A tese de nulidade processual por misoginia contra uma mulher pobre, negra, religiosa, artista no Caso Flordelis

26/07/2021

Na companhia da colega Janira Rocha e do colega Rodrigo Faucz Pereira e Silva, ousamos escrever aquilo que cremos, com a força da alma, precisa tornar-se um marco na discussão das acusações contra mulheres.

Para situar leitoras e leitores a respeito do tema, assumimos a defesa de Flordelis logo depois de prolatada a pronúncia. Num esforço imenso, dividindo as tarefas e empenhados na tarefa hercúlea de conhecer todo o volumoso processo, partimos para a leitura cuidadosa de cada uma das mais de 20mil folhas dos autos, além de áudios e horas de audiências.

Num país de processos demorados, o certo é que praticamente só a defesa possui prazos curtos e peremptórios. Há quem exagere e diga que apenas a defesa cumpre prazos. Pois, em aproximadamente três semanas, apresentamos várias petições, além de razões de recursos especial e extraordinário, embargos declaratórios, exceção de suspeição da Juíza de Direito e, finalmente, as razões recursais cujo trecho será abaixo transcrito.

O processo envolvendo Flordelis advém de um primeiro caso, onde dois filhos confessaram a prática do homicídio do Pastor Anderson. Na segunda investida, a acusação narra a seguinte situação: “No dia 16 de junho de 2019, por volta das 03h:30min, na residência situada à Rua Cruzeiro, n.º 145, Bairro Badu, Pendotiba, Niterói/RJ, FLÁVIO DOS SANTOS RODRIGUES, agindo livre e conscientemente, em comunhão de ações e desígnios com LUCAS CEZAR DOS SANTOS DE SOUZA e com os ora Denunciados FLORDELIS DOS SANTOS DE SOUZA, MARZY TEIXEIRA DA SILVA, SIMONE DOS SANTOS RODRIGUES, ANDRÉ LUIZ DE OLIVEIRA, RAYANE DOS SANTOS OLIVEIRA e CARLOS UBIRACI FRANCISCO DA SILVA, com inequívoca vontade de matar, desferiu diversos disparos de arma de fogo contra o corpo da vítima ANDERSON DO CARMO DE SOUZA, vindo a nele produzir os ferimentos descritos no Auto de Exame Cadavérico constante no índice 19, que por sua natureza e sede foram a causa da morte da vítima.”

Com a denúncia, o Ministério Público apresentou uma peça denominada “COTA MINISTERIAL”, na qual ratifica, reafirma e ressalta a estratégia policial de destruição da imagem da mulher negra e pobre que ousou desafiar o status quo para ascender aos estamentos apenas permitidos aos brancos bem aquinhoados. Como tentamos demonstrar nas razões apresentadas ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e que serão adiante reproduzidas, há uma estratégia de ataque à acusada Flordelis que mostra uma face perversa do processo penal brasileiro: a MISOGINIA ESTRUTURAL.

A primeira leitura do caso mostra, sem qualquer dúvida, que está em curso uma postura misógina, sexista, racista, capaz de aniquilar as chances de defesa da mulher acusada. Como essa questão ficou muito evidente na perda de imparcialidade da atuação judicial, oferecemos, logo depois do julgamento dos Embargos Declaratórios, pela manifestação no despacho, uma exceção de suspeição. Na arguição, foram sustentados, em nove tópicos, situações que demonstram a perda do equilíbrio processual, emocional e na relação com as partes. A arguição foi afastada pela Magistrada e está, neste momento, tramitando perante a Segunda Instância.

De qualquer forma, por ter sido a defesa intimada a apresentar razões de RSE, o tema voltou a ser enfrentado, porém, agora, como causa de nulidade. É que, em manifestações e atitudes específicas, a acusação e a autoridade judicial, na visão defensiva, deixaram transparecer misoginia e sexismo em relação à acusada Flordelis.  

Não será feita aqui uma revisão bibliográfica das obras maravilhosas de DJAMILA RIBEIRO, ARUNDHATI ROY, CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE, ANGIE THOMAS, porque o objetivo do presente ensaio é dar à comunidade jurídica a oportunidade de debater o tema, para que sirva de alerta e de incentivo a novas discussões.

O texto que segue, portanto, foi apresentado como razões de Recurso em Sentido Estrito e busca a anulação do INTERROGATÓRIO e exclusão da COTA MINISTERIAL apresentada com a denúncia.

Eis as razões.

(...)

