INTRODUÇÃO
Em março do ano de 2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou e divulgou o Plano de Gestão para o funcionamento de Varas Criminais e de Execução Penal[1], cujo propósito é a promoção de uma justiça mais célere e efetiva, elencando, dentre as sugestões, a ideia de que o juiz aplique ao procedimento ordinário, por analogia, o disposto no artigo 409 do Código de Processo Penal (CPP), que versa sobre o Tribunal do Júri, estabelecendo, no prazo de 5 (cinco) dias, a manifestação do Ministério Público acerca de preliminares e documentos aventados na resposta defensiva.
Contextualizando a discussão, o nosso CPP prevê que oferecida a denúncia com todas as questões que circundam o fato delituoso, rol de testemunhas e diligências, o acusado será citado para a apresentação da resposta à acusação, a qual, apresentada, autorizará o juiz a absolver o acusado sumariamente (art. 397) ou determinar o prosseguimento do feito aprazando a audiência de instrução e julgamento na linha dos artigos 399 e seguintes do CPP, tencionando a sugestão acima mencionada de introduzir uma manifestação do Ministério Público acerca da resposta à acusação quando essa trazer documentos e preliminares.
Encampada a sugestão por muitos juízes e tribunais, a questão bateu às portas dos tribunais superiores em diversas oportunidades, destacando-se, em sentido favorável a sugestão, o Habeas Corpus n. 105739/RJ, da 1ª Turma do STF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, no qual asseverou-se que a propiciação de manifestação do Ministério Público sobre e após a resposta à acusação não constitui nulidade, mas mera irregularidade, inclusive, avultando essa oportunidade como ato de potencialização do contraditório. Anote-se que, no âmbito do STJ a questão também foi enfrentada[2] e a esteira seguida foi a do Supremo Tribunal Federal.
Dessa forma, o breve estudo se dispõe a responder ou trazer à discussão se o devido processo legal assegura vista ao Ministério Público após a juntada a resposta à acusação.
O LIMITE CONSTITUCIONAL DO CNJ
Inicialmente, cabe relembrar que o CNJ, alçado ao patamar constitucional[3], foi introduzido pela Emenda Constitucional n. 55/04, representando uma implementação de controle externo do Poder Judiciário, cujas atribuições são devidamente traçadas na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), não existindo, entre elas, o poder de legislar.
O texto constitucional, em uma leitura atenta, não dá margem para que o CNJ substitua a vontade geral (Poder Legislativo), mesmo por meio de atos administrativos, conforme obtempera Lênio Streck, Ingo Sarlet e Clemerson Cléve:
No Estado Democrático de Direito, é inconcebível permitir-se a um órgão administrativo expedir atos (resoluções, decretos, portarias, etc) com força de lei, cujos reflexos possam avançar sobre direitos fundamentais, circunstância que faz com que tais atos sejam ao mesmo tempo legislativos e executivos, isto é, como bem lembra Canotilho, a um só tempo “leis e execução de leis”. Trata-se – e a lembrança vem de Canotilho – de atos que foram designados por Carl Schmitt com o nome de “medidas”. Essa distinção de Schmitt é sufragada por Forsthoff, que, levando em conta as transformações sociais e políticas ocorridas depois de primeira guerra, considerava inevitável a adoção, por parte do legislador, de medidas legais destinadas a resolver problemas concretos, econômicos e sociais. Daí a distinção entre leis-norma e leis de medida. Na verdade, as leis-medida se caracterizam como leis concretas. A base da distinção nas leis concretas não é a contraposição entre geral-individual, mas entre abstrato-concreto (K.Stern). O interesse estará em saber se uma lei pretende regular em abstrato determinados fatos ou se se destina especialmente a certos fatos ou situações concretas. Também aqui a consideração fundamental radicaria no fato de uma lei poder ser geral, mas pensada em face de determinado pressuposto fático que acabaria por lhe conferir uma dimensão individual, porventura inconstitucional[4].
