Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Em 2018 passei a estudar os gargalos contidos no modelo de expansão do ensino superior adotado pelo Brasil. Ao abordar o “future-se”, programa federal de (re)privatização do ensino terciário, apontei o mutualismo havido entre os projetos educacionais erigidos por capitalistas industriais e financeiros, indicando, pois, algumas limitações do projeto desenvolvimentista nacional aplicado à educação superior.
Antes de adensar a análise sobre a fusão estabelecida entre industriais e financistas, isto é, antes de concentrar as atenções da crítica na constituição social do Brasil, convém considerar que a emergência[1] mundial de saúde provocada pelo COVID-19 fortaleceu as exigências neoliberais sobre a educação, abrindo margem ainda mais generosa para o tema analisado na coluna de hoje: a uberização do trabalho docente no contexto da dependência brasileira.
Pois bem, embora pareça óbvio é fundamental pontuar as diferentes expressões que o tempo assume simultaneamente nas zonas neometropolitanas e neocoloniais, permitindo que os territórios de herança colonial imediata expressem relações em notas de rusticidade quando comparados aos blocos imperiais de poder (QUIJANO, 2002, p. 10-13). O rústico, contudo, não pode ser confundido – em nenhuma hipótese – com o atrasado ou com o subdesenvolvido, uma vez que apenas expressa a característica dos territórios periféricos no interior da temporalidade que também condiciona os territórios centrais. Dito doutro modo: a rusticidade neocolonial desempenha função coordenada na divisão mundial do trabalho e da riqueza socialmente produzida, ou seja, a brutalidade das práticas neocoloniais não pode ser superada no interior da materialidade que a determina.
No contexto, para compreender a estruturação do sistema de ensino nacional é preciso ter em conta que o Brasil não está preso numa espécie de dimensão temporal arcaica na qual a civilização ocidental chegou à metade. O Brasil, por mais óbvio que possa parecer, chegou ao século XXI ao mesmo tempo em que a Europa, experimentando, por outro lado, as relações sociais que o caracterizam e que o inserem de modo subalternizado no sistema-mundo.
Significa que a rusticidade marca a presença do Brasil na ordem internacional, determinando, mediante fluídos graus de autonomia, os limites de sofisticação das forças produtivas nacionais. Para explicar de maneira mais sólida a rusticidade estrutural do Brasil é importante voltar alguns passos. Ao analisar as dinâmicas sócio-produtivas que constituíram a posição dependente do Brasil na economia mundial Clóvis Moura identificou no interior do sistema escravagista o padrão que antecedeu o que Ruy Mauro Marini posteriormente definiu como um dos traços característicos dos países dependentes: a superexploração da força de trabalho.
Entre 1550 e 1850, isto é, no período que Clóvis Moura nominou como escravismo pleno, a economia colonial-imperial já estava alicerçada na transferência de capitais para as zonas neometropolitanas. Em virtude da total disparidade entre as relações econômicas estabelecidas entre metrópole (centro) e colônia (periferia), a classe senhorial brasileira não acumulou capitais suficientes à superação do escravismo, contentando-se, ao pleno desdém da libertação nacional substantiva, em aumentar o tempo e a intensidade do trabalho extraído de homens e mulheres racialmente escravizados.
As sobrecargas laborais reduziam violentamente a expectativa de vida das pessoas escravizadas no Brasil, propiciando, ao mesmo tempo, generosa compensação econômica à elite criolla[2] – branquitude – local. O referido acúmulo subsidiário de capitais enriquecia as zonas metropolitanas em duplo movimento. Em primeiro lugar, permitia que a Europa adquirisse bens primários por valor irrisório, permitindo-lhe, em seguida, exportar os excedentes produzidos com os insumos extraídos por meio de trabalho escravizado colonial para mesma elite criolla que vigiava a escravização nas (neo)colônias. A compensação realizada a partir do aumento e da intensidade sobre a exploração do trabalho levava os povos racialmente escravizados à morte ainda mais prematura, aquecendo, assim, a demanda do tráfico transatlântico.
A proibição do comércio internacional de pessoas escravizadas alterou as dinâmicas compensatórias da classe senhorial, exigindo, a partir das dificuldades impostas na aquisição de pessoas escravizadas (1850-1888), maiores cuidados com o corpo negro. As mediações que intentavam estender a longevidade do principal capital fixo capturado pela classe senhorial não constrangeram o tempo e a intensidade do trabalho, mantendo, de igual sorte, o Brasil como território orientado à produção de insumos e alimentos destinados às zonas metropolitanas ou centrais.