8. NULIDADE PROCESSUAL MISOGINIA - MULHER POBRE, NEGRA, RELIGIOSA, ARTISTA

O PORTAL GELEDES, em matéria publicada em 30 de outubro de 2017, sob o título “A barbárie veste toga: misoginia e racismo no Tribunal do Júri” (https://www.geledes.org.br/barbarie-veste-toga-misoginia-e-racismo-no-tribunal-do-juri/), por Sabrina Lasevitch, Camila Belinaso, Sophie Dall’olmo Do Justificando, conta a história da Tatiane, uma mulher negra e pobre do Sul do Brasil, mas que pode ser vista como a história de muitas mulheres marcadas por uma infância de pais usuários de drogas e extremamente violentos. Conforme consta na matéria:

O ciclo da violência dentro de casa era o seguinte: o pai agredia a mãe, que agredia Tati e seus irmãos. Após um episódio de espancamento um pouco mais grave, Tati saiu e casa para morar com sua avó, a quem ela se refere como sua “verdadeira mãe”.

Aos 17 anos, Tati, ainda sem o ensino fundamental completo, deu à luz a sua primeira filha, fruto de seu primeiro relacionamento. Pouco tempo depois, conheceu Amilton, por quem se apaixonou e de quem engravidou após oito meses de relacionamento, o que fez com que fossem morar juntos.

Até este momento, Amilton trabalhava e era um companheiro estável. Tudo mudou quando ele perdeu seu emprego: Amilton se mostrou uma pessoa extremamente violenta e controladora, que costumava acusar Tatiane de infidelidade com frequência e exigir que ela abandonasse seu emprego.

Desempregado e viciado em cocaína, Amilton se dedicou à venda de crack e maconha para sustentar seu vício. Finalmente, em 2011, Amilton passou duas semanas preso em flagrante por tráfico de drogas. Ao retornar da prisão, seu vício pela cocaína estava ainda mais descontrolado e seu lado agressivo também aumentou: assim que chegou em casa, voltou a acusar Tatiane de infidelidade e a agrediu com uma faca, deixando-a com uma cicatriz em seu braço.

As agressões, então, passaram a ser cada vez mais frequentes e intensas, sempre desencadeadas por suspeitas de Amilton sobre uma suposta infidelidade de Tatiane. Tatiane, vítima de abusos por seus pais desde a infância e ainda apaixonada por Amilton, não conseguia perceber que estava, mais uma vez, envolvida em uma relação abusiva, cujo agressor, agora, era seu companheiro.

No Natal de 2011, grávida de Diogo, após um episódio de agressões de Amilton a suas irmãs e a Tatiane, ela fugiu com seus filhos para procurar abrigo na casa de uma amiga. Alguns dias depois, contudo, foi surpreendida por sua própria mãe, que se uniu a Amilton para forçá-la a voltar para casa. Tatiane, então, teve Diogo, seu filho mais novo, e as agressões de Amilton intensificaram-se ainda mais.

Tatiane pediu socorro ao Estado diversas vezes, porém nunca foi pelo Estado protegida. Em uma audiência de conciliação, resultado de um dos vários registros de ocorrência feitos por Tatiane, o juiz, apesar de ciente do histórico agressivo de Amilton, não aplicou nenhuma medida protetiva da Lei Maria da Penha para garantir a integridade física e psicológica de Tatiane e de seus filhos, dando-se por satisfeito apenas com promessas por parte de Amilton de iniciar um tratamento para seu vício em cocaína.

O judiciário, na verdade, além de não proteger nem Tatiane nem seus filhos, deu mais argumentos a Amilton para coagir Tatiane a permanecer com ele: em 2013, após uma separação do casal, Amilton passou a ameaçar Tatiane, dizendo que foi orientado pelo Conselho Tutelar a registrar ocorrência contra ela caso ela não permitisse que ele mantivesse contato com os filhos, ao argumento de que ela estaria descumprindo decisão judicial, uma vez que foi estabelecido pela Justiça que Amilton teria direito de passar o sábado com as crianças.

Com medo de perder a guarda dos filhos, Tatiana cedeu e eles voltaram a viver juntos. Tatiane sempre foi uma mãe que se desdobrava entre seu emprego e o cuidado de seus filhos sozinha, já que Amilton, ainda que desempregado há tempos, jamais a ajudou.

Em 23 de setembro de 2013, então, Diogo, o filho mais novo, estava doente e Tati o levou ao médico. Por orientação das próprias professoras da criança, Diogo não foi à escolinha naquela semana. Tatiane, que trabalhava 7 dias por semana e não tinha condições de bancar uma creche para seu filho, não teve escolha a não ser deixar a criança sob os cuidados de Amilton, pai de Diogo, enquanto estava no trabalho.

