A testemunha Psicólogo: instrumentalização inconsciente?

03/08/2017

Por Alexandre Morais da Rosa e Maíra Marchi Gomes - 03/08/2017

Só uma palavra me devora: Aquela que meu coração não diz Só o que me cega, o que me faz infeliz É o brilho do olhar que eu não sofri

(Jura eterna. Sueli Costa / Abel Silva)

O psicólogo, em suas relações com o sistema judicial, frequentemente se coloca e é colocado em situações de risco. O presente texto restringe-se a abordar o risco de perder sua identidade profissional. Mais especificamente, de como ser ouvido em audiências é uma prova de fidelidade, na qual este que exerce a psicologia é colocado na situação de ter de decidir entre, por um lado - cumprir o juramento oral que fez em sua graduação, somado àquele implícito, contratual, ao assinar a carteira do Conselho Regional de Psicologia - e, por outro, cumprir o juramento oral que faz na presença do juiz, por vezes com feições até religiosas, haja vista os símbolos cristãos encontrados em alguns fóruns.

O Código de Processo Penal não veda que o psicólogo seja perito, nem testemunha. Entretanto, há grande diferença entre a prova pericial e a prova testemunhal. A prova testemunhal é sobre o fato e seu registro, já a prova pericial se apoia na aplicação de conhecimentos técnicos aos vestígios deixados após a ocorrência dos fatos. A testemunha, por evidente, deve declarar o que sabe de fatos percebidos por seus sentidos, a partir de sua percepção sensorial[1]. Portanto o psicólogo que tenha elaborado laudo pericial não presenciou os fatos. E não se diga que se aplicaria a figura da testemunha indireta, conquanto não seja testemunha visual, é auricular – ouviu falar do fato[2] – porque embora o psicólogo, para a elaboração do laudo, “ouça falar do fato” a partir do atendimento de uma vítima, sua atuação se dá na esfera pericial, não tendo participado da esfera do acontecimento do fato em nenhum dos seus reflexos, pois aplicará seus conhecimentos técnicos sobre situação que lhe seja apresentada, a partir do relato daquele que se diz vítima, ou seja, avaliará os vestígios indiretos de fatos passados.

Assim, o psicólogo que haja atuado como perito, caso seja arrolado como testemunha deve ser inquirido, portanto, apenas sobre dúvidas acerca do laudo que tenha apresentado, conforme o inciso I do § 5º do artigo 159 do Código de Processo Penal[3] assinala.

A esse respeito, a Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo emitiu a seguinte recomendação[4], na qual fica clara a distinção que se deve haver entre o perito e a testemunha:

RECOMENDAÇÃO CG Nº. 1495/2014

(Processo nº. 2013/95603) A Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo RECOMENDA que, nos processos da Infância e da Juventude em que há o contraditório, bem como nos feitos da Família e Sucessões, os psicólogos e assistentes sociais judiciários devem atuar como peritos do juízo e não como testemunhas, exceto se o fato a ser provado ocorreu durante o atendimento realizado pelos referidos técnicos judiciários.

Intimado para depor na condição de testemunha, resta àquele que exerce a psicologia torcer (ou orar...como preferir!) para que os questionamentos a ele dirigidos sejam de ordem técnica, e não “vivencial”. O psicólogo entra na sala de audiências na expectativa de saber se ele será ou não visto como ele é, ou, em casos nos quais este profissional tem medo de operadores do Direito, em dúvida sobre ser ou não aquilo que é[5]. Sim, porque é próprio do aterrorizado passar a pensar, pelo menos em parte e em alguns instantes, como o aterrorizador.

Aparentemente é fácil compreender que o psicólogo que ali se encontra para falar de um caso que só o conhece porque junto a ele atuou nessa condição, profissionalmente, e, portanto, não pode responder questões semelhantes às formuladas a quem presenciou os fatos, ou deles tomou conhecimento em qualquer outro contexto que não o do exercício profissional. Mas não parece ser para promotores e juízes que, por exemplo, impedem ao psicólogo de consultarem no momento da audiência o relatório de atendimento que ele produziu, independente da quantidade de tempo transcorrido entre o atendimento e a audiência, bem como da quantidade de atendimentos diários que realiza a diferentes sujeitos envolvidos em semelhantes situações.