Importante estabelecer que a integração do Brasil ao mercado mundial acontece a partir da exportação de bens primários, livrando, em grande medida, as (neo)metrópoles da produção de insumos e artigos da referida categoria. O movimento em questão permitiu que os países centrais acumulassem capitais suficientes para o desenvolvimento industrial, contanto, contudo, com outro auxílio indispensável das (neo)colônias.
Ponto alto do escravismo tardio (1850-1888) reside no processo de substituição da mão de obra escravizada pela mão de obra euro-ocidental. Para além de exportar bens primários para as zonas centrais a baixo custo e adquirir excedentes manufaturados a custo elevado as zonas (neo)coloniais importaram os excedentes laborais das zonas de capitalismo central. Do ponto de vista das economias centrais, a emigração permitiu a harmonização do mercado interno, transformando o trabalhador abstrato desprovido dos meios de produção no consumidor com plena capacidade de compra.
Na lógica da população escravizada as políticas migratórias desenvolvidas na relação centro-periferia anunciaram condições desiguais de exercício do “trabalho livre”, evidenciando que o fim da escravização também simbolizou a divisão mundial dos trabalhos assalariados entre a branquitude. O fim da escravização criou oficialmente a branquitude periférica, transformando os seres subalternamente racializados no interior das (neo)colônias em força de trabalho auxiliar. Solve-se, pois, o problema da oferta de corpos negros para desempenho das jornadas mais elásticas e intensas que garantem a acumulação subsidiária da elite (neo)colonial.
Caro, leitor. Não desista! Estamos quase lá. Prometo demonstrar que a uberização do trabalho docente tem a ver com tudo o que foi escrito até aqui. Acompanhe-me até o final nem que seja em tom de desafio. Como quem diz: “pfff, não vai fechar o texto nem ferrando.” Palavra, vai sair. E vai sair na base.
Pois bem, ficou claro que até o século XIX o Brasil importava bens manufaturados para satisfazer os caprichos da classe senhorial-latifundiária e contribuir com a aquisição do excedente manufaturado (neo)metropolitano. Contudo, as crises econômicas iniciadas na década de 1910 e a chegada do excedente laboral euro-ocidental – branquitude periférica – alteraram um pouco as referidas dinâmicas.
Mesmo que no período do escravismo tardio os países centrais tenham conjugado a exportação de produtos manufaturados à exportação de capitais econômicos, financiando, assim, a infraestrutura nacional ao mesmo tempo em que tomavam posse das finanças “públicas”, o Brasil não possuía indústria ou mercado interno para orientá-la.
As crises mundiais das primeiras décadas do século XX passaram a exigir que as economias centrais concentrassem energia nas demandas internas, alterando, temporariamente, o padrão de exportação de bens manufaturados produzidos através dos altos índices de produtividade (MARINI, 1973) alcançados na indústria. O hiato permitiu que o Brasil adotasse o plano de desenvolvimento industrial, agindo, contudo, a partir das bases estruturais que ainda hoje o sedimentam.
O que significa? Em primeiro lugar, que o desenvolvimento industrial brasileiro adotou como modelo a modernização conservadora (MOURA, 1995, p. 82), propiciando altos graus de seletividade e heterogeneidade no processo de expansão produtiva. No contexto, a impessoalidade que marca a abstração racional pôde conviver tranquilamente com a divisão racial do trabalho, permitindo, no interior do capitalismo periférico, a franca simultaneidade entre o trabalho assalariado e as formas supostamente pré-capitalistas de exploração do labor (QUIJANO, 2009, p. 109-110).
Em estudo ao processo de industrialização nacional Alberto Guerreiro Ramos visita a figura de Getúlio Vargas, lembrando o leitor que o industrial brasileiro coincide com o latifundiário (RAMOS, 1995, p. 73-74). A heterogeneidade da burguesia nacional guarda íntima relação com o papel dependente ocupado pelo Brasil na divisão mundial do trabalho, evidenciando, a partir da modernização conservadora, as razões pelas quais a branquitude brasileira ocupa posição dominada em relação à branquitude euro-ocidental e dominante em relação aos povos afro[3] e autóctone brasileiros (BAMBIRRA, 2019, p. 151). É na qualidade de elite dominada que a branquitude brasileira administra o estado de saque que constitui a identidade nacional brasileira, jungindo, em uma única figura, o senhor de escravos, o latifundiário, o industrial e o financista que acumulam capitais a partir da brutal exploração dos povos e territórios que foram subalternamente racializados junto de si.