Foi então que Amilton, aparentemente aproveitando-se da situação, decidiu que ficaria integralmente responsável pelos cuidados com a saúde de Diogo, numa tentativa de aproximar-se do filho, já que suas agressões contra Tatiane resultaram em uma ausência de convivência entre ele e a criança. Amilton se mostrou tão empenhado nesta aproximação que chegou a impedir, de fato, que Tatiane cuidasse do filho doente durante aquela semana, passando a ser ele o único responsável pela higiene, alimentação e demais cuidados com a criança. Tatiane, surpresa, chegou a acreditar que Amilton estava finalmente mudado e assumindo seu papel de pai, algo que ela considerava muito importante para o bom desenvolvimento dos filhos.

Infelizmente, Tatiane estava errada. Em um sábado, após 6 dias desta aparentemente nova realidade, ela chegou em casa do trabalho e Diogo estava dormindo no quarto. Ao tentar se aproximar de seu filho, Amilton a impediu, insistindo para que ela deixasse a criança descansar. Ela obedeceu. Contudo, conforme as horas passavam e a criança não acordava, Tati começou a desconfiar de que algo estava errado e foi checar seu filho, contrariando as ordens de Amilton.

Ao tirar suas roupinhas, viu que a criança estava fraca, gemendo e com hematomas por todo o corpo. Neste momento, Amilton fugiu de casa. Desesperada, ela foi pedir socorro na vizinhança, carregando seu filho nos braços. Poucas horas depois de dar entrada no hospital, contudo, Diogo foi a óbito.

Deprimida e traumatizada com a morte de seu filho mais novo por Amilton, surpreendentemente Tatiane foi denunciada, em 11 de novembro de 2013, por homicídio qualificado por motivo torpe, além de tortura e maus tratos.

O mesmo sistema que se esquivou de protegê-la das agressões de seu antigo companheiro, agora também a culpabilizava pela morte de seu filho: na condição de mãe da vítima, tinha a obrigação de prover os cuidados necessários ao bem-estar da criança, em vez de deixá-la com um “indivíduo sabidamente violento”, conforme consta da denúncia.

O procedimento foi, do início ao fim, um festival de misoginia. Tatiane foi chamada de mãe desnaturada, monstro, masoquista e narcisista. Foi hostilizada por ter deixado seu filho doente aos cuidados do pai enquanto trabalhava. Foi acusada de sociopatia por supostamente não ter chorado no hospital, em estado de choque com a tragédia que acabava de acontecer. A própria denúncia feita contra Tatiane se contradiz: ora a acusa por ter se omitido no cuidado com o filho, ora a acusa por ter desejado a morte do filho, estando em “acerto de vontades” com Amilton.

Em 13 de novembro de 2013, Tatiane foi presa preventivamente e nunca mais saiu do Presídio Madre Pelletier. O julgamento só foi acontecer em novembro 2016, momento em que, mais uma vez, a misoginia foi a personagem principal. Uma série de estudantes engajadas na causa feminista compareceram ao julgamento vestindo camisetas em apoio a Tatiane. Ameaçadas pela promotora designada para o caso, foram obrigadas pelos seguranças a retirarem as camisetas. Durante todo o julgamento, as chamadas “estudantes feministas” foram tratadas com hostilidade e apontadas como perturbadoras da ordem que atrapalhariam o julgamento. A defesa interveio, falando que a promotora estava provocando e tentando humilhar a platéia, que não podia se manifestar naquele momento. O juiz que presidia a sessão disse que a defesa, ao intervir, estava tumultuando a sessão, mas não pensou em nenhum momento no constrangimento e intimidação que a promotora praticava contra as mulheres ali presentes.

A parte mais cruel do discurso da acusação foi quando apontou para Tatiane, gritando que ela era uma péssima mãe, preguiçosa, que não queria nem trocar as fraldas do filho e que não se importava com as crianças devido ao seu ego inflado e a obsessão pelo macho. E que hoje em dia “nem mulher pobre usa fralda de pano”, que “pobre compra fralda da panvel”. Tatiane e sua defensora, assim como muitas da plateia, choraram muito nesse momento.

Desconsiderando o ciclo de violência doméstica, bem como o arcabouço jurídico e doutrinário de proteção às mulheres, a tese de acusação adotada em plenário foi de que a recorrente era uma mulher narcisista, que gostava de apanhar de Amilton, com o qual teria uma “compatibilidade sexual”, conclusão a que chegou a Parquet devido ao fato de Tatiane ter retornado ao relacionamento abusivo, desconsiderando que o retorno ao ciclo de violência é algo comum a todas as mulheres vítimas de violência doméstica, que, embora violentadas, não conseguem romper com o vínculo, seja pela destruição da sua autoestima, por medo, por acreditar que esse é o papel de uma mulher, pelos filhos, entre inúmeros outros fatores.

