A vida e a morte da teoria do pagamento substancial em contratos de financiamento – Por Eduardo Silva Bitti

05/09/2017

Compreende-se que o direito privado, em meio às divisões horizontais e verticais, passou a proteger os chamados hipossuficientes para beneficiá-los exatamente em virtude da vulnerabilidade. E o principal efeito disso recai sobre a noção do pacta sunt servanda, lembrado por Caio Mário da Silva Pereira[1] para generalizar os ajustes contratuais, como expressões do acordo de vontades para determinar a respectiva força obrigatória, o dizer de que os contratos devem ser cumpridos.

Até neste sentido, Cláudia Lima Marques[2] reflete que parte do que vem a ser contrato atualmente decorre de uma concepção social daquele, para o qual não importaria somente o consenso das partes, mas, também, os efeitos do contrato na sociedade, principalmente, no que diz respeito à condição social e econômica das pessoas nele envolvidas.

Assim, é a função social que permite, na prática, discutir a verticalização de contratos e, a partir dela, emergir as normas protetoras dos consumidores que permitem interpretações favoráveis aos referidos vulneráveis e que autorizam o Direito Civil a promover cláusulas como a rebus sic stantibus, segundo a qual defende-se a harmonia contratual contra alterações imprevistas ocorridas quanto ao estado original das partes, segundo o qual se estabeleceu o acordo[3]. É também ela quem abre espaço para a boa-fé objetiva e a consequente visualização dos deveres anexos, como a informação e a lealdade, o que permite a massificação das rescisões contratuais, como as consumeristas.

De fato, não se pode olvidar a postura diferenciada do microssistema consumerista, mas é óbvio que, se por um lado há abusos de fornecedores de serviços, por outro, há algumas pretensões descabidas advindas daqueles que são considerados mais fracos.

Marques[4] busca explicar tal perspectiva teórica através da compreensão da vulnerabilidade como um estado dependente do risco, seguindo as palavras de Cohet-Cordey[5], ou seja, “um sinal de confrontação excessiva de interesses identificados no mercado”, que poderia resultar ser uma situação provisória ou permanente, individual ou coletiva.

Para ela, em razão disso, existiriam quatro tipos de vulnerabilidade, sendo elas, a técnica, a jurídica, a fática e a informacional.

Por vulnerabilidade técnica, entender-se-ia aquela na qual o comprador não possuiria entendimentos quanto às características específicas do bem objeto de compra, ou do serviço prestado, assim como a respectiva utilidade, que no caso de empresário, seria exceção, e não regra. Já por vulnerabilidade jurídica ou científica, estaria compreendida a ideia de que o adquirente não possuiria conhecimentos de direito, contabilidade ou economia, favoravelmente presumida para pessoas naturais, mas rejeitada em casos de profissionais e pessoas jurídicas.

Por vulnerabilidade fática ou socioeconômica, a autora entende aquela pela qual o fornecedor impõe a própria superioridade econômica aos que com ele contratam, graças à posição de monopólio fático ou jurídico, o grande poder econômico, ou a essencialidade do serviço. Aqui se enquadra a noção de hipossuficiência consumerista. Mais do que isso, tomando-se por base o texto de José Reinaldo de Lima Lopes[6], seria subsidiada pela doutrina brasileira a defesa de uma graduação econômica em termos materiais, o que permitiria que os pobres, ou desfavorecidos, fossem considerados hipossuficientes.

Marques, por fim, ressalta uma última espécie de vulnerabilidade, a informacional, tal como exposta no artigo 4o do Código de Defesa do Consumidor. Segundo ela, apesar da informação, hoje, ser considerada abundante, ela é “manipulada, controlada e, quando fornecida, no mais das vezes, desnecessária”. Daí, assegura a autora, haver a necessidade de se impor ao fornecedor o dever de compensar o risco social em favor do consumidor quando, principalmente, em virtude de contratos de adesão.