Em frente. As crises mundiais da primeira metade do século XX não permitiram que o Brasil relegasse a exportação de insumos primários que até hoje o caracteriza no mercado mundial central, oportunizando, por outro lado, que o Brasil erigisse indústria suficiente para dar conta do consumo da antiga classe senhorial que o constituiu.
A emergência da indústria exigiu a ampliação de trabalhos técnico-burocráticos, garantindo espaço à recém chegada branquitude periférica, isto é, grupamento que difere da elite criolla brasileira, mas a acompanha, resguardando-lhe, em virtude do pacto racial, o sono. No contexto, a indústria brasileira passa a atender o consumo de alta e média circulação, excluindo das suas providências as bases da população nacional, ou seja, a população afro e autóctone brasileiras.
É crucial recordar que junto ao processo de exportação de capitais iniciado na fase dos monopólios, isto é, na fase imperialista do capitalismo central e na fase do escravismo tardio brasileiro, as (neo)metrópoles passaram a exportar maquinários às zonas periféricas. A referida tendência encontra acentuação na década de 50 do século XX (MARINI, 1973), permitindo que os territórios centrais, com destaque para os Estados Unidos da América, exportassem maquinário obsoleto para industrialização nacional.
A obsolescência da produção industrial brasileira implicou menor produtividade em relação aos países centrais, propiciando, contudo, produtividade competitiva no interior da América do Sul. Na medida em que a demanda industrial brasileira estava restrita à elite e à classe média, ambos os estratos substantivamente formados pela branquitude local, os excedentes industriais brasileiros passaram a ser exportados para o consumo de outras elites dominadas sul-americanas, formando, em linhas mais amplas, a tendência subimperialista brasileira. A rarefeita demanda industrial interna está relacionada ao baixo índice de assalariamento das bases da população nacional, permitindo que o aumento da produtividade industrial, ou seja, maior produção de bens em menor quantidade de tempo, não guarde qualquer relação com o salário dos trabalhadores que os produzem.
Em síntese: a menor produtividade da indústria nacional encontrou compensação na superexploração do trabalho, expondo não apenas os “afortunados” trabalhadores subalternamente racializados que alcançaram trabalhos formais no Brasil, mas a branquitude local não proprietária – subalternamente racializada a nível mundial – aos constrangimentos da colonialidade imediata que marca os países dependentes.
Doutro lado, a fixação do Brasil como importador de tecnologias industriais obsoletas o tira fundamentalmente da disputa pela vanguarda tecnológica, abrindo espaço para projetos educacionais limitados a reproduzir as hierárquicas coloniais que caracterizam os países de composição pluriétnica. Sob a ótica do auxílio à reversão do produto do trabalho para a classe trabalhadora, o sistema de educação nacional pouco contribui, considerando-se, na análise, o período em que o ensino teve papel central no desenvolvimento das forças produtivas.
Enfim a Uberização do trabalho
No capitalismo nunca existiu direito ao trabalho (FONTES, 2017, p. 51). Óbvio, não? A questão é: longe dos meios de transformação da vida em favor da reprodução da vida humana não há trabalho. Trocando em miúdos: a privatização dos meios de produção realizada através da expropriação dos trabalhadores subordina o trabalho à acumulação, condicionando, em consequência, o emprego da energia laboral dos explorados do mundo às formas da propriedade privada. Afinal de contas, sem a posse da terra, por exemplo, pode existir energia para o plantio, mas não o plantio em si.
A extrema concentração de capitais conjugada à queda das barreiras alfandegárias e à intermitência do trabalho (características do neoliberalismo) permitiu maior controle sobre o processo produtivo, transferindo ao trabalhador a propriedade sobre bens desnecessários à apropriação privada do trabalho. Ao comercializar mobilidade urbana sem frota, trabalhadores, tributos e responsabilização civil a Uber encabeça o referido modelo de apropriação do trabalho, não passando, contudo, de mero exemplo.
Na medida em que a atividade escolar reconhece a incorporação simbólica a partir do diploma, a docência institucional não pode ser exercida longe da legitimação que o Estado empresta a instituições públicas e privadas. Embora pressuponha capacidade simbólica atestada por meio do diploma, não cabe à docência reconhecer a incorporação dos símbolos que transmite aos estudantes, ou seja, o controle sobre o trabalho docente não pertence às professoras e professores.