A chamada “compatibilidade sexual” afirmada pela promotora, contudo, para Tatiane, representava o estupro marital, ao qual era submetida constantemente por Amilton.

Ao final, o Conselho de Sentença, composto por 7 juradas, acolheu a tese acusatória, condenando Tatiane a uma pena de 22 anos, 2 meses e 22 dias de prisão. Quase um ano depois, no dia de seu aniversário, em 27 de setembro de 2017, foram julgadas as apelações de defesa e de acusação, momento em que os desembargadores aumentaram ainda mais a sua pena para 24 anos 9 meses e 10 dias de prisão, ao argumento de que Tatiane teria uma personalidade narcisista, pois, mesmo sabendo da personalidade violenta de Amilton, permaneceu no relacionamento, expondo seus filhos e a si mesma a risco.

Desde 2013, os outros dois filhos de Tatiane estão acolhidos na rede de assistência social de Porto Alegre e não tiveram qualquer contato com a mãe. Tatiane, inclusive, relata uma enorme dificuldade de obter qualquer informação que seja sobre as crianças. Como se todo este sofrimento já não fosse o bastante, antes mesmo do trânsito em julgado de sua condenação, violando a presunção de inocência garantida pela nossa Constituição, Tatiane foi destituída da guarda de seus filhos pela 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre. As crianças perderam seu irmão mais novo, sua mãe e estão, agora, entregues à adoção.

O caso de Tatiane é extremamente ilustrativo de uma situação que já é denunciada pela Criminologia feminista há tempos: o Direito Penal tem gênero. O Direito penal é masculino desde o momento em que cria as leis (“Mulher honesta”), até o momento em que as aplica. Há muitos fatores que implicam em maior prejuízo às mulheres do que aos homens quando em contato com a justiça criminal, seja como autoras de um fato criminoso, seja como vítimas: a mulher não é protegida quando precisa da tutela do sistema penal e, do mesmo modo, também é punida com mais rigor quando está na posição de ré.

Se a criminologia crítica, nos anos 70, conseguiu demonstrar que o capitalismo atravessa profundamente a teoria do delito, trazendo o arcabouço da teoria materialista histórica e dialética para dentro do estudo do crime e suas variáveis, a criminologia feminista revela que o patriarcado, do mesmo modo, atravessa o estudo do crime e a forma como os indivíduos são tratados pelo sistema de justiça criminal. É como se o sistema penal não pudesse deixar de reproduzir a sociedade patriarcal em que vivemos.

Tatiane foi vítima da violência de seus pais durante a infância. Depois, foi vítima da violência de seu companheiro no início da vida adulta. Agora, e pelos próximos 20 anos, é vítima da violência do Estado que, além de se omitir quando deveria tê-la protegido, a puniu com severo rigor pelo resultado trágico da violência do ex-companheiro.

Tatiane é mulher, negra e pobre. Passou a metade da vida tentando sobreviver e dar alguma dignidade a seus filhos. Agora, passará 20 anos afastada deles e da vida em sociedade, punida pelo Estado por um crime que não cometeu. Até quando as mulheres, sobretudo as mulheres negras e pobres, serão consideradas culpadas por toda a violência que sofrem?”

O termo é forte, mas a Recorrente, por sua defesa constituída, respeitosamente, pede vênia para falar de MISOGINIA.

Importante, desde logo, mostrar o que não é misoginia, fazendo a diferença em relação a “machismo” e a “sexismo”. Embora estejam interconectados, é possível dizer que a misoginia é esse sentimento de aversão (patológico) pelo feminino, que acarreta uma prática comportamental machista, tanto nas opiniões como nas atitudes, as quais atuam no sentido do estabelecimento, manutenção, permanência das desigualdades, da hierarquia entre os gêneros. Há uma naturalização da crença de superioridade e de maior poder figura masculina, própria do machismo estrutural reinante na sociedade ocidental capitalista contemporânea. Por sexismo, de outra parte, entende-se como a determinação violenta de um papel social a ser desempenhado por cada gênero, o que se expressa por estereótipos de como falar, agir, pensar e até mesmo o que vestir.

Quando se deparam com a afirmação de quem podem ter agido como misóginas, machistas, racistas, sexistas, homofóbicas, as pessoas, geralmente, sentem-se constrangidas, entendendo qualquer diálogo sobre esses temas, como se fossem acusações desrespeitosas, agressões gratuitas, estratégia de opressão da liberdade de pensamento, dentre tantas outras hipóteses de fechamento para o debate.