Nesse contexto, a teoria do adimplemento substancial, sob derivação das vulnerabilidades expostas acima, supostamente surgiu com o objetivo impedir o uso desequilibrado do direito do credor em contratos, como o de alienação fiduciária em garantia, quanto à resolução do contrato, em prol de uma suposta preservação do negócio jurídico. Com ela, afastava-se a procedência de pedidos de instituições financeiras quanto à busca e à apreensão do bem alvo da propriedade resolúvel do fiduciário, que somente faria a transferência da titularidade ao fiduciante após o pagamento da última parcela.

O problema, contudo, estaria, como esteve, no excesso de amplitude concedida à (às vezes, má) interpretação da boa-fé objetiva decorrente de tal vulnerabilidade, que destruía os pilares da força obrigatória como égide do que é avençado pela partes na consolidação da posição de hipossuficiente do consumidor.

Sabe-se que objetivo imediato da ação de busca e apreensão nunca foi a resolução do contrato, mas a proteção ao direito de propriedade do credor. Veja-se o absurdo: se aplicada a referida teoria, o devedor poderia ter como único bem penhorável a própria coisa sobre a qual deixou de pagar as prestações necessárias para obter o direito de propriedade.

As questão, após passar por controvérsia no Superior Tribunal de Justiça, finalmente chegou a um final.

No recurso especial 1.622.555 – MG, julgado em 22 de fevereiro de 2017 pela 2a Seção, acabou-se com isso. O caso discutia ação de busca e apreensão proposta com base no Decreto 911/1969 por uma instituição financeira contra o fiduciante, objetivando a retomada de um veículo, alienado fiduciariamente no bojo de uma cédula de crédito bancário firmada em 01 de setembro de 2010, na qual o concedeu-se ao devedor um crédito de R$ 14.739,17 (quatorze mil, setecentos e trinta e nove reais e dezessete centavos) para pagamento em 48 parcelas. Segundo consta, havia um débito quanto às quatro últimas prestações, “perfazendo o montante de R$ 2.052,36 (dois mil e cinquenta e dois reais e trinta e seis centavos) e, estando a mora devidamente comprovada nos termos do artigo 2o, § 2o do Decreto 911/69”, motivo pelo qual o agente fiduciário requereu o deferimento liminar da busca e apreensão do veículo e, decorrido o prazo de cinco dias sem que tivesse havido o pagamento integral da dívida pendente, que fosse consolidada a propriedade e posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do sujeito ativo da relação jurídica posta.

O voto vencedor do Ministro Marco Aurelio Bellizze afirmou que a teoria do adimplemento substancial não tinha previsão legal, afigurando-se totalmente incompatível com o disposto no Decreto-lei 911/1969, que prevê a possibilidade de restituição do bem sob alienação fiduciária por meio de busca e apreensão e que restou mantido pela Lei n. 13.043/2014. Ele disse:

De seus termos, extrai-se que, desde que devidamente comprovada a mora ou o inadimplemento, ao credor fiduciário é dada a possibilidade de se valer da medida judicial de busca e apreensão para compelir o devedor fiduciante a cumprir a sua obrigação ajustada, sendo, para esse fim, irrelevante qualquer consideração acerca da medida do inadimplemento.

Finalmente, como visto, a absurda teoria do adimplemento substancial está, ao menos momentaneamente, sepultada, já que decisões recentes do mesmo Superior Tribunal de Justiça, como a do agravo interno no agravo regimental no agravo em recurso especial 718438 / MS e a do agravo em recurso especial 923.184 - SP, confirmam o reconhecimento de interesse processual de fiduciários quanto à busca e apreensão em tais casos.


Notas e Referências:

[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 13. ed. atual. por Regis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 3, p. 17.

[2] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o regime jurídico das relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 210.

[3] Cf. PEREIRA, 2009. v. 3, p. 139.

[4] Cf. MARQUES, 2005, p. 320.

[5] COHET-CORDEY, Frédérique (Org.). Le développement de la vulnérabilité et ses enjeux en droit. Genoble: Presses Universitaires, 2000, p. 10.

[6] LOPES, José Reinaldo De Lima. Crédito ao consumidor e superindividamento: uma problemática geral. Revista de Direito do Consumidor, n. 17, p. 58. 1996.


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