No contexto, em rápida leitura às notas estatísticas derivadas do CENSO da educação superior de 2018 é possível verificar que entre 2008 e 2018 a educação a distância triplicou, expressando, de acordo com o referido dado, 40% do total de novas matrículas no ensino terciário. No total, a educação a distância somou 24,3% do total de matrículas no ensino superior para o período.
A transmissão virtual de conteúdo não é, em si, o problema. Contudo, ao considerar que as instituições privadas de ensino habitualmente contratam professores em regime de dedicação parcial (INEP, 2017, 2018) e podem promover contratações a partir de plataformas digitais que mediam oferta e demanda sem vínculo empregatício, isto é, a partir de contrato avulso ou por demanda, a uberização do trabalho docente ganha força.
Antes de encarar a uberização do trabalho como última tendência sugiro reflexão sobre o papel do Brasil na divisão mundial do trabalho. Investimentos substantivos em educação não correspondem bem à estrutura sócio-produtiva nacional. Em um território no qual grandes contingentes de trabalhadores nem sequer conseguem vender muito trabalho em troca de baixos salários, o sistema educação perde ou ocupa papel estranho à prescrição normativa. Para criticar a uberização do trabalho docente, portanto, é indispensável reivindicar a invenção ou a reformulação do corpo/espaço infelizmente ainda conhecido como Brasil.
Notas e Referências
[1] Considerar a crítica antropológica realizada sobre a noção de emergência em: GIGLIO-JACQUEMOT, Armelle. Urgências e emergências em saúde: perspectivas de profissionais e usuários. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005, p. 15-26. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/zt4fg/pdf/giglio-9788575413784.pdf
[2] Embora o termo encontre referência nas colonizações espanholas passo a utilizá-lo para designar os descendentes da Europa sem títulos nobiliárquicos ou herança sanguínea que acumularam terras e formaram a classe senhorial brasileira, reivindicando, em negação ao território neocolonial e após relativa acumulação de capitais, pertença com as simbologias que formam o corpo/mente/espaço universal metropolitano, isto é, brancura, capital cultural validado, práticas, etc.
[3] Compreendo que o nacionalismo brasileiro é fundado na subalternização de diferentes etnias amalgamadas sob as identidades coloniais negro e indígena. A identidade nacional, portanto, é constituída na solidariedade racial que diferencia a branquitude brasileira – elite criolla e migrantes trazidos a partir do séc. XIX e XX – das pessoas subalternamente racializadas dentro do Brasil (negros e indígenas). A subalternidade racial que a elite e a classe média brasileira experimentam em relação aos corpos/espaços estabelecidos nas zonas centrais é compensada na exploração/dominação de negros e indígenas, entregando à branquitude nacional posição racialmente dominante/dominada. Ao constituir identidade nacional anti-afro e anti-povos originários a colonialidade imediata entrincheira a luta de classes pela divisão racial dos capitais, garantindo, assim, a dependência. Poderia, no mais, utilizar o termo afro-diaspórico para designar a população afro-brasileira, compreendendo-a (compreendendo-me), assim, no interior de um não lugar, isto é, como população dispensável para a qual não há projeto no interior da dialética centro-periferia. Como, no entanto, acredito que somente a refundação revolucionária do Brasil – das neocolônias em geral – entregará novas relações sociais, pontuo que a identidade nacional brasileira inova em relação à prescrição normativa (RAMOS, 1983, p. 250-311), entregando aos povos subalternamente racializados na condição de negro e indígena pertencimento material objetificado. Explico: mesmo que soe estranho às bases liberais que orientam o Direito, os povos afro e autóctone brasileiros desempenham função objetal na dialética centro-periferia, possibilitando, por meio das práticas materiais concretas, solidariedade racial suficiente ao conforto da elites criollas e da classe média locais. Existe, portanto, pertença nacional/mundial para afro-brasileiros e autóctone-brasileiros, evidenciando, assim, que a abstração do não-lugar encobre o lugar material indispensável à reprodução da dialética racial formada no interior das relações entre centro e periferia. Ao indicar que afro-brasileiros e autóctone-brasileiros não possuem pertença nacional ou não cumprem função na integração nacional a construção do não-lugar deixa de considerar que a reprodução social não pode abrir mão das identidades raciais-coloniais, embarcando, de modo não deliberado, no pensamento social que critica.