A par disso, tem-se que o CNJ ao emitir essa sugestão e os juízes ao implementarem-na, atuam como legisladores positivos, pois criam uma fase processual (tréplica do acusador) não prevista no Código de Processo Penal, ressuscitando, a bem da verdade, a redação final do parágrafo 3º do artigo 396-A do Projeto de Lei nº 4.207/2001[5], o qual, à semelhança do artigo 409 do CPP, instituía a mencionada tréplica.
No trâmite do citado projeto, em revisão, o Senado Federal, sugeriu a supressão do supramencionado parágrafo, entendendo que a abertura de vista ao órgão responsável pela acusação após a apresentação da resposta à acusação, feriria, frontalmente, a garantia da ampla defesa, porquanto o acusado não seria o último a se pronunciar nos autos.
Dessarte, parece-nos que o CNJ e o Poder judiciário, à revelia do Poder Legislativo, com a implementação da sugestão alhures mencionada, pretende dar vida ao suprimido parágrafo 3º do artigo 396-A do Projeto de Lei nº 4.207/2001, soando desarrazoado e inconstitucional tal prática, dado que malfere a separação dos Poderes, introduzindo uma prática ao arrepio do Código de Processo Penal e em patente afronta à Constituição da República Federativa do Brasil.
A DEFESA FALA POR ÚLTIMO
Um dos argumentos levantados no Habeas Corpus n. 105739/RJ, da 1ª Turma do STF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, o qual serviu de supedâneo para decisões posteriores, seria que a tréplica do Ministério Público representaria observância do contraditório, inexistindo, portanto, macula a quaisquer princípios constitucionais.
Entretanto, em um primeiro momento, assente-se que tal prática suprime do acusado o direito de falar por último -- corolário da ampla defesa, remontando à Lei da Traição (Treason Act) inglesa de 1669, consagrando-o como componente indispensável da defesa técnica no processo penal[6] -- pois coloca em seu lugar o órgão acusador, que acaba acusando, analisando a formação da estratégia defensiva e rebatendo-a antes da decisão preliminar do juiz acerca de eventual absolvição sumária ou prosseguimento do feito.
Com efeito, nota-se que, em que pesem os laivos inquisitivos existentes em nosso ordenamento processual penal, a sua estrutura, na maioria das vezes, reafirma que sempre a última palavra antes de qualquer decisão deve ser da defesa, fato refletido na ordem de inquirição das testemunhas; interrogatório do réu; pronunciamento primeiro do acusador em relação às diligência preliminares; alegações finais primeiro pelo acusador e só após pela defesa e etc.
Aliás, nesse tom, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto, ao proferir seu voto no Habeas Corpus n. 87.926, de São Paulo (Relator Ministro Cezar Peluso), obtemperou que:
[...] a defesa tem de falar por último, senão não é defesa. A defesa pressupõe um ataque. Quem ataca tem precedência lógica na ordem dos acontecimentos, na ordem da conduta. Só se fala de defesa em função do ataque; só se fala de reação em função de ação; só se fala de contrabater em função de uma agressão; alguém bate e alguém vai contrabater, vai reagir. Então, é elementar, em processo penal, que o órgão de acusação fale primeiro e os advogados de defesa falem por último.
Nessa órbita, não se pode perder de vista que o Ministério Público deve provar um fato típico, ilícito e culpável, com todas as suas circunstâncias relevantes, levantando a hipótese acusatória primeiro (art. 41 do CPP), de maneira que ao réu cabe opor-se à pretensão acusatória, precipuamente porque é parte hipossuficiente dentro do processo penal, haja vista que enfrenta o rolo compressor Estatal, que o quer ver sujeito ao seu aparato de persecução penal, de modo que, dentro dessa concepção, seria temerário desequilíbrio a fala por último do acusador, mesmo após ter deduzido em juízo uma acusação que deveria reunir o substrato mínimo probatório ex ante.
Assim, percebe-se que, apesar dos argumentos expendidos favoráveis a sugestão do CNJ, tem-se de um lado, em regra, o Ministério Público, com uma estrutura e um aparato investigatório razoável, e de outro o réu, parte frágil da relação processual, posto que sujeito passivo do processo penal, de forma que, dessa relação e situação, observar o direito da defesa falar por último é equilibrar a balança, mantendo incólume a paridade de armas que decorre do contraditório[7].
A VIOLAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Conforme anteriormente afirmado, não há, objetivamente, a previsão legal da “tréplica” da acusação após a apresentação da resposta à acusação, tornando, indubitavelmente, a implementação de tal prática anômala ao procedimento.
Nesse aspecto, analisando-se a questão à luz do devido processo legal, previsto no artigo 5º, inciso LV, da CRFB, verifica-se que a intimação do Ministério Público para replicar a defesa, ao arrepio do procedimento, viola a garantia do procedimento tipificado, o qual consiste em uma garantia não expressa, subsumida na garantia em sentindo amplo do devido processo legal[8].
Aliás, sobre o devido processo legal, lapidares são as seguintes lições:
O devido processo legal tem, em verdade, duplo aspecto: (a) há o âmbito processual, também chamado de devido processo legal procedimental; (b) há o âmbito substancial, também chamado de devido processo legal substancial (ou material ou substantivo).
Aspecto procedimental - O devido processo legal procedimental consiste na interpretação mais tradicional feita entre nós: Maria Rosynete Oliveira Lima afirma que "devido processo legal processual, procedimental, ou adjetivo significa, basicamente um procedimento ordenado. Assim, o aplicador do Direito deve estar atento para não atingir quaisquer dos interesses protegidos pela garantia, sem antes trilhar por certos caminhos".[9]
Portanto, não obstante as posições contrárias, a prática sugerida pelo CNJ, desrespeita de modo translúcido o devido processo legal, na medida em que o Código de Processo Penal não faz qualquer previsão nos ritos ordinário e sumário, de o Ministério Público se manifestar acerca da resposta à acusação apresentada pelo réu antes dela ser apreciada pelo juiz da causa, bastando a simples leitura dos artigos 396-A e seguintes para que se coadune com essa posição.
CONCLUSÃO
Em epítome, verifica-se que o CNJ, à revelia do Poder Legislativo e de modo antidemocrático, tenta criar procedimento não previsto em lei, cuja implementação, infelizmente, é feita por alguns juízes e tribunais, violando, ao mesmo tempo, a ampla defesa, o contraditório, o devido processo legal e o direito da defesa falar por último.
Esquecem-se que o processo penal, mais do que mera instrumentalização da pena, existe para proteger o acusado do arbítrio do Estado na pretensão punitiva, constituindo a forma como efetiva garantia e limite de poder, de modo que impõe-se à jurisdição o efetivo cumprimento dos princípios constitucionais, sob pena de esvaziarmos o sentido da nossa tão combalida Constituição Federal.
Assim, a sugestão do CNJ e a afirmação dessa por alguns juízes, cujos tribunais em que se enquadram fecham os olhos para essa prática, acarreta, à evidência, a perpetuação de tal prática ilegal, a qual fora criada justamente por quem deveria vigiar, ficando o questionamento: quem vigia os vigias?
[1] http://www.cnj.jus.br/images/programas/justica-criminal/plano-gestao-varas-criminais-cnj.pdf
[2] HC n৹ 243260/SP, 5ª Turma, Rel. Laurita Vaz, j. 20/05/2014
[3] Artigo 103-B da CRFB.
[4] STRECK, Lenio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgang et al. Os limites constitucionais das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). JusNavigandi, Teresina, ano 10, n. 888, 8 dez. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7694>. Acesso em: 19 de julho de 2016.
[5] Art. 396-A, §3º, do Projeto de Lei nº 4.207/2001, apresentada pela Câmara dos Deputados: “Art. 396-A. [...] §3o Apresentada a defesa, o juiz ouvirá o Ministério Público ou o querelante sobre preliminares e documentos, em 5 (cinco) dias. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=26557
[6] MALAN, Diogo. Defesa Técnica e seus Consectários Lógicos na Carta Política de 1988. In Processo Penal e Democracia – Estudos em Homenagem aos 20 Anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 180.
[7] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no Processo Penal Brasileiro. 2ª ed. rev. e atual.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 177.
[8] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 6° Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 111.
[9] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal [livro eletrônico]. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 27
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