Coordenador: Gilberto Bruschi
1) O aparente paradoxo
Quanto mais flexíveis são os parâmetros que orientam as decisões do juiz, maior é a relevância de que se respeitem as decisões dos Tribunais Superiores.
Já observei, em vários textos escritos anteriormente[1], que hoje a lei está repleta de conceitos vagos ou indeterminados, de cláusulas gerais e a importância que se dá aos princípios jurídicos vem se acentuando visivelmente nas últimas décadas.
Portanto, a lei, pura e simplesmente, muitas vezes não garante mais automaticamente tratamento isonômico aos jurisdicionados, porque passa necessariamente pelo “filtro” dos Tribunais para que estes, à luz da doutrina e de outros elementos, decidam casos concretos, por meio de processos interpretativos cada vez mais complexos e que têm, de fato, o potencial de levar a decisões diferentes e desarmônicas entre si.
Hoje se considera que o Direito não é um sistema impecável e irrepreensivelmente lógico. Fala-se muito mais em racionalidade do que em lógica.
Parece ser sintomática, a esse propósito, a circunstância de cada vez mais incluírem-se parâmetros de decisões ditos fuzzy ou “nublados” nos textos de direito posto, como uma forma de tentar absorver a complexidade do mundo real. São os conceitos vagos e as cláusulas gerais de que falamos antes. Assim como é sintomática a necessidade que vem sendo sentida na comunidade jurídica, de que os princípios jurídicos integrem, de forma cada vez mais significativa, os raciocínios de direito.
Há tempos venho sustentando estes parâmetros mais nublados ou, usando uma linguagem mais próxima ao dia a dia do operador do direito, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e princípios jurídicos são poros que permitem à realidade penetrar no direito.
O juiz preenche conceitos vagos – e todos os conceitos são, de certo modo e em certa medida, vagos! Até quando diz que a palavra mãe, que consta do texto legal, abrange (ou não) a mãe adotiva. O juiz decide x ou y com base no princípio da necessidade do respeito à dignidade humana. E delimita situações, no mundo empírico, em que não teria sido cumprida a função social de um contrato.
Justamente por isso é que, por que deve ser respeitada a igualdade de todos perante o direito, decisões de Tribunais Superiores devem ser respeitadas. Assim, se, de fato, estes “poros” que tem o direito permitem que o juiz exerça certa dose de liberdade para decidir um caso concreto, esta liberdade cessa quando os Tribunais Superiores firmam entendimento a respeito de como deva ser a decisão naquele caso: qual é a tese jurídica a ser adotada para resolver aquela específica questão.
Paradoxalmente, no entanto, justamente nestes campos, em que a lei está repleta de parâmetros flexíveis e em que os princípios jurídicos são mais relevantes, é que às vezes se chama de ativismo judicial a liberdade que tem o juiz para decidir.
É “tapar o sol com a peneira” dizer que o juiz não tem “liberdade” para decidir se, por exemplo, em certo caso concreto, teria ou não sido desrespeitada, a função social que deve ter o contrato. Mas é relevante observar-se que essa liberdade não é DO JUIZ: é do Judiciário. Aí entra a importância da jurisprudência uniforme: o Judiciário interpreta a lei e esta interpretação há de valer para todos. Porque o direito há de ser o mesmo para todos.
É verdade que a expressão ativismo tem uma série de sentidos, por isso convém esclarecer em qual deles a estamos empregando. Usamos a expressão para significar que o juiz, em certas circunstâncias, exerce certa dose de criatividade, quando completa o sentido da norma. De fato, esta expressão nasceu para designar uma das formas de interpretação/compreensão da Constituição americana, que é curta, sintética, plena de conceitos vagos, de dispositivos marcadamente abstratos, e necessita de concretização por parte do interprete.
Já tratei em texto anterior[2] do conceito de ambiente decisional, para referir-me à área do direito – com seus princípios e regras – de que o juiz deve extrair sua decisão.
Parece-me que é justamente nos ambientes decisionais que chamei de frouxos que o juiz predominantemente exerce liberdade criativa, à luz do ethos dominante (sem que se ignorem as dificuldades que tem de enfrentar), a ponto de poder gerar até mesmo a alteração do direito.
