A uni-versalização dos direitos humanos na perspectiva da criança e do adolescente e os postulados decoloniais: em pauta, o trabalho infantil

19/03/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Estas considerações são fruto de intrigante questão, inicialmente vista como uma preocupação que ganhou corpo à medida em que se acumularam vivências. Atenho-me às percepções relacionadas à construção do que se concebe por direitos humanos, como decorrentes do conceito universal de dignidade da pessoa humana, construído construídos normativamente segundo a voz de por organismos internacionais, pós Segunda Guerra Mundial. Do conceito de dignidade da pessoa humana, passou-se à sua abrangência e subjetivação, nascendo assim os direitos das crianças, dos idosos, das mulheres, das pessoas pretas, das pessoas portadoras de necessidades especiais, etc.

A intenção deste trabalho é, a partir dessa concepção de direitos humanos que, especificamente na pauta de crianças e adolescentes, albergou, sobretudo no plano da normatividade internacional, a compreensão destes como sujeitos vulneráveis, trazer para o debate as vivências de sujeitos crianças para além dessa moldura criada pelo pensamento ocidental, permitindo o olhar para as vivências marginalizadas, desde a Amazônia, em uma compreensão de crianças como sujeitos geopolíticos, a partir dos postulados dos estudos decoloniais.

Os direitos de crianças e adolescentes, pautados na garantia da dignidade da pessoa humana a partir da concepção do princípio da proteção integral, ancoram-se inteiramente no ordenamento jurídico internacional enquanto normatização originária e que repercute, por força de Convenções e Tratados Internacionais, na seara normativa interna, tanto do Brasil como dos demais Países, a partir das Cartas Políticas dos Estados Nação que aderem à essa normatização.

A construção normativa que coíbe o trabalho infantil no mundo possui viés, eminentemente, internacional, elaboradas a partir da primeira metade do século XX, registrando-se, desde já, as formatadas pela OIT - Organização Internacional do Trabalho - 1ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Washington, em 1919, em que foram adotadas normas regulatórias da idade mínima, para admissão nos trabalhos da indústria -  Convenção N.º 05 da OIT. Essa Convenção entrou em vigor, no plano internacional, em 13 de junho de 1921[1]

Embora houvesse, desde o início do século XIX, um embrião regulamentador do ingresso da criança no trabalho, por força das vivências do processo de industrialização que alastrava no mundo civilizado a desigualdade social, essa regulamentação não estava ancorada em qualquer ideia de subjetivação de direito. Vale referir que nem mesmo a normatização criada pela OIT, já no século XX, ancorou-se na ideia de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Essa subjetivação foi experimentada na segunda metade do século XX, quando mentes e corações, aterrorizados com as escabrosidades da Segunda Guerra Mundial, passam a cogitar um meio de proteger a humanidade, em todos os espaços do globo. E assim, nasceu o marco histórico-político-jurídico dessa dicção, a Declaração Universal de Direitos Humanos - DUDH, criada pela Organização das Nações Unidas - ONU, de 10 de dezembro de 1948.[2]

A DUDH reflete, em todas as suas linhas, os valores consensualmente albergados pelo movimento que lhe deu origem, formado por 50 países, cujo objetivo é a proteção do ser humano onde quer que se encontre. Do objetivo traçado, duas principais características sobressaem como inerentes, e mais que isso, indispensáveis à conceituação de direitos humanos, -  a universalização e a indivisibilidade.

A universalização, consiste no respeito aos direitos humanos por todo e qualquer Estado ou Governo. Já a indivisibilidade dos direitos humanos, surge na ausência de hierarquização ou diferença entre os direitos humanos. Em outras palavras, todos os direitos da agenda de proteção aos direitos humanos são iguais e possuem a mesma importância. 

Bobbio (2004, p.49-50) considera, como ponto relevante, a positivação da Declaração afirmando que é positiva “no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado”. Com isso, Bobbio chama atenção para os contornos da fundamentação filosófico-doutrinária dos direitos humanos na modernidade, ancorando-se na Teoria Positivista ou Positivismo, surgida na Escola de Viena, que tem em Hans Kelsen seu nome de destaque por ser o criador da Teoria Pura do Direito, com a qual sustenta que o direito positivo deve estar a salvo de qualquer juízo de valor.