Nestas situações, nem é necessário que o psicólogo recorra ao seu código de ética para que a melhor resposta pareça ser “não lembro”, ou sua variante “não sei”. Ele pode simplesmente recorrer a uma espécie de “código de saúde mental”, caso seja terapeutizado o suficiente para não lembrar as feições dos atendidos, os detalhes dos casos (pelo menos não de todos) que atende, especialmente após vários anos de atendimento. Aliás, as respostas “não lembro” e “não sei” são bem comuns por parte de testemunhas, por diferentes razões. Parece que o promotor e o juiz conseguem, tendo ou não consciência disto, o que desejam: que o psicólogo apresente-se como uma testemunha.

Talvez a fala do psicólogo assim seja tratada para que a ela se atribua ou não um diferencial conforme ela atenda ou não aos interesses dos operadores do Direito. Como se o operador do Direito procurasse preservar a liberdade de dizer “o psicólogo disse que...” ou simplesmente desconsiderar o que ele falou, tratando seu depoimento como mais um elemento do conjunto probatório. Neste último caso, pode, por exemplo, desqualificar a fala do profissional argumentando que foi uma alegação isolada no conjunto probatório. Sabe-se que este não é o caso, por exemplo, de um laudo pericial, prova cuja natureza é diferente da prova testemunhal, como visto acima.

Para complemento das reflexões que aqui se realiza, é fundamental observar que o psicólogo é convidado a pisar em fóruns, via de regra, pelo Ministério Público. Sim, porque psicólogos servidores públicos atuam nas varas de infância e juventude (atuando em casos de atos infracionais, de destituição de poder familiar e processos de adoção como um todo, discorrendo sobre candidatos a adotantes e adotados), varas de família (em processos de disputa de guarda, revisão de visitas, interdições, heranças, etc.) e varas de violência doméstica (em avaliações de danos a vítimas, dentre outras ações). E porque, além destes, visitam o fórum os psicólogos da polícia que são ouvidos em julgamentos de varas criminais, e psicólogos de instituições responsáveis pela execução de medidas socioeducativas e acolhimento de crianças e adolescentes. Portanto, todos os psicólogos entram no fórum de braços dados com o Ministério Público.

A única exceção são os assistentes técnicos[6], que são contratados pelas partes em quaisquer tipos de ação, após juiz autorizar petição do defensor da parte em questão. Estes assistentes acompanham o trabalho do suposto “perito oficial”[7] (aqueles psicólogos das varas de família, infância e juventude), para eventualmente questionar a metodologia utilizada, informações levantadas e não levantadas, conclusões, etc. Apenas nestes casos, então, é que o tapete vermelho sob os pés do psicólogo é estendido pela defesa. Porém, como facilmente se conclui, só partes ricas podem contratar um assistente técnico e, por conseqüência, só os ricos têm a certeza de ter um psicólogo que fale sobre o seu caso. Os demais ficam sujeitados ao gosto que a fala do psicólogo terá para o promotor e juiz. Se agradar, terão um psicólogo; senão, terão uma testemunha.

Disto se conclui que quem tem maior interesse em tornar a identidade do psicólogo uma etiqueta em branco para que nela se escreva o que melhor acompanhar o seu próprio discurso é o Ministério Público e, se estamos falando de audiências, a magistratura. Há que se pensar na possibilidade de os psicólogos vestirem um uniforme quando em audiência, ou no mínimo uma camiseta com os dizeres “I’m a psychologist”.

Este dado bastaria, por si só, para nos levar a pensar que esta conjuntura não busca, diferentemente do propagado por operadores do Direito, proteger crianças e adolescentes de situações potencialmente vitimizadoras como um depoimento judicial, mas sim ter maior liberdade para acusar ou condenar alguém. Assim tratando a fala do psicólogo (bem como o documento por ele apresentado), como uma prova ou não, tem-se maior margem de manobra para fundamentar uma necessidade de perda do poder familiar, uma não indicação de candidatos a adotantes e adotados, a aplicação de uma medida socioeducativa, uma acusação ou condenação de autores de crimes contra crianças, adolescentes e mulheres, etc.