Uma vez alterado o direito, revela-se evidente a necessidade de que estes novos precedentes sejam respeitados, pois que são “o novo direito”.
2) Então, o juiz cria direito?
Sim, a resposta é positiva.
Mas o juiz não pode criar direito do nada, da sua própria cabeça, seguindo suas convicções e crenças pessoais. Afinal, vivemos num Estado Democrático de Direito e o juiz deve decidir de acordo com a lei, interpretada pela jurisprudência, à luz da doutrina. O direito é um tripé: lei + doutrina + jurisprudência.
Mas há áreas do direito em que o juiz cria mais do que em outras.
A doutrina e os pensadores do direito, de modo geral, não atribuem grande relevância à necessidade de se estabelecerem critérios para se saber em que circunstâncias a evolução ou a adaptação do direito – alteração do entendimento de conceitos e teorias jurídicas, que ocorrem com o passar do tempo – deve ocorrer no plano do direito positivo ou seja por obra do Poder Legislativo, ou por obra do juiz.
Este tema é delicado e se tem revelado extremamente resistente ao tratamento sistemático.
Isto, porém, não pode ser um pretexto para que não seja enfrentado, ainda que as conclusões não sejam tão claras e límpidas, e tampouco inteiramente seguras e confortáveis.
Mencionei há pouco um conceito relevante para orientar esta distinção: o ambiente decisional. O ambiente decisional é a área de direito material ou substancial, com seus princípios e regras, em que o conflito, submetido ao juiz, deve ser resolvido.
Oportuna a observação de Norman Marsh. Ele diz que: “Há situações em que a natureza cambiante da matéria e as questões sociais delicadas que esta envolve tornam desejável que se deixe à discrição[3] do juiz a decisão, conseguindo-se obter flexibilidade à custa do sacrifício da certeza. Há, todavia, outros casos, onde a certeza que pode ser assegurada pelo julgamento de um homem razoável, baseado em estáveis princípios jurídicos é mais relevante que a possibilidade de ser obter flexibilidade”.[4]
Há, portanto, setores do direito em que é desejável abrir-se mão da flexibilidade, a favor da segurança, da previsibilidade; e outros, em que delicadas questões sociais estão envolvidas, em que é conveniente dar-se ao juiz certa margem de flexibilidade para decidir, às vezes até em detrimento dos valores segurança e previsibilidade. São estas as áreas em que o juiz pode ser mais criativo.
A questão que se põe é a seguinte: que áreas são essas? Quais os critérios para distinção?
3) Quando o juiz pode ser criativo?
Os critérios de distinção são, a meu ver, os princípios basilares de cada um dos ramos de direto material que servirão de base à decisão: este é o ambiente em que a decisão será tomada.
Este ambiente decisional é que fornecerá elementos para que se saiba: se o juiz pode levar em conta peculiaridades do caso concreto ao decidir, nuances da situação, o que lhe dá certa margem de liberdade; e se o juiz pode, legitimamente levar em conta, na sua decisão, alterações sociais que o autorizam a divergir suavemente – nunca bruscamente – do que até então estava estabelecido.
Nestes campos mais frouxos é que, segundo me parece, à jurisprudência pode caber, sim, (também) o passo, talvez o primeiro passo, na evolução do direito: transformação das regras de direito material.
Talvez o melhor dos exemplos que tenha ocorrido no direito brasileiro seja o tratamento jurídico que se deu à concubina, hoje companheira.
Houve épocas em que, finda a união, recebia um salário mínimo por mês, pelo tempo em que tinha durado a convivência, sendo, portanto, equiparada a alguém que prestava serviços sexuais, só podendo reclamar um reconhecimento de sociedade de fato se existisse entre o casal, uma sociedade comercial[5] ainda que não devidamente constituída.[6] Em seguida, passou-se a considerar que havia sociedade de fato entre concubinos, no concubinato puro, desde que comprovado o esforço comum.[7] Aliás, esse entendimento, resultou na promulgação da Súmula 380, em 1964, mesmo que o companheiro fosse casado.[8] Até que a Constituição Federal introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a figura da união estável, havendo, subsequentemente, leis disciplinando a matéria. Na verdade, fez a lei o que os juízes já vinham fazendo: de acordo com a mudança dos costumes, a companheira já vinha sendo tratada segundo padrões decorrentes do direito fundamental à dignidade humana.
