A Vida Nada Vale Diante do Capital: a negligência ambiental brasileira    

31/01/2019

 

A clareza humana acerca da proteção das vidas é nebulosa como o véu de Nix. Não é tarefa fácil distinguir valores fundamentais dos instrumentais, pois a linha que os separa sempre se caracteriza como tênue. Por esse motivo, e especialmente em uma Sociedade de Risco[1] situada na Pós-Modernidade[2], a produção de riquezas com valores monetários são fatores que influenciam as principais decisões do cenário político brasileiro.

O sociólogo Ulrich Beck[3] ressalta, em atual lição, que: “[...] a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos”, ou seja, no crescimento econômico da nação que se expande de forma alarmante, deve ser verificado diversos pontos que influem de forma significante em toda a Sociedade. Não é possível que prosperidade e desenvolvimento somente podem ser entendidos a partir de significantes como o crescimento infinito ignorando-se, por completo, a quantidade de sistemas vitais interconectados e as quais mantém a Terra em equilíbrio.   

A recente tragédia ocorrida na cidade de Brumadinho em Minas Gerais comprova que um dos principais pontos a serem destacados trata-se não apenas da emergência sobre a necessidade de coordenação de ações segundo a nova agenda mundial para a Sustentabilidade, mas, também de que no Brasil o aspecto da legalidade contida no Direito Ambiental é incapaz de prevenir os desastres que ocorreram nesse Estado. Há leis[4], mas falta o seu cumprimento e fiscalização, conforme outra mentalidade na qual saiba lidar com o Bem Comum[5].

Eis alguns fatos que ilustram esse cenário: a) com a morte confirmada pelo Corpo de Bombeiros de 84 pessoas, estando aproximadamente 276 pessoas desaparecidas em decorrência da queda da barragem I da Mina do Feijão em Brumadinho (MG)[6], tal desastre já supera o ocorrido na cidade de Mariana (MG) em 2015 que, foi considerado a maior tragédia ambiental da história do Brasil; b) existem, hoje, mais de 3,3 mil barragens em situação de alto risco, o que oportuniza novos desastres iguais ou maiores que Mariana e Brumadinho[7]; c) Samarco ainda não pagou as multas ambientais devidas pelo que ocorreu em Mariana[8].   

Verifica-se a evidente negligência dos órgãos fiscalizadores em adequar e aplicar as normas e políticas nacionais existentes, bem como concretizar uma apuração sólida nestes últimos três anos. Nesse caso, a lei de Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), preconiza em seu artigo 3º o seguinte:

 Art. 3o  São objetivos da Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB)[9]: I - garantir a observância de padrões de segurança de barragens de maneira a reduzir a possibilidade de acidente e suas consequências; II - regulamentar as ações de segurança a serem adotadas nas fases de planejamento, projeto, construção, primeiro enchimento e primeiro vertimento, operação, desativação e de usos futuros de barragens em todo o território nacional; III - promover o monitoramento e o acompanhamento das ações de segurança empregadas pelos responsáveis por barragens; IV - criar condições para que se amplie o universo de controle de barragens pelo poder público, com base na fiscalização, orientação e correção das ações de segurança; V - coligir informações que subsidiem o gerenciamento da segurança de barragens pelos governos; VI - estabelecer conformidades de natureza técnica que permitam a avaliação da adequação aos parâmetros estabelecidos pelo poder público; VII - fomentar a cultura de segurança de barragens e gestão de riscos.

Note-se o tamanho descaso com a norma ambiental vigente, haja vista que embora formulada não há sinal sequer de sua consolidação, inclusive influindo interesse privado sobre o de toda a coletividade, como sabe-se nos moldes de uma corrupção sistêmica e endêmica que atinge notadamente a esfera ambiental, que por sua vez impacta nas dimensões econômicas, sociais e políticas.

Ademais, na seara ambiental a aplicabilidade do princípio da precaução deveria ser fortemente incentivada, visto que detém a função de não conhecendo de potencial dano lesivo, adotar as melhores formas de precaver a Sociedade[10] contra um potencial risco de dano lesivo a dignidade humana e sua subsistência.

Precisa-se destacar que o artigo 225 da Constituição da República destaca a necessidade da preservação do Meio Ambiente, obviamente para as futuras gerações, mas de forma imprescindível a presente geração, consolidando um Direito ao Presente, que nos é retirado pela negligência dos poderosos. 

É sobretudo impressionante que, ao descalabro dessa situação, há quem fale em lucrar com a empresa Vale, que disponibiliza suas ações na bolsa de valores, ante a sua queda iminente, ora, não trata-se de variação de capital, mas de uma governança completamente ineficiente que, deveria ser critério pontual aos sóbrios investidores.

A reincidência desse crime ambiental evidencia, de modo cristalino, duas situações: a) a falácia de nosso Presidente em seu discurso no Fórum Econômico Mundial em Davos sobre o fato do Brasil ser um dos países que mais preservar o meio ambiente; b) de se tratar de genuíno Ecocídio, ou seja, de ato que põe em risco o direito à existência sadia entre toda comunidade viva.  Novamente: as vidas nada valem diante desse frenesi pelo lucro.

O ecocídio é um crime de lesa humanidade, mas, novamente, o titular de direitos são os seres humanos, os danos ocasionados voltam-se aos benefícios e reparações dos seres humanos. A pergunta que fica é: Qual a espécie de reparação penal que existe quando a Natureza é o sujeito de direitos? Nesse caso, a amplitude do ecocídio não se circunscreve nos limites dos direitos humanos, porém à preservação da integridade ecológica de todos os ecossistemas. Esse é o motivo relevante que impacta a humanidade e reivindica a inclusão desse fenômeno como crime contra todos[11].

