A Utilidade do Inútil em Tempos de Complexidade como Resposta ao Consumismo Simbólico  

21/09/2018

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

 

...el vínculo necesario entre sociedad y derecho implica el descubrimiento de la complejidad de este último. Espejo de la sociedad, refleja su estructura abigarrada, estratificada y diferenciada.[1]

A complexidade da vida atual é, como muito bem identificado por Paolo Grossi, um desafio àquele que seriamente busca compreender o direito, uma vez que o direito constitui e constrói afirmações de valores e instrumentos de modelação do imaginário social, o que o torna construtor de sentidos. Na busca da compreensão desta sociedade complexa que hoje vivemos, denominada também “sociedade do consumo”, mostra-se necessário moldar reflexões desveladoras, buscando assim uma visão ampliativa do contexto social, local (re)produtor da normativa social, onde estão sublimadas as perniciosas relações que velam as (des)humanidades.

Disto, propõe-se uma breve reflexão sobre o consumo simbólico como prática perpetuada em um contexto social construído sobre a utilidade, para que se possa pensar o consumo de forma crítica e desvelar-se reproduções vazias, que não são lidas pelo que é jurídico. O consumismo criador das distinções promete ao ser uma vida de infinitas eleições entre a grande variedade de oportunidades; uma vida “feliz”, onde sempre se passa algo excitante e novo, fonte fugaz de satisfação dos prazeres efêmeros. Nesse contexto, também, em consequência, o direito subordina-se ao domínio do mercado, com o risco de se anular qualquer forma de respeito às pessoas, transformando o humano em mercadoria e dinheiro. Necessário assim o resgate ao direito do que é o humano em seu sentido amplo e complexo.

            Nuccio Ordine redigiu brilhantemente o que ele próprio denomina como “um manifesto”: a utilidade do inútil. Com o título, busca criticar a cultura da utilidade, que torna o homem mais pobre quando pensa estar enriquecendo, respondendo assim a uma sociedade que constrói suas crenças sobre o capital econômico baseado no consumo, criador de gostos e hábitos capaz de diferenciar cada um dos demais, o que acaba, entretanto, por reproduzir uma lógica perversa fundada na distinção social expressada pela possibilidade de consumir, muito bem explorado nas obras de Pierre Bordieu. Nesta visão redutora e utilitarista, somente importa ao humano o conhecimento que lhe trará benefícios a curto prazo, reduzindo assim a utilidade do inútil; inútil capaz de servir exatamente como a ferramenta para a destruição da lógica sistemática criada simbolicamente pela distinção.

Um simples exemplo desta distinção criada veladamente pelo homem é o que foi denunciado por uma reportagem recente da revista Le Monde Diplomatique[2] “Suco detox e cardio training, o novo espírito da burguesia”, em cujo texto a autora denuncia que “com a classe média tendo acesso, graças ao crédito, a carrões e bolsas de marca, os membros das classes superiores encontraram outras maneiras de sinalizar sua posição social e se reconhecer uns aos outros. Isso exige práticas mais sutis: utilizar sacolas de compras de algodão, beber leite de amêndoa em vez de leite de vaca, praticar kundalini yoga...”, diferenciação demarcada pelo aumento e prevalência da obesidade nas classes mais pobres, enquanto que os mais ricos, por sua vez, diferenciam-se pelo perfil físico. Na sequência, no curioso documentário “El negocio con la pobreza[3] mostra-se como países africanos são absorvidos pelo consumo a partir da crença de que determinada marca retira-os do nível mais baixo do substrato social, ficando para os mais pobres os alimentos naturais. Deste modo, está intrínseco o valor simbólico da representação estética do bem consumido reflete na realidade social vivenciada pelo sujeito que a consome.

A reprodução social criadora das diferenças pode e deve ser desvelada, sendo o direito canal fundamental para essa ruptura, na busca de apreender o sentido humano, que desvela o humano para além da utilidade, pois o direito deve compreender o ser humano também no seu aspecto cultural e espiritual, por um conhecimento que aceita o complexo tecido das relações humanas.

O inútil é tão necessário como as funções vitais do humano, na medida em que relacionado diretamente com a poesia, a necessidade de imaginar e criar, saberes que dão ao homem a capacidade de sair de si mesmo e se transformar em outros, em outro, modelados pela argila de nossos sonhos, como pontua Mario Vargas Llosa. Estas capacidades oferecem estrato para desenvolvimento de um pensamento crítico e para aprofundar sobre as diferenças: “Ao fazer uso das posses materiais, o homem deve ter cuidado de proteger-se frente a tirania delas. Se sua debilidade o diminui, começa um processo de suicídio gradual pelo encolhimento da alma”, nas palavras de Rabindranath Tagore, pedagogo indiano e prêmio Nobel de Literatura.

O que a utilidade do inútil procura, fundamentalmente? Demonstrar que a dimensão do humano é aberta e complexa, que não se reduz a utilidade e que a sociedade atual vem sacrificando e perpetuando sistemáticas sociais perversas e veladas sob o manto da felicidade de consumir, esquecendo-se dos estratos profundos e complexos que nos fazem humanos. A desertificação do espírito é o sintoma de uma sociedade do hipersconsumo, representando grande ameaça à desumanização do humano, não podendo o direito também se resignar a esta mecânica. Afinal, a obra de arte não pede para nascer.

 

Notas e Referências

BAUMAN, Zygmunt. Trabajo, consumismo y nuevos pobres. Barcelona: Gedisa, 2000.

BORDIEU, Pierre. A Distinção: a crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.

ORDINE, Nuccio. A Utilidade do Inútil. Um manifesto. Rio de Janeiro: Zahar,2016.

NUSSBAUM, Martha C. Sin fines de lucro. Por qué la democracia necesita de las humanidades. Buenos Aires: Katz Editores, 2010.

HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um milénio. Coimbra: Almedina, 2017.

GROSSI, Paolo. Mitología Jurídica de la Modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 2003.

[1] GROSSI, Paolo. Mitología Jurídica de la Modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 2003. p.46.

[2] https://diplomatique.org.br/suco-detox-e-cardio-training-o-novo-espirito-da-burguesia/

[3] Link para assistir: https://www.youtube.com/watch?v=oXu7jxwKHCQ&t=2143s

 

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