Evidentemente, nada disso poderia ou deveria ter ocorrido no direito tributário, um ambiente decisional rígido. Os tributos precisam estar previstos em lei e via de regra passam a ser cobrados no exercício seguinte, em razão do princípio da anterioridade. Veja-se a relevância do princípio da previsibilidade, insculpido nestas regras (arts. 150, I e III, b da CF).
De fato, questões tributárias não devem ser objeto de alteração pela via jurisprudencial. Não proporcionam margem de liberdade para que o juiz capte nuances dos casos concretos e reclamam uniformização pela vinculação por identidade absoluta.[9]
É relevante que se afirme, todavia, que, embora em certos ambientes decisionais frouxos ou flácidos, como o direito de família, a uniformização seja tarefa mais delicada, ela é, obviamente, também necessária.
Mas, uma vez “fixada” a nova tese, pela jurisprudência, não há mais liberdade: todas ou todos os concubinos deveriam ter a sua situação de direito material resolvida à luz da nova orientação.
Os princípios basilares que orientam o ambiente decisional também influem de modo determinante nas técnicas usadas na redação das regras positivadas são concebidas. Se o princípio que informa a interpretação do direito, naquele dado ambiente, é o da legalidade estrita, dificilmente haverá normas contendo cláusulas gerais ou pluralidade de dispositivos usando conceitos excessivamente vagos. São, via de regra, realidades que não andam juntas.
Os princípios basilares dos diversos ambientes decisionais podem recomendar o uso de expressões com textura aberta, e isto, é claro deve influir no espaço de liberdade que tem o juiz para tomar a decisão. É uma técnica que oxigena o direito, permitindo que nele penetrem elementos da realidade externa: sociais, éticos e até científicos.
A alteração da jurisprudência em casos assim nos ambientes decisionais frouxos, é extremamente benéfica. Deve ser, não simples alteração do direito, mas evolução do direito. É o direito se transmudando, para atender, de forma mais visível, o princípio da dignidade humana.
Situação extremamente diversa é a que ocorre quando a alteração da jurisprudência tem lugar como decorrência da “mudança de opinião” dos juízes. Esta alteração, via de regra, é brusca, não significa, em sentido algum, evolução do direito e inviabiliza de modo definitivo a uniformização, já que impossibilita a estabilização. Esta alteração de compreensão do direito decorrente de “fatores pessoais” é extremamente criticável e nociva, ainda mais porque normalmente ocorre em tribunais superiores, cuja função (e razão de ser) é justamente a de orientar os demais órgãos do Poder Judiciário.
Estas mudanças ocorrem, não raramente, ou quase que exclusivamente, em ambientes decisionais cujos princípios não o permitem, como, por exemplo, o direito tributário. Várias interpretações equivalem a várias normas – onde ficam a isonomia e a previsibilidade?
4) O que torna os casos iguais? – Casos difíceis e casos rotineiros
Ninguém põe em dúvida que “o direito deva dar a cada um o que é seu”. Assim como não há opositores à ideia de que like cases should be treated alike.[10] As ideias formuladas neste extremo grau ou nível de abstração não suscitam discordâncias, já que, praticamente, nada significam.[11]
As questões realmente difíceis consistem em saber o que é de cada um e o que torna os casos iguais, de molde a levar a que devam ser tratados (= solucionados) da mesma forma.
Há técnicas de uniformização decisória que têm como pressuposto a identidade integral das situações: os fatos e a questão jurídica, stricto sensu, são absolutamente iguais. Não necessariamente o quadro fático subjacente integralmente considerado: mas, dentre os fatos, aqueles tidos como relevantes pelo direito para a incidência (ou não) da consequência sobre a qual se discute. Seriam, então, idênticos, os traços eleitos pelo legislador como essenciais à hipótese de incidência da consequência.
