Por Jorge Coutinho Paschoal – 02/02/2017
Dentre os princípios que animam o processo penal, dois deles se contrapõem: o princípio da obrigatoriedade na persecução penal e o princípio da oportunidade.
No primeiro, o acusador não tem margem de escolha: havendo indícios da prática delitiva, e as condições para tanto, tem o dever de propor a demanda.
Já no segundo, pode o acusador recusar o exercício da ação quando o ilícito for considerado de ínfima lesividade ou quando não for recomendável sua persecução. Há um critério de custo-benefício, eis que tais sistemas baseiam-se em considerações quanto à “utilidade-pública” ou “interesse social” na persecução.
Nosso sistema processual abraçou a regra da obrigatoriedade na persecução penal, pois, à parte acusatória, uma vez presentes os requisitos legais para a ação, não é conferida qualquer margem de escolha entre acusar ou não, de forma que, presentes as condições que legitimem o ajuizamento, deverá necessariamente exercitá-la.
Apenas em hipóteses excepcionais, para as ações penais de iniciativa privada, vigora disponibilidade por parte da vítima, observando-se que nas ações penais públicas condicionadas, fica o seu exercício a depender de representação do ofendido.
A adoção de zonas de consenso em nossa justiça penal, com a Lei 9.099/95, muito embora tenha suscitado o debate, não implicou qualquer mitigação ao princípio da obrigatoriedade na persecução penal das ações penais de natureza pública.
Segundo consta do artigo 69, da lei 9.099/95, “a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários”. Como ocorre nos procedimentos comuns, a autoridade, tendo tomado conhecimento do cometimento de um fato, em tese, delituoso, ainda que de menor potencial, deverá dar seguimento ao caso.
Dessa forma, não se instituiu, em sede de justiça consensual no Brasil, o princípio da oportunidade, de forma alguma.
Nesse sentido, mostram-se esclarecedoras as assertivas de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes:
“Convém esclarecer, desde logo, que a lei, no âmbito do Juizado Especial, ao lado de favorecer a ‘conciliação’, reservou pouco espaço para a tão difundida ‘barganha penal’. No que concerne à transação que leva à aplicação imediata de pena, não estamos próximos nem do guilty plea (declarar-se culpado) nem do plea bargaining (que permite amplo acordo entre acusador e autor da infração sobre os fatos, a qualificação jurídica e a pena). O Ministério Público, nos termos do art. 76, continua vinculado ao princípio da legalidade processual (obrigatoriedade, ‘dever agir’), mas sua ‘proposta’, presentes os requisitos legais, somente pode versar sobre uma pena alternativa (restritiva ou multa), nunca sobre uma pena privativa de liberdade. Como se percebe, ele dispõe sobre a sanção penal original, mas não pode deixar de agir dentro dos parâmetros alternativos”[1].
Assim, continua em vigor o princípio da obrigatoriedade, ou da legalidade[2], quanto à propositura da ação penal pública.
É comum também utilizar do termo “discricionariedade regulada em lei” para explicar o que ocorre em nossa justiça consensual, pois muito embora não se tenha adotado o princípio da oportunidade, em sua forma pura, a regra da obrigatoriedade teria cedido espaço a certas doses de oportunidade, previstas em lei, o que se daria somente quando presentes os requisitos legais para a proposta de transação penal. Há quem diga ser o termo “discricionariedade regulada em lei” em si contraditório, pois o que é discricionário (com margem de escolha), não pode ser regulado. Discricionariedade não pode ser confundida com arbitrariedade, de toda forma.
O ponto da questão é que o Ministério Público, ou qualquer outro sujeito, ao propor a transação penal, já está exercendo a ação penal, pois, a rigor, para a proposta do acordo há necessidade de indicação do cometimento de um fato, em tese, delituoso, havendo já uma imputação[3], até para se legitimar a aplicação da pena
Dessa forma, a nosso ver, a parte acusatória, em verdade, não estaria renunciando a nada ao transacionar com o imputado, pois, ao propor o acordo, está exercendo a ação, que levará, se o acordo for aceito pelo imputado, e desde que homologada em juízo, à aplicação imediata de pena restritiva de direitos, ou multa[4].
