A tutela constitucional da crueldade contra os animais - Por Wagner Carmo

15/10/2017

 

Proêmio. 

Diz o art. 225 da Constituição Federal de 1988 que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 

O mesmo dispositivo constitucional afirma que para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, sendo vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.[1] 

Entretanto, dois instrumentos normativos foram editados entre os anos de 2016 e 2017 com a clara intenção de criar uma exceção à regra de proteção dos animais. O primeiro mecanismo foi a Lei n.º Lei nº 13.364/2016, que elevou o rodeio e a vaquejada à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial[2]. Depois, em 07/junho/2017, houve a edição da Emenda Constitucional - EC n.º 96, que acrescentou o § 7º ao art. 225 da CF/88, determinando que práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis[3]. 

A edição da EC n.º 96 e da Lei n.º 13.364/2016 representa é um típico exemplo do processo político que envolve os fatores reais de poder presentes no Congresso Nacional e, também, revela a disputa velada entre os membros do poder legislativo e os ministros do Supremo Tribunal Federal-STF; pois, pode-se se afirmar que o verdadeiro objetivo das normas não foi resguardar a cultura, mas superar a posição da jurisprudência do STF[4] contraria às atividades econômicas e culturais que submetem os animais a tratamentos cruéis. 

A pratica desportiva envolvendo animais divide opiniões, havendo quem defenda e quem abomine. As associações protetoras dos animais, por exemplo, criticam as vaquejadas, alegando que os bois e cavalos envolvidos sofrem maus tratos e que, com frequência, ficam com sequelas decorrentes das agressões e do estresse que passam. O Ministro Marco Aurélio[5], por ocasião da análise da ADI n.º 4983/CE afirmou que laudos técnicos contidos no processo demonstravam as consequências nocivas à saúde dos animais, destacando: fraturas nas patas e rabo, ruptura de ligamentos e vasos sanguíneos, eventual arrancamento do rabo e comprometimento da medula óssea. Já os defensores da atividade sustentam: a) que os animais não sofrem maus tratos; b) que a prática representa um traço centenário da cultura do povo nordestino; c) que a atividade é um esporte e, d) que a atividade gera emprego e renda. 

A partir das premissas iniciais, o presente artigo analisara o efeito da edição das normas jurídicas em face das decisões do Poder Judiciário e o conflito de normas constitucionais envolvendo o §1º e o §7º, ambos do art. 225 da CF/88. 

O direito dos animais no ordenamento jurídico. 

O direito dos animais à proteção contra tratamento cruel e contra maus tratos é um direito ambiental. O direito ambiental, na teoria clássica de Norberto Bobbio[6], é um direito de terceira geração, fundado na solidariedade e caracterizado por ser um direito difuso, coletivo, universal e fundamental. 

Em nível internacional, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de 1978, foi a primeira a estabelecer direitos e a garantir a proteção dos animais. Pela Declaração, os animais não devem ser humilhados para simples diversão ou para ganhos comerciais e, ainda, não devem ser submetidos a sofrimentos físicos ou a comportamentos antinaturais. 

No ano 2000, após debate iniciado em 1987, a ONU editou a Carta da Terra, um documento elementar e principiológico para o desenvolvimento sustentável, contendo, inclusive, regras de proteção aos animais. O art. 14 da Carta da Terra determina que o Ser Humano deve tratar todas as criaturas decentemente e protege-las da crueldade, sofrimento e matança desnecessária. Já o artigo 15 garante aos Seres Vivos tratamento que impeça a crueldade aos animais mantidos em sociedades humanas e a proteção dos animais selvagens de métodos de caça. 

No Brasil, destacam-se as seguintes normas de proteção aos animais: a) a Constituição Federal, artigo 225, §1º, inciso VII, que prescreve o dever do Estado e da Coletividade na defesa e preservação da flora e da fauna, vedando a crueldade contra animais; b) a Lei de Crimes Ambientais n.º 9.605/1998, no art. 32[7] que tipifica como crime a pratica de abuso e de maus tratos a animais silvestres, domésticos ou domesticados e, c) o Decreto-Lei n.º 24.645/1934 que define a responsabilidade do Estado pela tutela dos animais existentes no pais e define a conduta relativa a maus tratos[8]. 

O Efeito Backlash 

A edição de normas pelo Congresso Nacional que contrariem decisões do Poder Judiciário, como é o caso da EC n.º 96/2017 e da Lei Federal n.º 13.645/2016, podem representar o que a doutrina constitucionalista norte americana denomina de efeito backlash. O backlash é um tema debatido no Direito Constitucional norte-americano para se referir à oposição da sociedade às decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos em questões controvertidas e polêmicas. 

O conceito foi utilizado pelo Ministro do STF Luiz Fux no julgamento da ADC 29/DF, da ADC 30/DF e da ADI 4578/DF[9]. No voto, o Ministro utilizou o backlash como fundamento para justificar a flexibilização do princípio constitucional do estado de inocência para fins eleitorais e acolher o sentimento popular de inconformismo com a interpretação da matéria externada pela ADPF n.º 144[10],  argumentando que ou bem se realinha a interpretação da presunção de inocência, ao menos em termos de Direito Eleitoral, com o estado espiritual do povo brasileiro, ou se desacredita a Constituição.

Esse tipo de adequação ao sentimento popular é muito controvertido no constitucionalismo estadunidense. Há quem sustente que a resistência popular às interpretações judiciais à Constituição é uma ameaça à própria supremacia constitucional[11].

Contudo, não obstante a necessidade de editar leis infraconstitucional e de se adequar, constantemente, as interpretações constitucionais à realidade social, evitando o anacronismo da Constituição Federal, a situação posta entre o Congresso Nacional e o STF em relação a EC n.º 96 está longe de representar o inconformismo popular.