Espera a Defesa da ora Recorrente, honestamente, que o Poder Judiciário esteja aberto para enfrentar aquilo que é ESTRUTURAL, ou seja, está atravessa todas as relações, que está em cada um de nós e em todos, que pode ser encarada como uma violência ancestral que atravessa séculos de opressão e se mantém pela anulação do infinito particular que reside em cada pessoa tratada como inferior, menor, inútil, desnecessária, diferente etc.

Mas seria possível falar em NULIDADE PROCESSUAL por ter a Ré Flordelis sofrido tratamento misógino nesses autos?

Sem entrar nas trevas do inquérito policial, local ainda não iluminado pelo Constitucionalismo contemporâneo, é possível identificar na primeira manifestação Ministerial feita no pórtico da Ação Penal, o primeiro movimento (no âmbito judicial) daquilo que vai constituir um dos pilares mais importantes da estrutura acusatória: A MISOGINIA CONTRA FLORDELIS.

É apenas pelo ódio contra FLORDELIS que a Acusação terá sucesso em sua empreitada processual. Sem ódio, sem rancor, sem desprezo pela mulher pobre, negra, religiosa, artista, política, NÃO HÁ COMO CONDENAR.

Aqui não há busca de VITIMIZAÇÃO como estratégia de convencimento.

A defesa está exigindo (não pedindo) RESPEITO. O Poder Judiciário deve respeitar as pessoas acusadas, não permitindo que os atores do processo ou as pessoas que deveriam presidir os atos atuem com ódio, com raiva, com qualquer tipo de comportamento que não seja equilibrado, respeitoso, urbano, cordato, republicano.

Importante começar o raciocínio pela COTA MINISTERIAL das fls. 30 dos autos:

Em relação à denunciada FLORDELIS DOS SANTOS, embora no plano dos fatos configurada a necessidade da prisão preventiva diante de sua personalidade dissimulada e cruel, diante da prática de novos crimes para safar-se de sua responsabilização penal, diante de reiterados atos para fraudar o processo, fato é que a denunciada goza de imunidade formal, de índole constitucional, por estar em pleno exercício de mandato parlamentar de deputada federal.

Para entender a estratégia misógina, deve-se atentar para os detalhes das adjetivações e para a plástica da construção narrativa feita pelo Ministério Público:

Para melhor compreensão dos fatos, faz-se necessário uma regressão para entender esse complexo arranjo familiar, com 3 (três) filhos naturais de FLORDELIS e 52 (cinquenta e dois), entre adotados e subtraídos de seus genitores. A denunciada anunciava que DANIEL DOS SANTOS DE SOUZA era o único filho biológico dela com a vítima, mas a investigação demonstrou que ele, na verdade, foi subtraído da genitora e registrado falsamente como filho biológico do casal. Segundo se extrai dos autos e de diversas matérias publicadas na imprensa sobre a vida de FLORDELIS, ela conheceu ANDERSON no início dos anos 90, mais precisamente em 1993, ela com 32 anos e ele com 16. FLORDELIS tinha três filhos biológicos com o homem com quem era casada, enquanto Anderson, ainda adolescente, namorava uma dessas filhas de FLORDELIS, ora denunciada SIMONE. Logo após, iniciou um relacionamento com ANDERSON e passaram a receber crianças e adolescentes supostamente abandonados por suas famílias ou supostamente fugitivas do tráfico de drogas.

A estória contada merece uma checagem mais rigorosa, que não é objeto específico da investigação. No entanto, parece pouco crível a estória de que trinta e sete crianças foram levadas, no carnaval de 1994, após uma chacina de crianças na Central do Brasil.

Difícil imaginar como, durante a madrugada, em horário que os ramais de trens que ligam a Central ao Jacarezinho não se encontram funcionando, depois de suposta chacina de crianças, mães saiam em fuga do local com 37 crianças e cheguem até a sua casa no Jacarezinho, área já muito conflagrada pelo tráfico de drogas.

Menos crível ainda a versão de que uma das crianças fora resgatada por ela com um tiro no fígado, levada pra sua casa e sobrevivido. Repita-se, a criança de 3 anos teria sido alvejada por um DAF no fígado durante a madrugada, as mães, sabe-se se lá como, com 37 crianças rumaram para o Jacarezinho para a casa de FLORDELIS. Ela, então, foi para a Central do Brasil e a criança ainda estava lá, ferida. Na região da Central tem a segurança da estação, o QG do Exército Brasileiro, O QG do Corpo de Bombeiros, o Hospital Souza Aguiar e todos

deixaram a criança agonizando na calçada? Gera mais incredulidade ainda uma criança de tenra idade sobreviver a um ferimento por arma de fogo no fígado por tanto tempo sem socorro médico. É sabido que lesões no fígado por PAF causam enorme hemorragia, sendo comum evoluírem para óbito mesmo com socorro médico rápido, sendo indispensável o

célere tratamento cirúrgico para estancar a hemorragia.