É, por exemplo, o método pelo qual se agruparam os casos em que consumidores discutiam ser ou não legal a cobrança da assinatura básica, por parte das Companhias Telefônicas para julgamento de acordo com o regime dos arts. 543 B e C do CPC/73. Fatos como, por exemplo, a idade ou a profissão dos consumidores autores das ações não eram idênticos. Isto é, todavia, absolutamente irrelevante para efeitos de traçar os contornos da hipótese de incidência do direito: para se saber se a assinatura básica era (ou não) devida, pouco importam idade e profissão dos assinantes.[12]
Entretanto, há maneiras de uniformizar o entendimento dos Tribunais muito mais refinadas, em que o que há de comum nos casos nada mais é do que um núcleo pequeno, mas fortemente significativo, em torno dos quais podem estar fatos completamente diferentes. Dando um exemplo extremo, poderíamos considerar contraditórias decisões em que se tivesse concedido indenização de dez mil reais pela perda de uma perna e de cinquenta mil reais por um dedo decepado.
O direito contemporâneo abriu-se para a sociedade, de modo a englobá-la e à sua complexidade. Os hard cases[13] se multiplicam. Como observamos antes, os ordenamentos jurídicos se aparelham com regras flexíveis, que contêm conceitos vagos, cláusulas gerais, e os princípios jurídicos estão cada vez mais presentes nos raciocínios jurídicos.
Estes parâmetros mais nublados, é evidente, comprometem a previsibilidade, e podem chegar a inviabilizar a forma sistemática do direito, ideia tão cara à forma de se ver o direito nos países de civil law. A não ser que haja obediência aos precedentes.
O único modo de uniformizar a jurisprudência em casos mais complexos, que ocorrem nos ambientes decisórios ditos antes “frouxos”, não possíveis de serem tratados de forma coletiva, por não serem idênticos, é adotarem-se métodos mais refinados de interpretação das decisões, de modo a extrair-lhes o core, como fazem os povos de common law.
5) Como uniformizar a jurisprudência em casos que não são absolutamente iguais
A ideia de que a vinculação a precedentes pode-se fazer usando o método da identidade essencial (e não da identidade absoluta), poderia ser bem ilustrada com dois casos. Um, em que um paciente do Serviço Único de Saúde pleiteia, diante do Judiciário, preferência na “fila” para transplante de órgãos, em virtude da gravidade de seu caso e outro em que o paciente pleiteia liberação da verba para um remédio caro que não consta da lista dos fornecidos pelo Estado.
A essência dos problemas mencionados é saber se o Judiciário se pode imiscuir a este ponto na atividade do executivo, correndo o risco de resolver um problema e criar outros: salva a vida daquele que pleiteou em juízo ser o primeiro da fila e causa a morte do primeiro que foi preterido; custeia o remédio não oferecido e, para isso, usa verba dos remédios comuns para gripe, que beneficiam toda a população[14].
O segundo caso é o em que se nega indenização a uma parte de uma gleba de terra que está sendo desapropriada, em que o proprietário plantava psicotrópicos, pois, naquela medida, a propriedade não cumpria sua função social. Se assim se decidiu, futuramente um caso em que o proprietário mantinha pessoas em regime de trabalho escravo em gleba desapropriada deve ser resolvido da mesma maneira.
Estes casos são, evidentemente, iguais no que tange ao seu core, à sua essência jurídica.
Saber quando os casos são iguais, ou determinar quais critérios devem fazer com que devamos considerar iguais certos casos, é um problema que se põe de forma aguda justamente quando se pensa na vinculação por identidade essencial. Como disse antes, esta é a forma de vinculação que deve haver em alguns casos, como, por exemplo, quando os tribunais decidem casos envolvendo padrões flexíveis de decidibilidade, como conceitos vagos, princípios jurídicos ou cláusulas gerais, em ambientes decisionais frouxos.
Trata-se de uma forma de vinculação que se aproxima consideravelmente à que se faz nos países de common law, quando se interpreta um precedente. Nestes países, como é sabido, o juiz faz a lei, cria a regra. Ora, é inescondível que quando o juiz brasileiro aplica a um caso concreto a norma que contém, por exemplo, a previsão da função social da propriedade, este juiz também estará, numa certa medida criando direito, ao “preencher” a norma já existente com peculiaridades da situação fática subjacente à decisão.
Por isso, a necessidade de que, para se preservar a igualdade, também nestes casos haja uniformização.
Mas, de fato, é um processo refinado o que leva a que se estabeleça qual a essência dos casos, possibilitando que sejam postos lado a lado e decidindo da mesma forma, quando os fatos não são iguais.