No caso dos seres humanos, o descaso já se manifesta pela total falta de técnica legislativa no Decreto de n. 8.572 de 2015, em considerar o rompimento de barragens como desastre natural, alterando o decreto n. 5.113 de 2004 que regulamenta o artigo 20, inciso XVI da Lei 8.036 de 1990, que dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS. Muito embora, compreenda-se a intenção em tão somente proporcionar a liberação do Fundo às vitimas da catástrofe de Mariana à época, pontua-se que tal categoria “desastre natural”, em nada assemelha-se a naturalidade – (quem preza pelas categorias e lê, entenda), mas sim a negligência do Estado, do interesse privado ao entoar o mantra: As vidas nada valem diante da voracidade pelo lucro. É preciso, a todo momento, satisfazer o “Deus Mercado” para que haja equilíbrio no multiverso.  

 

Notas e Referências

[1] […] os riscos e ameaças atuais diferenciam-se, portanto, de seus equivalents medievais, com frequência semelhantes por for a, fundamentalmente por conta da globalidade de seu alcance (ser humano, fauna, flora) e de suas causas modernas. São riscos da modernização. São um produto de série do maquinário industrial do progresso, sendo sistematicamente agravados com seu desenvolvimento ulterior.  BECK, Ulrich Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 26.

[2] “A pós modernidade é, por isso, como um movimento intelectual, a critica da modernidade, a consciência da necessidade de emergência de uma outra visão de mundo, a consciência do fim das filosofias da historia e da quebra de grandes metanarrativas, demandando novos arranjos que sejam capaz de ir além dos horizontes fixados pelos discursos da modernidade”

BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na pós-modernidade: reflexões frankfurtianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 146.

[3] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. p. 23

[4] “Embora nossa legislação ambiental seja muito boa, abrangendo diferentes campos do Direito Ambiental como resíduos sólidos, biodiversidade, áreas de preservação, entre outros; não há eficácia em termos do que se obtém da fiscalização”. BARRETO, Caetano. Há leis, mais falta efetividade. Diário da Manhã. 29. Jan. 2019. Disponível em: < https://diariodamanha.com/noticias/ha-leis-mas-faltaefetividade/#.XFC8h9DeGA8.whatsapp>. Acesso em: 29 de jan. 2019.

[5] “O conceito de ‘Bem Comum’ é o que está compartilhado por todos os seres humanos, homens e mulheres. Aristóteles, em sua obra A Política, acreditava que nenhuma sociedade pode existir sem algo em comum, apesar de opinar que o comum deveria ser reduzido ao mínimo. Neste documento, não desenvolveremos o aspecto filosófico desta questão. Privilegiaremos uma abordagem sociológica, para compreender o pano de fundo, o contexto do surgimento da questão do ‘Bem Comum da Humanidade’. De fato, este conceito distingue-se do de ‘bens comuns’ por seu caráter mais geral, envolvendo os fundamentos da vida coletiva da humanidade no planeta: a relação com a natureza, a produção da vida, a organização coletiva (política) e a leitura, a avaliação e a expressão do real (cultura). Não se trata de um patrimônio, como no caso dos ‘bens comuns’, mas de um estado (de bem-estar, de ‘bem viver’) resultantes de todos os parâmetros da vida dos seres humanos, homens e mulheres, na terra”. HOUTART, François. Dos bens comuns ao “bem comum da humanidade”. Bruxelas: Fundação Rosa Luxemburgo, 2011, p. 8/9.

[6] Brumadinho: 84 mortes confirmadas e 276 desaparecidos. Carta Capital. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/brumadinho-84-mortes-confirmadas-e-276 desaparecidos/. Acesso em: 31 jan. 2019.

[7] MAZUI, Guilherme; BARBIERI, Luiz Felipe. Governo vai fiscalizar 3,3 mil barragens de alto risco, mas não estabelece prazo para o trabalho. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/29/governo-vai-fiscalizar-38-mil-barragens-de-alto-risco-mas-nao-estabelece-prazo-para-o-trabalho.ghtml>. Acesso em: 30 de jan. 2019.

[8] AMANCIO, Thiago. Tragédia em Mariana ainda não tem culpados, e Samarco não pagou multas. Folha de São Paulo. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/01/tragedia-em-mariana-ainda-nao-tem-culpados-e-samarco-nao-pagou-multas.shtml>. Acesso em: 30 de jan. 2019.

[9] BRASIL. Lei n. 12.334 de 20 de setembro de 2010 – Política Nacional de Segurança de Barragens. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12334.htm>.  Acesso em: 27 de jan. 2019.

[10]  “A sociedade, enquanto fenômeno humano, decorre da associação de homens, da vida em comum, fundada na mesma origem, nos mesmos usos, costumes, valores, cultura e história. Constitui-se sociedade no e pelo fluxo das necessidades e potencialidades da vida humana; o que implica tanto a experiência da solidariedade, do cuidado, quanto da oposição, da conflitividade. Organização e caos são pólos complementares de um mesmo movimento – dialético – que dá dinamismo à vida da sociedade”. DIAS, Maria da Graça dos Santos. Sociedade. In: BARRETO, Vicente de Paulo. Dicionário de filosofia política. São Leopoldo, (RS): Editora da UNISINOS, 2010, p. 487.

[11]La violência ecológica y social propia de la guerra moderna es además inseparable de la constelación geopolítica de los Estados nacionales. Los individuos modernos no hacen historia como tales o como classe sino como conjuntos unificados, como naciones. En consecuencia, la historia moderna se lleva a cabo a través de la interacción de naciones que cmpiten por el domínio mundial de en un universo de guerra perpetua”. BROSWIMMER, Franz J. Ecocidio: breve historia de la extinción en masa de las especies.Traducción de Francisco Páez de la Cadena. Pamplona: Laetoli, 2002, p. 129

 

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