A violência no casamento

19/08/2016

Por Gabriela Neckel Ramos - 19/08/2016

Família, base da sociedade, conta com especial proteção do Estado, conforme determina Constituição de 1988 em seu art. 226. A magna carta não discrimina nem forma, nem tamanho, nem os tipos de família a serem protegidos, apenas confere independente da maneira que se constituíram.

Dentre as maneiras possíveis de constituição de família temos o casamento, a mais antiga delas e que se modificou ao longo do tempo, sendo inicialmente ligado à religião e muitas vezes utilizado para manutenção de relações entre grupos sociais. Hoje, deixa de ser a única maneira de constituição de família, embora ainda supervalorizado pela legislação pátria, se apresentando como um negócio jurídico de Direito de Família que tem como finalidade a comunhão de vida entre duas pessoas.

A partir da República, com a laicização do Estado, passa a se ter o casamento como instituto de jurídico, anteriormente era celebrado apenas religiosamente. O casamento religioso no Brasil estava bastante ligado primeiramente com a Igreja Católica, por influência de Portugal, posteriormente abrangendo as demais religiões trazidas pelos diferentes povos. Já nessa época, podíamos ver que o casamento celebrado era entre um homem e uma mulher, sendo que ao se casarem tornavam-se um só, geralmente sendo esse um o homem. A mulher era anulada no momento em que se casava. Mais ainda, Kate Millett em seu livro descreve com clareza ímpar a posição da mulher na sociedade ocidental quando casada

Segundo o direito comum que prevalecia em ambos os países no início do período, a mulher, com o casamento, morria aos olhos da lei, perdendo todos os seus direitos, como acontece aos criminosos ao entrar para a prisão. Perdia o controle sobre os seus rendimentos, não lhe era permitido escolher o seu domicílio, não podia administrar bens que lhe pertenciam legalmente, assinar papéis ou servir de testemunha. O marido possuía tanto a sua pessoa como seus serviços, podia alugá-la (e alugou-a) de qualquer modo que lhe aprouvesse e guardar lucro. Era- lhe permitido processar alguém por dinheiro a ela devido, e confiscá-lo. Tudo o que a mulher adquirisse pelo seu trabalho ou herdasse sob tutela tornava-se propriedade legal do marido. Com exceção do direito de propriedade, as mulheres solteiras tinham quase tão poucos direitos legais como as casadas. O princípio tutelar, frequente na jurisprudência ocidental, colocava a mulher casada numa condição de objeto durante toda a vida. O marido passava a ser uma espécie de tutor legal, como se com o casamento ela passasse a fazer parte da categoria dos loucos e atrasados mentais, que, de um ponto de vista legal, eram também considerados como mortos aos olhos da lei

Naturalmente, com o passar do tempo e com a separação do Estado e da religião houveram modificações significativas na instituição do casamento. A concepção de família formada pelo Código Civil de 1916 deixa clara a grande influência da religião, apesar de não mais se dar diretamente, pois tratava-se de uma família tradicional onde o homem continua ocupando um lugar de superioridade na relação conjugal e o vínculo matrimonial era indissolúvel. Conforme discorre Maria Berenice Dias a codificação de beviláqua transformou a força física do homem em poder pessoal, em autoridade, outorgando-lhe o comando exclusivo da família e por isso, a mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tonando-se relativamente capaz, como os índios os pródigos e os menores.

Em 1988, marco essencial do Direito das Famílias e de todo o ordenamento brasileiro, temos a Nova Constituição Federal que traz em seu corpo um vasto conteúdo principiológico que passa a se preocupar com a dignidade da pessoa humana e estabelece a igualdade formal. Ainda mais, apresenta a igualdade formal entre os cônjuges ao dizer em seu art. 226 §5º que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e a mulher.

Por fim, o Código Civil de 2002, sob a luz da Constituição de 1988 traz inúmeras modificações, apesar de perpetuar a tradição patriarcal na sociedade conjugal.

Muitas vezes precisamos estudar a história para entendermos aonde estamos, pois hoje, apesar dos inúmeros avanços, vivemos no ranço deixado pelo patriarcado e pela concepção de família tradicional criada pelos que vieram antes de nós. Hoje, a mulher continua a ser subjugada e o homem se mantém em posição de destaque ostentando o poder familiar, outrora chamado de pátrio poder.

