A violação de Direitos Humanos na forma de “marchinhas”

26/02/2017

Por Simone Henrique – 26/02/2017

É um verdadeiro escárnio à legítima luta contra todas e quaisquer formas de discriminação colocar-se na contramão dos avanços sociais e culturais do nosso tempo, postar-se ao lado dos retrógrados defensores de uma sociedade machista, homofóbica, misógina, sexista, racista e outros predicados, em nome do riso e do “espírito carnavalesco”.

O que os “defensores das marchinhas” parecem desconhecer é que discriminações de gênero, raça/etnia e orientação sexual não deveriam ser motivo de riso ou obtenção de lucro. E mais, saúde mental, comprovadamente afetada por atos discriminatórios, é tema de debate sério e consciente. Ninguém tem direito de julgar a dor alheia, que não o atinge, de defender um vale-tudo em nome da liberdade de expressão e pensamento, desprezando o respeito, a empatia e a solidariedade.

A celebração carnavalesca torna-se um prato cheio para disseminar preconceito, ao se fazer uso de marchinhas que afirmam que “...a cor não pega”. Seria a cor da pele uma doença que o compositor imaginava ser contagiosa? Há quem defenda a música dizendo que na estrofe seguinte a mulher negra é exaltada: “Quem te inventou, meu pancadão, teve uma consagração”. Mas quem inventou a mulher negra? Seriam aqueles que a associaram a uma sensualidade descontrolada, cujo corpo pode ser usado ao bel prazer do desejo masculino, independente da vontade dela? Esses personagens estariam “consagrados” porque essa imagem cristalizou-se no imaginário coletivo?

Da mesma forma a própria forma que a mulher negra é denominada na marchinha: “mulata” merece uma reflexão, pois a reduz à associação com o animal estéril fruto do cruzamento da égua com o jumento, em síntese.

Outra marchinha bastante popular, “Olha a cabeleira do Zezé! Será que ele é?” expõe a intimidade do indivíduo sendo objeto de julgamento e escarnio. O refrão incita a um ato de violência: “Corta o cabelo dele! Corta o cabelo dele!” Homofobia, transfobia e agressão gratuita. Exaltação e celebração, em meu pensamento, não rimam com a violência da discriminação. O que muitos chamam de “politicamente correto”, eu chamo de exercício de direitos fundamentais. Respeito e admiro os profissionais da música popular brasileira do presente e do passado, contudo, não posso sustentar que a retirada da dignidade de um ser humano integra uma festividade.

Contrariamente, há quem afirme a valorização da história, a importância da cultura popular e a “ingenuidade” das marchinhas para demolir a nossa argumentação. As marchinhas merecem debate e questionamento sim. Ruptura com as teses da “democracia racial “ e “ país tolerante, que acolhe a todos”, idem.

As músicas populares, ou não, devem ser compreendidas à luz da nossa sociedade desigual. A desigualdade não é um problema das minorias apenas. Se queremos um país justo e igualitário para todas e todos, precisamos reconhecer o nosso caráter. Ou seremos sempre “ o país do futuro”, “o país não sério” etc.

Em tempo, na minha escrita não existe referência ou apologia de aplicação de censura ou liberdade de expressão tolhida, como poderia afirmar o consagrado jornalista e os seus apoiados. Minha sugestão é que se brinque o carnaval, respeitando individualidades e grupos sociais tradicionalmente oprimidos e desrespeitados em nome do “vale tudo” se você não for considerado hegemônico. E, por fim, registro aqui o meu agradecimento ao jornalista e escritor Oswaldo Faustino pela leitura prévia desse texto.


Simone Henrique. Simone Henrique é Mestre em Direitos Humanos pela USP, pesquisadora do Gepebio (Grupo de Estudos e Pesquisas de Bioética e Biodireito da USP) e voluntária do Instituto Pro Bono de Direito e Responsabilidade Social. . .


Imagem Ilustrativa do Post: carnaval // Foto de: sophie // Sem alterações.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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