A utilização subsidiária das normas relativas às sociedades simples nas sociedades em comum – Por Eduardo Silva Bitti

15/08/2017

No artigo 986 do Código Civil, o termo “enquanto” favorece a ideia temporal, ou seja, o período provisório em que se protrairia o fenômeno jurídico. Apõe-se, dessa forma, a sociedade em comum não seria uma espécie societária, mas uma fase de formação das sociedades contratuais que existe enquanto não houve a inscrição dos atos constitutivos pela Junta Comercial ou Cartório.

Em razão disso, denota-se que o legislador poderia ter sido mais claro quanto à caracterização de que, talvez, toda atividade da sociedade contratual antes do arquivamento dos atos constitutivos devesse voltar-se para a atuação de controle de procedimentos internos à sociedade, não exteriorizados por intermédio de negociações com terceiros.

Se assim o fosse, diga-se, a aproximação feita pelo artigo 986 do Código Civil talvez tivesse seu propósito: as sociedades que manifestassem atitudes antes do arquivamento dos atos constitutivos teriam seus sócios constituintes devidamente punidos.  Isso, aliás, é o que ocorre nas sociedades por ações em formação, que observa “os fundadores e as instituições financeiras que participarem da constituição por subscrição pública”, respondendo, na forma do artigo 92 da Lei 6.404/1976, “no âmbito das respectivas atribuições, pelos prejuízos resultantes da inobservância de preceitos legais”.

Entenda-se a obviedade da questão. A busca por impedimentos legais à realização de atos mercantis antes da fase regular da vida societária ocorre pelo fato de que qualquer sociedade, com exceção expressa das que possuem capital dividido em ações, passa inevitavelmente pelo período de espera entre o pedido de registro e o definitivo arquivamento de atos constitutivos, seja no competente cartório de registro de pessoas jurídicas ou junta comercial.

Decerto, portanto, a espera pela aceitação do registro nas sociedades em comum também não decreta a nulidade de todos os atos praticados pela sociedade em comum, fornecendo espaço particular para validação dos negócios jurídicos celebrados por ela com terceiros.

O Código Civil brasileiro inovou ao trazer para si a tipificação inerente às sociedades em comum, sociedades contratuais em formação, e o fez com a suposta pretensão de, em poucas linhas, esgotar um assunto tão complexo.

Manteve-se certa paridade entre as organizações que tivessem a ingerência imediata e pessoal de sócios na administração do empreendimento, além da possível responsabilidade pessoal de cada um deles por dívidas societárias.

Aliás, historicamente, como comentou Nelson Abrão[1], no sistema italiano seria inegável o preenchimento pela sociedade simples do lugar reservado no Código Civil peninsular de 1865 à sociedade civil, com a ressalva de que “embora não comercial, é de conteúdo econômico, distinguindo-se daquela pela ausência de formalismo constitutivo e estrutura organizada em empresa”.

Mesmo nessa ordem, impende afirmar que o direito italiano não deixou completamente desamparados aqueles que empreenderiam a sociedade simples. Estas continuariam a ser criticadas quanto à maneira como amparariam os bens individuais daquele que as empreenderam, situação mantida até hoje no próprio direito peninsular[2] e no direito alemão[3], onde não foi fornecida personalidade jurídica às sociedades de pessoas exatamente por não protegerem corretamente o bens do investidores.

Mauro Brandão Lopes[4],  sob esse prisma, ao comentar sobre o ainda projeto que resultou na Lei 10.406/2002, lecionou sobre o paradigma peninsular da società semplice utilizado pelo direito pátrio. Ele retratou a ausência de personalidade jurídica, mas ainda assim destacou a salvaguarda do pecúlio particular dos indivíduos que compõem o quadro social enquanto perdurar o patrimônio coletivo por meio de uma meramente subsidiária responsabilidade daqueles com a personificação.

Num contexto conflitante, com a exceção do caráter provisório do ente societário em formação em relevo, efetuou-se uma grande aproximação entre a sociedade em comum e a simples, porque, em princípio, ambas não ofereciam a segurança adequada aos que as contratavam. As sociedades simples, que ora aparecem como tipo societário – sociedade simples pura, ora como classificação em função do objeto não empresarial escolhido[5], deixam de proteger, na primeira modalidade, a figura dos sócios apenas por não lhes fornecer limitação de responsabilidade.

Curiosamente, no artigo 986, o Código Civil brasileiro ratificou a tendência de tornar paritárias as sociedades simples e as em comum. O texto legal remete o intérprete à leitura dos artigos 997 e seguintes, colocados como normas subsidiárias à vida social dos entes societários contratuais em formação, espécie esta colocada como não personificada pela própria legislação nacional.

Relembra-se que tal contextualização não está isolada no referido diploma material. A base comparativa dispõe sobre a utilização da sociedade simples como paradigma normativo subsidiário para todas as demais formas societárias de cunho contratual, independentemente de seu objeto. Na ótica das estruturas empresárias, depreende-se isso da leitura dos artigos 1.040, 1.046 e 1.053, normas legais que retratam a remessa supletiva[6], respectivamente, das sociedades em nome coletivo, em comandita simples e da limitada, tal como ocorre no artigo 986.

Assim, verifica-se como conveniente entender que a expressão utilizada pelo Código Civil, em seu artigo 986, refere-se a uma supletividade, fator que confere à sociedade em comum, não o caráter de sociedade simples, eis que as sociedades contratuais podem também assumir versões empresárias, mas traz unicamente uma fonte de solução de conflitos, em aproveitamento das lacônicas passagens do diploma substantivo.


Notas e Referências:

[1] ABRÃO, Nelson. Sociedade simples; novo tipo societário? São Paulo: Leud, 1975, p. 45.

[2] Dispõe o artigo 2.251 do Código Civil italiano (ITÁLIA, Codice Civile. Disponível em: <http://www.jus.unitn.it>. Acesso em: 13 Ago. 2007) que “[...] nella società semplice (att. 204) il contratto non é soggetto a forme speciali, salve quelle richieste dalla natura dei beni conferiti (1350, 2643)”. Em tradução livre, “na sociedade simples (artigo 204) o contrato não é sujeito a forma especial, salvo aquela requerida pela natureza do bem conferido”.

[3] Sobre o assunto, recomenda-se a leitura sobre a sociedade simples no direito alemão na obra de José Lamartine Correa de Oliveira. (OLIVEIRA, José Lamartine Correa. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, pp. 126-129).

[4] LOPES, Mauro Brandão. A sociedade em comum: inovação do anteprojeto do Código Civil. Revista de Direito Mercantil, n. 15-16, São Paulo: Malheiros, 1974, p. 41.

[5] LIMA,, Osmar Brina Corrêa. Sociedade Limitada. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 08.

[6] Sobre as normas legais supletivas, leia-se Osmar Brina Corrêa-Lima (CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedade Limitada. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 28-29).

fev. 1982.


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