A Teoria Positivista defende direitos humanos dentro de uma ordem normativa que reflete a soberania popular e, dessa forma, sustenta que direitos humanos são aqueles previstos no ordenamento jurídico positivado. Essa é a matriz filosófico-doutrinária que alicerça a Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, proclamando, expressamente, que os direitos da pessoa humana devem ser protegidos pelo império da lei.

É nesse cenário, que em 20 de novembro de 1959 surge a Declaração Universal dos Direitos da Criança, instrumento que se tornou o marco paradigmático da defesa da infância ao enfatizar a importância da promoção e respeito dos direitos das crianças à sobrevivência, proteção, desenvolvimento e participação em todas as partes do globo. Essa Declaração, que se respaldou em outros instrumentos protetivos, anteriormente editados, considera que a exploração e o abuso de crianças devem ser frontalmente coibidos pelo Estado e pela sociedade, já que os indivíduos, nessa condição, fazem parte de um grupo vulnerável, e, portanto, são considerados sujeitos singulares, dada a sua imaturidade física e mental.

Esse entendimento concebeu a infância dentro de um contexto universal, e no campo da exploração da força de trabalho destes sujeitos, coube à Organização Internacional do Trabalho - OIT, a edição e implementação de uma série de instrumentos normativos que evidenciassem a consensualização sobre a recém-inaugurada concepção de infância. E, desta forma, surgiu em âmbito internacional, o conceito de trabalho infantil, recepcionado pelo mundo com a seguinte dicção:

O conceito de “trabalho infantil” baseia-se na Convenção da Idade Mínima da OIT, de 1973 (n. 138), que constitui a mais completa e oficial definição internacional sobre a idade mínima de admissão ao emprego ou ao trabalho, indicando uma “atividade econômica”. A atividade econômica é um conceito amplo que engloba a maioria das atividades produtivas realizadas por crianças, sejam ou não para o mercado, remuneradas ou não, por algumas horas ou em tempo integral, de forma ocasional ou regular, legais ou ilegais; excluem-se as pequenas tarefas realizadas pelas crianças em sua casa ou na escola. Para ser considerada como economicamente ativa, uma criança deverá ter trabalhado pelo menos uma hora em qualquer dia, num período de referência de sete dias. “Crianças economicamente ativas” é um conceito estatístico e não uma noção jurídica (OIT, 2006, p.12). 

E, já traçando a linha de análise que se dispõe este trabalho, é extremamente oportuno trazer o pensamento de Boaventura Souza Santos (2007, p. 4), quando adverte:

O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desparece enquanto realidade, torna-se, inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. A inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade de co-presença dos dois lados da linha. Esse lado da linha só prevalece na medida em que se esgota o campo da realidade relevante.

Assim, posta a estrutura normativa internacional que conceitua trabalho infantil, a despeito de ser uma conquista civilizatória que merece todo e qualquer reconhecimento da humanidade e dos Estados, urge questionar, se esta estrutura normativa abrange “todos os universos”, o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”. E, atrelando-se ao pensamento de Boaventura de Souza Santos, surge a compreensão de que a concepção de trabalho infantil nasceu dessa distinção abissal, em que as culturas marginalizadas, como as ribeirinhas e quilombolas da região amazônica, estão dispostas do outro lado da linha, sem voz e sem expressão, para os que estão dentro da faixa de visibilidade do conhecimento e do direito.

No contexto da enunciação que parte desde a Amazônia, é importante entender que as vivências das comunidades ribeirinhas e quilombolas dos rios da Amazônia, se estabelecem a partir da íntima relação com os rios, igarapés, igapós, matas e plantas. E, em meio a essa cosmologia, em que a natureza é o principal fator de interação social, o trabalho configura-se uma forma hábil de transmissão de conhecimentos, tradições, identidades e pertencimentos, mostrando-se o espaço adequado de interações, aprendizagens e afetos, onde os saberes são passados e repassados, pelo saber/fazer, visando a preservação da consciência da vida em comunidade e da memória dos que habitam o cenário ribeirinho amazônico.