Segundo George Marmelstein[12], é preciso ter consciência de que o efeito backlash, mesmo gerando resultados indesejados, faz parte do jogo democrático, o que não deve impedir, obviamente, uma análise jurídica sobre a validade constitucional de qualquer lei aprovada pelo parlamento, seja ela gerada ou não pelo efeito backlash. Também é preciso ter consciência de que o efeito backlash não é um mero processo de medição de forças, em que os juízes disputam com os políticos a prerrogativa de dar a “última palavra” sobre questões sensíveis. Há muito mais em jogo. Se não tivermos uma compreensão clara sobre os fatores que influenciam a legitimidade do poder, sobre o tipo de soluções institucionais que desejamos, sobre o papel da legislação e da jurisdição, com todos os seus defeitos e virtudes, dificilmente conseguiremos resolver os conflitos que surgem da constante tensão que existe entre o direito e a política, que está na base do problema aqui tratado.

Neste sentido, eventualmente, podem ocorrer manifestações populares em favor das práticas culturais e desportivas regionais, como a farra do boi e a vaquejada, porém, a edição da EC n.º 96, não representa o inconformismo popular. Trata-se, na verdade, do efeito backlash – uma reação ao Congresso Nacional em face do protagonismo do STF na ADI n.º 4893/CE. Para entender a situação, primeiro é necessário assentar que existem fatores reais de poder que influenciam o processo legislativo e, segundo, que a cena política e jurídica do Brasil se encontra enlaçada pela disputa de poder instalada entre o Congresso Nacional e o STF., estereotipada, atualmente, pela judicialização da política em razão dos processos da operação lava jato.

O conflito de normas constitucionais envolvendo os animais e sua resolução. 

O debate envolvendo o conflito entre normas constitucionais, aquela que assegura o direito ao meio ambiente, artigo 225, e a que garante o direito às manifestações culturais enquanto expressão da pluralidade, artigo 215 não é uma novidade. 

O STF, antes de analisar a inconstitucionalidade da vaquejada, já havia apreciado: a) as brigas de galos, conforme Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 1.856/RJ, relator Ministro Celso de Mello, julgada em 26/maio/2011 e nº 2.514/SC, relator Ministro Eros Grau, apreciada em 29/junho/2005 e, b) a farra do boi, Recurso Extraordinário nº 153.531/SC, relator Ministro Francisco Rezek, acórdão apreciado em 3/junho/1997. 

Em todos os casos, o STF, utilizando a técnica da ponderação para resolver conflitos específicos entre manifestações culturais e proteção ao meio ambiente, firmou entendimento a favor de afastar práticas de tratamento inadequado a animais, mesmo dentro de contextos culturais e esportivos. Na decisão da ADI n.º 4983/CE o Ministro Marco Aurélio ponderou que os precedentes apontam a óptica adotada pelo Tribunal considerado o conflito entre normas de direitos fundamentais – mesmo presente manifestação cultural, verificada situação a implicar inequívoca crueldade contra animais, há de se interpretar, no âmbito da ponderação de direitos, normas e fatos de forma mais favorável à proteção ao meio ambiente, demostrando-se preocupação maior com a manutenção, em prol dos cidadãos de hoje e de amanhã, das condições ecologicamente equilibradas para uma vida mais saudável e segura. 

Com a decisão, o STF entendeu que a expressão crueldade, constante da parte final do inciso VII do § 1º do art. 225 da CF/88, engloba a tortura e os maus-tratos sofridos pelos animais durante as práticas culturais e desportivas. 

O controle de constitucionalidade da EC n.º 96.

Embora possa parecer paradoxal, o sistema constitucional brasileiro admite o controle de constitucionalidade das emendas constitucionais. O STF, na ADI n.º 2.362[13], fixou que a eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de "originário") não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas.

No caso, conforme explicado, a proteção dos animais contra tratamentos cruéis e maus tratados é um direito tutelado pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, um direito fundamental de terceira geração que constituiu cláusulas pétreas[14], não podendo ser abolido nem restringido, ainda que por emenda constitucional.

Conclusão.

Ao término, resta configurado que a Constituição Federal, a partir da EC n.º 96, passou a autoriza a pratica de crueldade contra os animais; que a EC n.º 96 não representa, necessariamente, um inconformismo popular e que sua constitucionalidade é, no mínimo, duvidosa. 

[1] Art. 225.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

 

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

[2] Lei nº 13.364/2016

Art. 1º Esta Lei eleva o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial.

Art. 2º O Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, passam a ser considerados manifestações da cultura nacional.

[3]BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília. Senado Federal, 1988. Disponível em www.planalto.gov.br – Acesso em 02 de out. 2017.  

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.   (Incluído pela Emenda Constitucional nº 96, de 2017)

[4] STF. Plenário. ADI 4983/CE, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 06/10/2016 (Info 842). Inconstitucionalidade da Lei nº 15.299/2013 do Estado do Ceara. 

[5] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326838. Acessado em 10 de out. 2017. 

[6] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: ed. Campus, 1992 

[7] Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

[8] Art. 1º. Todos os animais existentes no País são tutelados do Estado.          
Art. 3º Consideram-se maus tratos:

V abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem coma deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária.

[9] Informativo n.º 648 do STF

[10] ADPF 144, Rel. Min. Celso de Mello, DJe-035 – 25/02/2010.

[13] ADI 2.356 MC e ADI 2.362 MC, rel. p/ o ac. min. Ayres Britto, j. 25-11-2010, P, DJE de 19-5-2011

[14] Art. 60

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

 

Imagem Ilustrativa do Post: DetrásDe La Reja // Foto de: Davide Novelo // Sem alterações

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