A TUTELA PROTETIVA DOS TRABALHADORES PORTADORES DO VÍRUS HIV

05/09/2018

Coluna Substractum / Coordenadores Natã Ferraz, Juliana Jacob e Luciano Franco

O desenrolar do século XX trouxe significativas mudanças sociais e de paradigmas que impulsionaram a raça humana a uma busca incessante pela compreensão do desconhecido. Em se tratando da chamada Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS – Acquired Immune Deficiency Syndrome), podemos verificar um histórico de estigmas e preconceitos que contamina relações sociais até os nossos dias.

Em breve relato histórico, o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) sobreveio em meio à grandes alterações de pensamentos, de atitudes e da sociedade. De comportamentos essencialmente reprimidos à era da liberdade de expressão, os anos 60 foram marcados por uma reviravolta social.

O estigma que envolve a moléstia parte, ainda hoje, do desconhecido. Do receio de contágio e da absoluta ignorância popular acerca de sua transmissão. Com o passar dos anos, a AIDS passou a ser reconhecida como um “fenômeno social” que se concebia no plano científico, econômico, moral e cultural[1].

Quase uma década de prejulgamentos, a epidemia, por vezes, foi imputada à certos grupos de pessoas como responsáveis pela contaminação. Aos homossexuais e utilizadores de drogas injetáveis, pelo estilo de vida promiscuo e desajustado que levavam; aos haitianos, por serem a classe miserável e pobre; aos hemofílicos, pela própria doença que portavam[2].

Em que pese os avanços da medicina terem contribuído para uma certa desmistificação da epidemia ao longo dos anos, ainda vivenciamos uma luta imensurável de dignificação do soropositivo, de sua inserção social e no mercado de trabalho. Nesse contexto, colocam-se à prova direitos elementares, constitucionalmente garantidos, rompendo, assim, a barreira do razoável de forma a sucumbir a própria essência humana.

O ordenamento jurídico brasileiro assume certas peculiaridades quando nos reportamos à proteção do trabalhador soropositivo. Isso porque a legislação brasileira prevê a dispensa sem justa causa ou imotivada.

Em que pese a Constituição Federal, em seu art. 7º, I garantir ao trabalhador o direito a “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa”, sujeita este direito a uma lei complementar que ainda não foi promulgada. Nesse sentido, temos no Brasil uma maior vulnerabilidade do trabalhador quando o assunto é a rescisão contratual.

A discriminação de determinados grupos de pessoas ainda é uma prática comum no ambiente de trabalho, seja do homossexual, da mulher, do portador de enfermidade, por raça, religião ou etnia.

Com o portador de HIV não é diferente. Enquadrando-se em sua maioria na faixa etária economicamente produtiva, os soropositivos – assim como todo trabalhador – dispende a maior parte de seu tempo no local de trabalho. Local onde convive com outras pessoas, retira sua subsistência e de sua família e espera um ambiente sadio, harmonioso que contribua sobremaneira para a sua produtividade.

Um ambiente de trabalho sadio relaciona-se precipuamente com os próprios direitos de personalidade, em especial a dignidade da pessoa humana. É assente o liame entre o direito ao trabalho, garantido a todo cidadão, e a dignificação humana, sustentáculo do próprio ordenamento jurídico brasileiro.

No mesmo sentido, a Constituição Federal, em seu art. 200, atribui ao Estado o dever de promover um ambiente saudável aos trabalhadores, por ser um direito transindividual, inerente à sua própria personalidade[3]. Tem-se, por um lado, uma obrigação social do Estado, e por outro, uma obrigação do empregador, na qual “cabe o tratamento com respeito e isonômico para todos os seus funcionários”[4].

No ordenamento jurídico brasileiro ainda não existe uma tutela jurídica específica para o trabalhador portador de HIV, mas, por analogia, os tribunais vêm aplicando a Lei 9.029/95, que dispõe sobre a proibição da exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho.

Importante ressaltar ainda que o art. 5º, X da Constituição Federal consagra a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, garantindo, assim, ao trabalhador o direito de não declarar a sua sorologia positiva. Aliado a isso, cabe ao médico do trabalho averiguar exclusivamente a capacidade laborativa do trabalhador nos exames legais previstos no art. 168 da CLT, sem se referir ao estado sorológico.

Considerado um avanço na luta contra a discriminação dos portadores de HIV, em 02 de junho de 2014, o Congresso Nacional decretou a Lei 12.984 que definiu como crime a discriminação dos portadores do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e da AIDS, punindo o infrator com reclusão de um a quatro anos, além de multa. Assim, de acordo com o art. 1º, II e III, constitui crime “negar emprego ou trabalho” ou “exonerar ou demitir de seu cargo ou emprego” trabalhador soropositivo.

Em decorrência da possibilidade de dispensa imotivada pelo empregador, o Tribunal Superior do Trabalho, por meio da resolução nº 185/2012, editou a súmula 443 que “presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra moléstia grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego”.

Assim, a dispensa imotivada de trabalhador portador do Vírus da Imunodeficiência Humana presume-se discriminatória, dando direito ao soropositivo de ser reintegrado ao emprego.

Os Tribunais Superiores foram além e, em sede jurisprudencial, vêm entendendo pela inversão do ônus da prova. Quer isso dizer que, em que pese às provas procederem ao autor da ação, nos casos em que estejam sub judice dispensas imotivadas de trabalhadores soropositivos, esse ônus se inverte, cabendo ao empregador fazer prova da não discriminação.

Não restam dúvidas que o trabalhador brasileiro se encontra numa situação de vulnerabilidade maior perante o poder diretivo e disciplinar do empregador, decorrente da possibilidade de dispensa imotivada. Contudo, também não há negar que o ordenamento jurídico brasileiro vem tentando, ainda que a passos curtos, tutelar os direitos dos portadores de HIV, tratando com respeito e dignidade merecedora de qualquer ser humano.

 

[1] HERZLICH, Claudine; PIERRET, Janine. Uma doença no espaço público: a AIDS em seis jornais franceses. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, p.71-101, 2005. p. 80.

[2] BASTOS, Cristiana. Fronteiras instáveis, corpos permeáveis: alguns mapas do medo, da política e da biologia imaginária. In CUNHA, Manuela Ivone; DURAND, Jean-Yves (Orgs.), As Razões da Saúde: Vacinas, Alimentos, Medicamentos (pp. 107-121). Lisboa: Fim de Século. 2011. pp. 108 – 110.

[3] SILVA, Leda Maria Messias da; OLIVEIRA, Lívia Maria Bressani de. A diversidade sexual no ambiente de trabalho e os direitos de personalidade. Revista Jurídica Cesumar - Mestrado, Maringá, v. 12, n. 1, p.283-310, 2012. p. 292.

[4] GONÇALVES, Antonio Baptista. O direto a ter direito: a proteção ao trabalhador soropositivo. Tutela Jurídica do Trabalhador Soropositivo, São Paulo: Clássica, p.33-60, 2013. pp. 55 – 56.

 

Imagem Ilustrativa do Post: aid // Foto de: beck joy // Sem alterações

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