Quanto mais aparelhado for um sistema para reconhecer a identidade essencial entre casos, cujos fatos não sejam absolutamente idênticos, mais harmônico será o sistema e mais previsibilidade se conseguirá criar.
Para ilustrar a dificuldade de se fixarem os fatos que seriam realmente relevantes para um precedente, num caso extraído do common law, é oportuno o exemplo Donoghue v. Stevenson [1932] A. C. 532. Os fatos subjacentes a esta decisão eram os seguintes: uma viúva estava com uma amiga em um café, e esta amiga lhe comprou um iced drink, que lhe foi entregue pelo proprietário. Este colocou o sorvete em um copo e derramou, sobre o sorvete, o conteúdo de uma garrafa opaca de ginger beer. Um pouco depois disso, esta viúva despejou sobre o sorvete o que sobrava da garrafa e então viu que lá havia restos de uma cobra em decomposição. Ela levou um choque e, em seguida, teve gastroenterite. Em virtude disso, processou a Stevenson & CO. Argumentou-se que não havia contrato entre eles e a tal viúva (Mrs. Donoghue) e que eles não seriam responsáveis em relação a ela, por nenhum defeito do produto. Entretanto, a House of Lords considerou que a empresa deveria, sim, responder, porque teria um duty to take a reasonable care na preparação e no engarrafamento da bebida.[15]
Qual a essência deste caso: um fabricante de bens tem o dever de tomar precauções para não causar danos (= duty of care) em relação ao consumidor último. Então, veja-se, o fato de se tratar da fabricação de bebidas, o de se tratar de garrafas opacas, de a bebida ter sido consumida em um café, todos foram desconsiderados como fatos essenciais integrantes da decisão. Ou seja, houvessem sido outros, teria sido a mesma decisão.
O quão relevante teria sido, pode-se perguntar, que alguém tivesse tido a oportunidade de inspecionar e checar a segurança para o uso, do artigo em questão? E seria relevante o fato de se tratar de um conserto e não de defeito de fabricação? Muitas destas questões foram levantadas em casos posteriores, em que se discutiu se o precedente Donoghue v. Stevenson deveria ser aplicado.[16]
Este precedente foi aplicado a um caso em que o autor pleiteava indenização em consequência da queda de um elevador. O proprietário do prédio tinha contratado uma empresa de engenheiros para consertar este elevador e a queda ocorreu por que o conserto foi mal feito. A regra geral do caso Donoghue foi aplicada a este caso (Haseldine v. Daw) embora pudesse, segundo alguns, ter havido distinguishing, já que os réus não eram fabricantes, mas simplesmente consertaram o elevador. Ademais, poderia ter sido feita uma inspeção, depois do conserto, o que, no caso Donoghue não poderia ter ocorrido, já que a garrafa era opaca.[17]
Felizmente, nos tribunais brasileiros, encontram-se decisões em que se reconhece haver identidade essencial entre casos, embora os fatos não sejam os mesmos.
Vale a pena menção e referência expressa a um julgado do TJPR em que se reconheceu identidade substancial (= mesmo core) nos contratos de locação de bens móveis e de compartilhamento, para efeito de incidência de ISS.
Diz-se no acórdão que “no caso em tela, a locação se refere a postes e torres, os quais se enquadram no conceito de bens imóveis por acessão. Ainda assim, porém, os fundamentos utilizados pelo Supremo para declarar a inconstitucionalidade [da incidência de ISS] sobre a locação de bens móveis podem ser utilizados no que refere à hipótese sub judice”. (Destaques meus, na expressão que indica não serem idênticos os fatos subjacentes à questão jurídica a ser resolvida).[18]
O mesmo tipo de identidade, não absoluta, mas essencial, foi reconhecida no acórdão do STJ, que julgou o RE 1.185.685-SP (2010/0049461-6), entre as situações do vale alimentação e do vale transporte. Na ementa, diz-se que “o valor concedido pelo empregador a título de vale alimentação não se sujeita à contribuição previdenciária, mesmo nas hipóteses em que referido benefício é pago em dinheiro. (...) O STF, em situação análoga, concluiu pela inconstitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre valor pago em espécie sobre o vale transporte do trabalhador, mercê de o benefício ostentar nítido caráter indenizatório. (STJ, RE 478.410-SP, Tribunal Pleno, rel. Min. Eros Grau, j. 10.03.2010, DJe 14.05.2010). (Grifos meus, em expressão que indica o reconhecimento de que as situações não são absolutamente idênticas, mas substancialmente idênticas).[19]
Por isso, no meu entender são absolutamente equivocadas decisões do STJ em que se afirma caberem embargos de divergência exclusivamente em hipóteses em que há “absoluta similitude fática” e injustificável a recusa do exame de questões ligadas a honorários advocatícios ou ao juízo de admissibilidade de recurso especial.[20]
Mesmo os casos que envolvem fatos mais complexos, daqueles que não se repetem no plano empírico de modo idêntico, podem ser reduzidos a um grau elevado de abstração, que é justamente o que proporciona a possibilidade de uniformização.