Aduz, quanto a isso, Márcio Franklin Nogueira: “é bom observar que, em realidade, o Ministério Público não transige com nada ou quase nada, porque não tem direito a uma determinada pena, mas tão-só, e se for o caso, à condenação, a fim de que se aplique uma pena”[5].
Por essa ótica, seria discutível a natureza de acordo da transação penal, pois, para que haja acordo, deve haver concessões recíprocas e, de certa forma, paritárias.
O que ocorre na transação penal não é exatamente isso, pois, para o Estado, não haverá concessão significativa de nada se em comparação com as vantagens advindas com aplicação imediata de pena.
Assim, a previsão de consenso penal, em nosso ordenamento jurídico, não fez uma concessão ao princípio da oportunidade nas ações penais públicas, tendo previsto apenas possibilidades de resolução mais céleres dos casos, e por que não dizer, antecipadas, dos conflitos penais, que não deixam de obedecer à obrigatoriedade, caso a autoridade competente tome conhecimento da ocorrência das infrações penais para as quais seja possibilitado o consenso entre as partes.
Segundo explica Nereu José Giacomolli: “o que existe é uma normatização de um certo poder de disponibilidade sobre a espécie de pretensão a ser deduzida e sobre a continuação ou não do processo”[6].
Dessa forma, não nos parece que o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública tenha sido mitigado pela lei dos juizados especiais criminais, sopesada a constatação de que, na realidade prática, há diversas formas de interação entre legalidade e o sistema da conveniência, ou oportunidade, dada a própria subjetividade do acusador na dedução da demanda penal.
Notas e Referências:
[1] GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, p. 48.
[2] Prefere o uso do termo princípio da legalidade, em vez de obrigatoriedade, Márcio Franklin Nogueira, o qual sustenta, “a fim de tornar mais claro que o dever legal de o Ministério Público exercitar a ação penal é, na verdade, uma decorrência do próprio princípio da legalidade, que, numa perspectiva mais ampla, informa a atuação dos órgãos públicos no chamado Estado de Direito” (Transação penal. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 44). Critica o uso dessa terminologia, Antonio Scarance Fernandes, para quem “tanto o princípio da obrigatoriedade quanto o princípio da oportunidade estão presos aos termos da lei, sendo, portanto, princípios legais”, de forma que “mais expressa o conteúdo do princípio a denominação princípio da obrigatoriedade, ou seja, princípio segundo o qual há obrigatoriedade de ser ajuizada ação penal pelo Ministério Público” (Processo penal constitucional. São Paulo, RT, 2007, pp. 206-207, n. rodapé 6).
[3] Cf. nesse sentido: COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. “Manifesto contra os juizados especiais criminais”. In: Alexandre Wunderlich e Salo de Carvalho (orgs.). Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 11-12; GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal na perspectiva das garantias constitucionais: Alemanha, Espanha, Itália, Portugal, Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 330; JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 10.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 350; KARAM, Maria Lúcia. Juizados especiais criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: RT, 2004, p. 88; NOGUEIRA, Márcio Franklin. Transação penal. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 184.
[4] David Teixeira de Azevedo discorre que “no sistema consensual fundado na barganha, cede apenas uma das partes, e a mais frágil: obtém a acusação todos os frutos de seu trabalho, qual seja a pena criminal” (A culpa penal e a lei 9.099/95. In: Atualidades no direito e no processo penal. São Paulo, Método, 2001, p. 77). Muito embora não compartilhemos, com toda vênia, das premissas e da conclusão do autor, não há como negar que a parte acusatória é a que tem menos a perder com a efetivação do acordo.
[5] Transação penal. São Paulo: RT, 2003, p. 163.
[6] Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal na perspectiva das garantias constitucionais: Alemanha, Espanha, Itália, Portugal, Brasil. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2006, p. 308.
. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .
Imagem Ilustrativa do Post: Imprisoned Soul.... // Foto de: pedro alves // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/sevlaordep/22548690218
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.