Mais adiante:

FLORDELIS mostra no confronto entre seu discurso e suas práticas que se tornou especialista na manipulação de pessoas para atingir seus objetivos, muita das vezes espúrios e desprezáveis.

Desde o início, inseriu informações duvidosas na sua história de vida, como no caso da chacina da Central, a fim de ter maior impacto e vender-se como perseguida pela justiça, apontando para o então juiz da Vara de Infância e Juventude da Capital/RJ, Dr. Liborni

Siqueira, como perseguidor, quando na verdade o magistrado zelava simplesmente pela observância das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Com esse discurso, quando aponta que, após insurgir-se contra mandado judicial para entregar as crianças, conseguiu apoio material e/ou financeiro com pessoas muito bem intencionadas.

Finalmente, com a substituição do Juiz Liborni Siqueira pelo Juiz Siro Darlan, a quem chamou de “mais amigável”, conseguiu ficar com as crianças.

O resultado estamos vendo nesta denúncia e na primeira denúncia referente ao homicídio em tela. Transformou filhos naturais e adotivos em criminosos; subtraiu crianças de seus genitores; declarou falsamente paternidade inexistente; arquitetou o plano e a execução do próprio marido, quando achou que ele era descartável a incomodava mais do que ajudava; sem o menor afeto tentou através de artifícios criminosos imputar responsabilidade além da que tinha o filho adotivo LUCAS e imputar falsamente ao filho afetivo MISAEL crime do qual sabe ser ele inocente.

E prossegue o MP:

Após não conseguirem o título de Pastora e a vítima de Pastor pela Igreja Assembleia de Deus, onde até então congregavam, fundaram, no ano de 1999, o Ministério Flordelis. Depois, conseguiu contrato como cantora da gravadora Gospel MK, do Pastor Arolde de Oliveira, hoje Senador da República, e, movimentando o aparato de sua igreja e valendo-se de sua notoriedade, elegeu-se no ano de 2018 Deputada Federal, sendo a mulher mais votada para o cargo no Estado do Rio de Janeiro. Valeu-se, claramente, da boa-fé das pessoas e de suas religiosidades para alavancar seus anseios por mais poder.

Um edifício argumentativo vai sendo erguido em bases bem claras, dentro da estratégia de destruir completamente a imagem da mulher acusada. Convém lembrar que a acusação é de homicídio e tentativa de homicídio. Porém, veja que o debate descamba para a exposição de fatos totalmente divorciados desse contexto, ligados à intimidade da pessoa acusada, mas, repita-se, sem qualquer importância para o objeto da investigação e da persecução penal.

Na sequência, a narrativa traz depoimentos sobre práticas sexuais e envolvimento com pessoas, buscando mostrar que a acusada e sua família seria pessoas sexualmente depravadas. Importante para o MP, mostrar que, ao invés de serem “uma família evangélica, feliz, conservadora e unida” (...) “na verdade, eram apenas falsas construções de imagem, sendo que a realidade dos fatos aponta para comportamento oposto, mais próximo a uma seita, com sexo em grupo entre membros da família, com rituais totalmente divergentes da doutrina das igrejas cristãs evangélicas”.

Mas qual a importância desses aspectos para a elucidação do homicídio?

Aduz o MP, que isso ajudaria a explicar o motivo de ter a Recorrente Flordelis mentido em sua narrativa quanto aos movimentos feitos naquela noite, os locais frequentados, dentre outros detalhes. Para o MP:

Tais considerações podem explicar o motivo porque FLORDELIS falta com a verdade quando indagada onde teria ido com Anderson na madrugada do assassinato. Relata na mídia anexada aos autos e com os principais pontos transcritos no index 804, que o pastor, apesar de ter jantado, quis comer uns petiscos, saindo, para tanto, de Pendotiba, Niterói, para Copacabana/RJ, já por volta de meia-noite. Diz que depois de comer o petisco em Copacabana, foram para uma praia mais distante para namorar, falando que ficaram ao ar livre, não indo a nenhum local fechado, provavelmente para evitar que a investigação checasse a informação.