Um destaque merece ser dado ao interesse de se manobrar a fala do psicólogo nos casos de disputa de guarda e conflitos entre filhos a respeito de herança e/ou cuidados de pais. Isto porque é do campo da perversidade a postura do operador do Direito que acolhe ou não um posicionamento escrito ou verbal de um profissional dependendo se ele lhe permite não se responsabilizar pela decisão que é dele, promotor ou juiz. De fato talvez seja do campo do impossível decidir quem deva/pode ser responsável por uma criança (pai ou mãe), quem deve/pode ser responsável por um pai ou mãe idoso (um filho ou outro). Nelson Rodrigues ajudar-nos-ia a entender que Vara de Família poderia ser facilmente chamada ou apelidada de Vara de Amor e Vara de Guerra!

Na verdade, estabelecer previsões sobre o futuro de uma criança ou adolescente, bem como sobre a condição que alguém, em tempo futuro, apresentará ou não de cuidar ou não de uma criança ou adolescente é prática de sortistas. Também são, portanto, algo enigmático. E daí se faz interessante ao operador do Direito esperar que alguém decida por ele, mas, acima de tudo, decida em seu nome. Em outros termos, decida o que ele deseja decidir, e não pode assumir.

Enfim, psicólogo não decidiu trabalhar decidindo a vida das pessoas, sequer acusando ou defendendo. Quem decidiu fazer disto uma profissão, que se ocupe disto. Não se deveria usar o psicólogo para se ferrar alguém. Nem psicólogo, nem qualquer outro sujeito que pisa naquele ambiente onde se carrega de, e também descarrega, mágoas, ódios, culpas, frustrações, deveria ser usado. Psicólogos, vítimas, testemunhas, autores, etc., não são objetos do sistema judicial. As partes, em particular, deveriam ser sujeitos das ações.

No caso particular do psicólogo, é tratado tanto como testemunha quanto como perito, mas de acordo com o interesse do Ministério Público e juiz. Não há legislação que o ampare para que se posicione enquanto perito sempre. Daqui a pouco psicólogos responderão às perguntas com um “ao seu dispor”. Mas isso equivale a aquiescer com a instrumentalização que, (in)conscientemente, acusação e julgador proporcionam. A razão da decisão e a responsabilidade, o peso, daí advindos não podem ser deslocados para o psicólogo, transferindo-o para a posição de testemunha que não viu, nem participou do contexto dos fatos. Há limites éticos, técnicos e lógicos. Não se podem confundir os locais de atuação.


Notas e Referências:

[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. Salvador: Juspodivm, 2016. P. 628.

[2] Idem, p. 628-629.

[3] Durante o curso do processo judicial, é permitido às partes, quanto à perícia: I – requerer a oitiva dos peritos para esclarecerem a prova ou para responderem a quesitos, desde que o mandado de intimação e os quesitos ou questões a serem esclarecidas sejam encaminhados com antecedência mínima de 10 (dez) dias, podendo apresentar as respostas em laudo complementar.

[4] https://tjsp.jus.br/Corregedoria/Comunicados/Comunicado?codigoComunicado=6353&pagina=1

[5]A propósito, discussões pertinentes a esta coluna já foram realizadas em http://emporiododireito.com.br/ser-o-que-se-e-impossiveis-contribuicoes-da-psicologia-ao-direito-por-maira-marchi-gomes/.

[6] Segundo o Código de Processo Penal, artigo 159, §§ 3º e 4º: § 3º Serão facultadas ao Ministério Público, ao assistente de acusação, ao ofendido, ao querelante e ao acusado a formulação de quesitos e indicação de assistente técnico. § 4º O assistente técnico atuará a partir de sua admissão pelo juiz e após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelos peritos oficiais, sendo as partes intimadas desta decisão.

[7] Todos estes servidores, é essencial assinalar, não exercem o cargo de perito, mas ocupam o posto de psicólogo judicial, auxiliar do juízo. A propósito, na mesma situação encontram-se os assistentes sociais.


 Alexandre Morais da Rosa. Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com / Facebook aqui. .


MAÍRA. Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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