmente, nas agências de controle do delito.

 

4. O Conceito Ampliado de Segurança Pública e a Violência Sexual

Na noção de que os sujeitos se consociam sob a égide de um soberano, que, no nosso contexto, retira de nós mesmos o seu poderio, a liberdade, inclusive para a autodefesa, conformou-se na exigência paralela por segurança, atribuída de forma privativa ao Estado. (SABADELL, 2003, p. 6). Passou-se a exigir das instâncias de controle dois tipos específicos de segurança, uma externa, concernente à defesa nacional e outra interna, no sentido de proteger os indivíduos contra a violência própria à vida em sociedade (SABADELL, 2003, p. 2). Por outro lado, um contexto ampliado de segurança pública prevê ao Estado que se ocupe “da tutela efetiva de todos os direitos fundamentais” (SABADELL, 2003, p. 5).

Na Alemanha, a segurança pública é associada à prevenção criminal e ao medo da criminalidade. Este último, nos crimes sexuais, simboliza o sentimento geral de insegurança que as vítimas, geralmente mulheres, passam a nutrir com relação a certos tipos de conduta e a dados ambientes, como forma a prevenir sua vitimização primária (SABADELL, 2003, p. 23). A adoção de referidas reservas profiláticas tende a engendrar uma comunidade de mulheres limitadas pela paranoia da autoproteção, cerceando-lhes o direito de ir, de vir e de ser. (SABADELL, 2003, p. 25).

O Estado, por negar proteção às vítimas, extrapolando os limites legais para investigar a conduta social do ofendido, corrobora com a impunidade e a insegurança. No que diz respeito ao conceito ampliado de segurança pública, retira do ofendido a expressão de suas liberdades fundamentais. Com ênfase maior, atribuir à vítima, por seu modo de vestir, locais que frequenta ou hábitos de conduta parcela da culpa de sua própria violação tanto produz um sentimento geral de insegurança como lhe limita o exercício de direitos.

 

Considerações Finais

Com base no conceito ampliado de segurança pública, a violência deve ser entendida não só na perspectiva das violações que ocorrem ostensivamente, mas considerando-se toda e qualquer agressão aos direitos fundamentais. O sistema formal de justiça segue negando proteção às vítimas da delinquência sexual e, sem prejuízo de buscar-se a perfectibilização do sistema punitivo, necessário é exigir a ordenação de políticas públicas atentas à segurança das vítimas dos delitos dessa natureza, inclusive no que se refere aos danos que sofrem pela atuação ineficiente do Estado. Países europeus, como Portugal e Espanha, e latinoamericanos, como Argentina, México e Peru, têm desenvolvido boas práticas no enfrentamento da criminalidade sexual, além de apresentarem estudos robustos no campo da vitimologia para a prevenção desse tipo de delinquência. No Brasil, por outro lado, os esforços são tímidos. O presente artigo pretendeu a perfunctória abordagem do tema para subsidiar o interesse do leitor e incentivar estudos futuros.

 

Notas e Referências

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Violência sexual e sistema penal: proteção ou duplicação da vitimação feminina? Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos. Florianópolis, 1996.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

BEVILAQUA, Clóvis. Criminologia e Direito Penal. Bahia: Magalhães, 1896.

BRASIL. FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. A Vitimização de Mulheres no Brasil. 2. ed. São Paulo: Forum Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Disponível em: http://www.iff.fiocruz.br/pdf/relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf. Acesso em: 05 out. 2019.

CARVALHO, Salo de. Criminología, garantismo y teoría crítica de los derechos humanos: ensayo sobre el ejercicio de los poderes punitivos. Revista Novum Jus. Universidad Católica de Colombia. 2009.

DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 5. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2009

HUMBOLDT, Wilhelm von. Os limites da ação do Estado. Trad. Jesualdo Correia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

MANZANERA, Luiz Rodrigues. Victimologia: Estudio de La Víctima. 7. ed. Cidade do México: Porrua, 2002.

SABADELL, Ana Lucia. O Conceito Ampliado da Segurança Pública e a Segurança das Mulheres no Debate Alemão. In: PIEDADE JÚNIOR, Heitor; LEAL, César Barros. A Violência Multifacetada: Estudos sobre a Violência e a Segurança Pública. Belo Horizonte: del Rey, 2003. p. 1-25.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Função da Criminologia nas sociedades democráticas. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre, 1989.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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