Analisar tal cosmologia, de rica identidade, não é possível, se a pretensão não for a de ultrapassar a discussão centrada em postulados jurídicos universalizantes. Pretensão que se encontra fomentada pela crítica pós-colonial, tendo por base o repertório de pesquisas inaugurado na América Latina pelo Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), formado por intelectuais latino-americanos, em atuação nas várias universidades das Américas, de onde se destacam Walter Mignolo e Anibal Quijano, e que tem por meta a formação de um movimento epistemológico fundamental para a mudança do paradigma crítico das ciências sociais na América Latina no século XXI. Esta mudança repousa na radicalização do argumento pós-colonial no continente por meio da noção de “giro decolonial”.

E, no contexto de novas compreensões de mundo, onde descortina-se de forma derradeira a danosidade de um código conceitual, em que a civilização ocidental dá o tom do discurso com a finalidade de legitimar sua autoridade como controladora de subjetividades e conhecimento, iniciada com o descobrimento das Américas em 1492, é que surge a decolonialidade não apenas como referência  de um processo de transformação das ex-colônias europeias em estados independentes, mas como resultado de um movimento de desprendimento ou desengajamento subjetivo, epistêmico, econômico e político do projeto e dominação ocidental e que pretende desnaturalizar o caráter discursivo da dominação para trazer à evidência as contestações e (re)existências de outros mundos.

O efeito do pensamento decolonial para o que aqui é abordado, é trazer para dentro do plano de atenção a cosmologia amazônica, que é atravessada pela tradição, pelos sentimentos, pelas ações, pela identidade das águas, pela íntima relação com a natureza palco de todos os sabores, dissabores e saberes, e que foi arrebatada pela uniformização do conhecimento Ocidental, e com isso, encontra-se silenciada pelo o que se afirmou superior ditando regras que a coloca para fora da esfera normativa do real (Mignolo, 2008, p.239).

Assim, consideradas as intervenções estatais e não estatais na criação de políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes que visam efetivar as disposições constitucionais e as trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, entre as quais destacam-se as que buscam o enfrentamento do trabalho infantil, observa-se que tais políticas públicas devem ter como pano de fundo a atenção à diversidade, entendida aqui como as “diferentes formas de “ser diferente”, os dilemas e os avanços de sujeitos sociais pertencentes a coletivos sociais diversos transformados em desiguais, no contexto das relações de poder”, como bem lembra Nilma Lino Gomes (2017, p.8).

A compreensão dos modos de vida e de luta dessas comunidades tradicionais a partir de seus pontos de vista, de suas “sensibilidades de mundo” e de suas formas de organização e reprodução cotidiana da existência frente a desigualdades, são fundamentais para a criação de políticas públicas que atendam seus interesses, e que valorizem suas vidas, memórias e a história das gentes que habitam o cenário Amazônico. É evidente que não se faz aqui qualquer tipo de apologia ao trabalho infantil, tampouco se pretende a criação de um direito localizado, mas, é necessário o treinamento do olhar e do ouvir. E é este convite que, nós, povos da Amazônia fazemos a todos os que se arvoram na condição de criadores de políticas públicas para nossa região.

 

Notas e referências

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[1]A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho: No preâmbulo da Convenção se observa: Convocada em Washington pelo Governo dos Estados Unidos da América a 29 de outubro de 1919; Depois de haver decidido adotar diversas proposições relativas ao ‘emprego dos menores: idade mínima de admissão ao trabalho’, questão que está compreendida no quarto ponto da ordem do dia da reunião da Conferência celebrada em Washington, e Depois de haver decidido que ditas proposições tomem a forma de uma convenção internacional, Adota a seguinte convenção, que poderá ser citada como a ‘Convenção sobre a Idade Mínima (Indústria) 1919’, e que será submetida à ratificação dos Membros da Organização Internacional do Trabalho.

[2] O Comitê de Direitos Humanos era composto por 18 membros de diversas formações políticas, culturais e religiosas. Eleanor Roosevelt, viúva do Presidente Americano Franklin D. Roosevelt, presidiu o Comitê. Com ela estavam René Cassin da França, que foi o responsável pelo primeiro esboço da Declaração, o Relator do Comitê, Chalés Marik, do Líbano, o Vice-Presidente, Peng Chung Chang da China, e John Humphrey do Canadá, Diretor da Divisão de Direitos Humanos da ONU, que preparou o projeto da Declaração. Eleanor Roosevelt é considerada a força motriz da adoção da Declaração.

 

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