Todos os problemas, de que acima se falou, positivamente não se põem quando se trata da vinculação por identidade absoluta. É esta espécie de vinculação que se dá, por exemplo, nos casos da aplicação dos arts. 543-B e C e 285-A do CPC/73, que correspondem aos arts. 1.036, 976 e 332, caput, §§ 3.º e 4.º, respectivamente, do NCPC. Todos os aspectos dos processos cuja tramitação é suspensa como decorrência de ter sido afetado o recurso, devem ser idênticos. O caso anterior, para a aplicação do art. 285-A, CPC de 1973, deve ser idêntico. E que se deve tratar de questão de direito, no sentido mais estreito que comporta a expressão: nenhuma dúvida há quanto aos fatos relevantes e há outros fatos (claro, sempre há), mas são absolutamente e inteiramente irrelevantes.
É justamente o caso de se considerar ser ou não incidente o ISS sobre o leasing; serem ou não os aposentados de certa categoria profissional abrangidos por certo aumento; serem ou não mães adotivas abrangidas por certo benefício previdenciário concedido por lei que usa a palavra mãe, exclusivamente.
Nestes casos, ainda que haja fatos subjacentemente às questões que devem ser resolvidas, estes são integralmente absorvidos pelas expressões que os descrevem: leasing, ISS, aposentados... Nada há que se possa perguntar, para esclarecer: que tipo de leasing? Aposentados, com 70 ou 80 anos? Nada, além do que está dito, importa para a solução da controvérsia, QUE É UMA SÓ, em todos os casos.
6) Como compatibilizar: liberdade para decidir com necessidade de respeito a precedentes?
Em síntese, o que dissemos neste artigo foi o seguinte:
(a) É inescondível que o juiz, ao decidir, exerce, em diferentes graus, muito frequentemente, atividade de índole criativa.
(b) Deve fazê-lo à luz do ethos dominante – e não de seus medos, de suas convicções religiosas ou políticas etc.
(c) Via de regra, os casos que proporcionam ao juiz oportunidade de, legitimamente, exercer certa dose de liberdade, localizam-se em ambientes decisionais frouxos: em que a qualidade da decisão é mais relevante do que a segurança jurídica.
(d) A liberdade que os sistemas de civil law proporcionam destina-se ao JUDICIÁRIO, e não a cada juiz, individualmente considerado. O legislativo faz a lei; o judiciário a interpreta e a aplica.
(e) Portanto, uma vez decidida a questão pelas Cortes Superiores (com liberdade) devem os demais órgãos do Judiciário – e, é evidente TAMBÉM AS PRÓPRIAS CORTES SUPERIORES! – respeitar a opção feita naqueles precedentes (sem liberdade).
(f) Quando se trata de decisões proferidas em ambientes frouxos, os casos quase nunca são idênticos. Há, todavia, formas de identificar a essência de casos cujos fatos são diferentes, que o jurista brasileiro deve estudar. Isto, se pode aprender com os povos de common law.
Notas e Referências:
[1] Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São Paulo: RT, 2008, especialmente n. 5 e 6, p. 151 e ss; Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” no Código Civil de 2002 – a função social do contrato. Revista dos Tribunais, vol. 831, p. 59, jan./2005, também publicado na coletânea Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos, vol. 3, p. 949, jun./2011.
[2] Teresa Arruda Alvim Wambier. Precedentes e evolução do direito. In Teresa Arruda Alvim Wambier (Coord.) Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 11-95.