Adiante, afirma a douta Acusação:

No entanto, a análise das câmeras da CET-Rio revela que a versão de FLORDELIS é inverídica. No indexador 886, consta que o automóvel da vítima com a denunciada passou as 00h35min pelas câmeras de monitoramento na Av. Francisco Bicalho, pista central. 5 (cinco) minutos depois, passou no Túnel Rebouças, sentido Lagoa. O trajeto de volta é registrado 2h13min depois. Passou às 02h48min pelo Túnel Rebouças, agora sentido Centro e pela Rua Humaitá, em Botafogo, às 02h58min.

Provavelmente, ficaram no Bairro do Humaitá ou Botafogo, por mais de duas horas. Vale mencionar que, conforme informação da CET-Rio e análise indexada sob o número 897, caso

realmente tivessem se dirigido ao Bairro de Copacabana, teriam sido registrados por outras câmeras, especialmente as instaladas no trajeto que leva a Copacabana pelo Túnel Rebouças, como informado pela CETRio, pelos equipamentos de monitoramento instalados na Av. Epitácio Pessoa, Corte do Cantagalo, Rua Miguel de Lemos, Av. N. S. de Copacabana e finalmente, Av. Atlântica, onde conta a denunciada FLORDELIS que saíram de madrugada de Niterói para comer um peixinho em local aberto na orla.

Há muita malícia por trás dessa narrativa, sendo fundamental envolver Flordelis em situações capazes de destruir a sua imagem de mulher, de mãe, de pastora, para convertê-la numa mulher sem escrúpulos, adepta do swing e de práticas sexuais com os próprios filhos, dentre outras barbaridades trazidas pelas tantas pessoas psicologicamente sadias, todas interessadas no tema.

O assunto ganhou os melhores setores da mídia especializada (https://extra.globo.com/casos-de-policia/destino-de-flordelis-anderson-na-madrugada-do-crime-ainda-misterio-policia-suspeita-de-ida-casa-de-swing-24605225.html e https://www.metropoles.com/brasil/sexo-religiao-politica-e-morte-a-saga-de-flordelis-e-anderson).

Apesar de falsa, não se trata de ser verdadeira ou mentirosa a narrativa acusatória. O certo é que é perversa. A hipótese, embora completamente absurda, inunda o espaço discursivo com um grande barulho capaz de perturbar qualquer possibilidade de racionalidade. O som da palavra swing impede a escuta do som que qualquer outra palavra. Os atores da cena tornam-se voyeurs do "quarto alugado" por Flordelis na tal casa para adeptos de sexo em grupo. E ninguém mais pergunta ou quer saber qual a relevância disso para o homicídio.

O quadro psíquico que se instaura no bojo dessas narrativas espetaculares é digno de análise por especialistas nos chamados “desvios no comportamento sexual”. Muita gente não escaparia do DSM-IV.

Veja-se que a caracterização da Recorrente como adepta do Swing serviria para embasar a suspeita policial, no sentido de que o último encontro do casal teria sido, exatamente, numa casa desse tipo.

Certo!

Mas e o que essa prática de sexo grupal antes da morte esclarece?

A Recorrente teria sido a mentora intelectual e coautora do homicídio, segundo a polícia e o MP.

E o swing? Qual a relação do swing com a morte? Qual a importância das supostas preferências sexuais da acusada para o cometimento do crime?

As qualificadoras trazidas pelo MP, especialmente aquela ligada ao motivo, não referem nenhum aspecto da vida sexual da Recorrente. Nada mesmo. Aliás, depois da espetacularização desse suposto aspecto da vida privada da Recorrente Flordelis, nada mais foi trazido pelos acusadores. O objetivo de destruição da imagem da mulher, pela demonização do seu comportamento sexual, foi atingido.

Por incrível que pareça, a lógica é realmente essa: uma mulher que é capaz de frequentar casas de swing, manter uma seita, fazer sexo em casa com seu marido e seus filhos, deve ser condenada por tentativa de homicídio, homicídio qualificado e outros.

Como disse o MP:

(...) dois depoimentos importantes para compreender como se criou para o público externo e, com isso, auferirem dinheiro e poder, a imagem de uma família evangélica, feliz, conservadora e unida. Na verdade, eram apenas falsas construções de imagem, sendo que a realidade dos fatos aponta para comportamento oposto, mais próximo a uma seita, com sexo em grupo, entre membros da família, com rituais totalmente divergentes da doutrina das igrejas cristãs evangélicas.

Resiste, ilesa, a dúvida sobre a relação de uma possível frequência à casa de swing com o homicídio. É que, se essa fosse, realmente, a última festa do casal, então, não é coerente o discurso feito pela acusação, no sentido das brigas, dos desentendimentos, do ódio de Flordelis em relação ao marido.

É evidente que tudo vai ressaltado para atacar a mulher, naquilo que é mais forte no meio social: O SEXISMO.