Assim, conforme Kate Millett, podemos verificar que há uma separação entre o mundo dos fatos e o mundo das crenças, sendo os fatos o direito e as crenças o subjetivo. Observa-se que apesar da legislação ter se modificado buscando a igualdade entre o masculino e o feminino, o fato dela ser apenas formal e não material mostra que há uma separação entre os fatos e a crença, pois a lei declara a igualdade, mas ela não é praticada nas instituições sociais como um todo, e assim, também não está presente na sociedade conjugal. Por sua vez, Heleieth Saffioti diz que a desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais. Nas relações entre homens e mulheres, a desigualdade de gênero não é dada, mas pode ser construída, e o é, com frequência.

A discriminação presente na sociedade reflete nas relações do Direito de Famílias, e por consequência no casamento, onde o homem é detentor do poder familiar, detentor dos filhos e principalmente detentor da sua esposa. Dentro dos lares existe uma estrutura hierárquica que permite que o marido produza e reproduza infinitas vezes uma série de comportamentos autoritários e abusivos. Mais ainda, tendo em vista que a predominância masculina se estende à esfera pública, os mesmos encontram respaldo para suas práticas no seio da sociedade, tornando o casamento uma verdadeira prisão para a mulher com ciclos de violência que se perpetuam por dias, semanas, meses e até mesmos anos, sem que ela consiga romper com a estrutura. Sobre os ciclos de violência discorre Heleieth Saffioti

A violência doméstica ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura demanda, via de regra, intervenção externa. Raramente uma mulher consegue descinvular-se de um homem violento sem auxílio externo. Até que este ocorra, descreve uma trajetória oscilante, com movimentos de saída da relação e de retorno a ela. Este é o chamado ciclo da violência, cuja tolidade é meramente descritiva

É uma sequência de agressões, arrependimentos, perdões, calmaria que se desenrolam em um ciclo sem fim, do qual a mulher não consegue se desvencilhar. Algumas afirmam que permanecem porque amam, outras pelos filhos, outras por não saberem que estão sofrendo violência e outras apenas por não quererem sair. Não há como listar os inúmeros motivos que levam as mulheres a suportar anos de práticas abusivas e violência no interior de suas casas.

Algo latente no discurso das pessoas, que corrobora para a manutenção de um relacionamento abusivo, é a banalização da violência. Frases simples como “em briga de mulher não se mete a colher”, “ quem ama tem ciúme”, “ o que você fez para merecer isso?” estão presentes no dia a dia e estimulam e naturalizam práticas que não são saudáveis. São frases como essas que respaldam as atitudes dos agressores.

É importante ressaltar que a violência atenta contra a dignidade da mulher, tornando apenas o homem sujeito de direitos e deveres na sociedade conjugal, anulando a mulher, buscando colocá-la em um papel de invisibilidade, sendo a mesma tratada como propriedade do marido e tendo direitos básicos cerceados por uma estrutura patriarcal.

O art. 1511 do Código Civil diz que o casamento estabelece uma comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Para isso devem ser considerados dois cônjuges, não apenas um, o homem.

Importante dizer que apesar de insuficiente o debate e as soluções trazidas para questões como a apresentada acima, inúmeros são os avanços alcançados e que ainda serão conquistados nas mais diversas áreas do direito. Um marco é a Lei Maria da Penha que trouxe maior proteção para a mulher na esfera penal e também na esfera civil como pode-se verificar do julgado do Supremo Tribunal de Justiça

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL. NATUREZA JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL EM CURSO. 1. As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor. 2. Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. "O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas" (DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012). 3. Recurso especial não provido.

(STJ - REsp: 1419421 GO 2013/0355585-8, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 11/02/2014,  T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/04/2014)

Por fim, precisamos entender que quem permite a violência contra mulher somos nós. Precisamos perceber que a agressão se legitima, respalda e perpetua na sociedade, a agressão se fortalece na cultura de um povo e cada um de nós como indivíduos é que formamos essa sociedade. Assim, precisamos tomar consciência de quem somos, de quais são nossos valores e o que nos é ensinado, só assim, poderemos de fato proteger as mulheres.


Notas e Referências:

Saffioti, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. Coleção Brasil Urgente

Saffioti, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. Coleção Polêmica

Millett, Kate. Política Sexual. Tradução de Alice Sampaio, Gisela da Conceição e Manuela Torres Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1974

Dias, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10.ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015

Farias, Cristiano Chaves; Rosenvald, Nelson. Curdo de direito civil: famílias. 8.ed.rev.e atual. Salvador: Ed. JusPodivm,2016


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Gabriela Neckel Ramos é Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão "Direito das Mulheres", membra do Centro Acadêmico XI de Fevereiro – CAXIF e estagiária da Justiça Federal de Santa Catarina..

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Imagem Ilustrativa do Post: Domestic abuse violence attack// Foto de: Martin Holley // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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