[3] Discretion, em inglês, não tem o mesmo sentido técnico que tem em português. Remete à liberdade que o juiz tem, em certos casos, para decidir.
[4] No original: There are situations where the changing nature of the subject matter and the delicate social issues involved make it desirable to leave the decision to the judge’s discretion, flexibility being purchased at the price of some uncertainty. There are other cases where the relative certainty, which can be secured by relating the judgment of the reasonable man (…), acting on fixed principles of law, is more important than the lass of some flexibility in the law (grifos nossos). Norman S. Marsh, Principle and Discretion in the Judicial Process, in The Law Quarterly Review, vol. 68, p. 236.
[5] STF, AI 12.991, Mato Grosso, Min. Lafayette de Almeida, j. 21.08.1947.
[6] STF, RE 9885/SP, rel. Min. Orozimbo Nonato j. 16.04.1948.
[7] STJ, Resp 1.648/RJ, Terceira Turma, rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 27.03.1990, DJ 16.04.1990; STJ, REsp 45.886/SP, Quarta Turma, rel. Min. Antonio Torreão Braz, j. 25.04.1994, DJ 23.05.1994; STJ, REsp 11.660/SP, Quarta Turma, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 01.03.1994, DJ 28.03.1994; STJ, REsp 38.657/SP, Quarta Turma, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 22.03.1994, DJ 25.04.1994.
[8] STJ, REsp 6.080/RJ, Terceira Turma, rel. Min. Nilson Naves, j. 03.12.1991, DJ 17.02.1992.
[9] Ver, infra, n.º 4.
[10] Casos iguais devem ser tratados do mesmo modo.
[11] Frederick Schauer. Precedent, in Stanford Law Review, vol. 39, Fev. 1987, p. 571-596.
[12] Reclamação 4.982/SP, Primeira Seção, rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 27.04.2011, DJe 04.05.2011.
[13] Um hard case é um caso que deve ser resolvido à luz de regras e/ou princípios típicos de ambientes decisionais frouxos cuja solução não está clara na lei, ou realmente não está na lei, e deve ser “criada” pelo Judiciário, a partir de elementos do sistema jurídico. Hard cases podem dizer respeito a situações sociais em relação às quais esteja havendo, no plano dos fatos, uma alteração de valores e/ou comportamental.
[14] Sobre o tema, já tivemos a oportunidade de nos manifestar em trabalho escrito em co-autoria com Luiz Rodrigues Wambier. Direito processual civil. São Paulo: RT, 2013. – (Coleção tratado jurisprudencial e doutrinário; v.1), n. 19, p. 303 e ss; v., ainda Teresa Arruda Alvim Wambier. Políticas Públicas e a ingerência do Judiciário. ReDAC, ano 2, vol. 11, ago./2014, 133-146; e A uniformidade da jurisprudência como garantia do respeito à isonomia em matéria de políticas públicas. Revista da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Curitiba: Juruá, n. 3, 2014, p. 143-154.
[15] “Os ingleses preferem lidar com a noção de duty a lidar com a ideia de direitos (rights). E ficam mais à vontade para falar em remedies, do que em rights”. No original: Not only has English law generally been much happier in dealing with duties than with rights, it has also, I think, clearly been happier in dealing with remedies than with rights (P. S. Atiyah, Pragmatism and Theory in English Law, The Hanlyn Lectures, Londres, Stevens & Sons, 1987, p. 21).
[16] What is binding in a Precedent, Geoffrey Marshal, in Interpreting Precedents, coord. D. Neil MacCormick e Robert Summers, Ashgate, Dartmouth, 1997, 503 a 517, especialmente p. 505.
[17] Haseldine v. Daw [1941] 2KB 343.
[18] Incidente de declaração de inconstitucionalidade 335850-5/01, de Guarapuava, 2.ª VC – Órgão Especial – j. em 18.12.2006.
[19] STJ, REsp. 1.185.685/SP, Primeira Turma, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 17.12.2010, DJe 10.05.2011.
[20] STJ, AgRg nos EResp. 748.975/SP, Corte Especial, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 04.06.2008, DJe 04.08.2008.
Confira a 8ª edição da obra Nulidades do Processo e da Sentença, da autora Teresa Arruda Alvim:
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