Esse tipo de estratégia plantada no Inquérito Policial e desenvolvida no curso da Ação Penal, respectivamente pela Polícia e pelo MP, embora reprovável, censurável, passível de uma reflexão bastante profunda sobre os papéis profissionais de cada um, remete para uma situação ainda mais grave: A PARTICIPAÇÃO JUDICIAL NA ACEITAÇÃO, MANUTENÇÃO E INCREMENTO DESSA PROPOSTA MISÓGINA.

Sem adentrar novamente em todos os pontos já tocados, relativamente à perda da imparcialidade judicial, visível em todas as audiências que foram destacas, tanto na Exceção como aqui nessas Razões, agora, torna-se fundamental pedir uma atenção especial para o interrogatório da Acusada Flordelis. É que a inaceitável conduta dos membros da Douta Acusação, infelizmente, foi apropriada pela Digna Magistrada que presidiu o ato de tomada do interrogatório.

Impressiona a perda de equilíbrio emocional da Digna Autoridade em diversos momentos da inquirição, notadamente quando questionou a mulher acusada de homicídio do próprio marido, por exemplo, sobre os seguintes pontos:

1) se quando eles começaram relacionamento, o Pastor Anderson era menor de 18 anos;

2) se a acusada e o Pastor Anderson praticavam sexo com outros casais;

3) se a mãe do Pastor Anderson era contra o relacionamento;

4) se a acusada forçava outras pessoas a prática de atos libidinosos/sexuais.

Nenhum ponto da denúncia autorizava a Sra. Juíza de Direito a adentrar nesses temas, ou seja, são perguntas totalmente dissociadas do conjunto das acusações formalmente apresentadas pelo Ministério Público. Não há, como visto, nenhuma relação da narrativa feita na denúncia com esses questionamentos feitos pela Magistrada, por vezes, em tom irônico, jocoso, irritado, impaciente.

O ataque à imagem da Recorrente Flordelis pelo Ministério Público foi levado a efeito pela Magistrada no ato de Interrogatório, até mesmo porque a Defesa impediu o MP de perguntar. Não seria necessário. A destruição da imagem de Flordelis, como mulher, como esposa, como pastora, como cantora, foi feita pela Autoridade Judiciária, que deveria exercer o controle da inquirição, evitando que o debate fosse para temas descolados das imputações formuladas.

Para que essas afirmações acima sejam afastadas, torna-se importante responder em qual medida é relevante saber: 1) a idade do Pastor no início do relacionamento; 2) se o casal fazia sexo com outras pessoas; 3) se a família do Pastor era a favor ou contra o relacionamento.

A resposta é óbvia. Não há relevância, porque esses fatos não fazem parte da denúncia, nem indiretamente e nem circunstancialmente.

Trata-se de ataque pessoal gratuito e inadmissível.

Por assim ser, mais uma vez destacando que se não trata de buscar a vitimização da acusada para obter vantagem no processo, mas da atitude que se exige de uma defesa técnica que pede respeito para com os direitos humanos da sua cliente.

Uma acusação estatal deve ser formulada contra a Acusada Flordelis de forma séria e ética. A condução do processo deve ser feita por Autoridade Judiciária que não encampe a estratégia de destruição da imagem da pessoa acusada como forma de atenuar suas chances de defesa e, assim, encaminhar o caso para uma quase inevitável condenação.

Numa acusação extremamente frágil, qualquer elemento negativo reforça o discurso e confere foros de verossimilhança à narrativa, por mais estapafúrdia que possa ser. De qualquer forma, não pode o Digno Juízo ser condescendente com essa manobra covarde e desumana.

Se a acusação quiser condenar Flordelis pelos crimes imputados, deve fazer a prova da materialidade e da participação da acusada, narrando de forma consistente o que, o como, o quando, e o porquê da conduta descrita.

Pelo que foi antes exposto, somado aos demais pontos de demonstram a lesão ao devido processo legal, vem a Recorrente requerer seja admitida a misoginia da COTA MINISTERIAL apresentada com a Denúncia, assim como requerer a anulação do ato de interrogatório, diante da conduta parcial da Digna Magistrada.

O prejuízo decorrente dessa estratégia utilizada é evidente, sendo, inclusive, objeto de grande discussão no STF:

(http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462336&ori=1)

STF proíbe uso da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio

Em decisão unânime, Plenário entendeu que a tese contribui para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra a mulher.

Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. A decisão, tomada na sessão virtual encerrada em 12/3, referendou liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli em fevereiro, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779.

Na ação, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) argumenta que há decisões de Tribunais de Justiça que ora validam, ora anulam vereditos do Tribunal do Júri em que se absolvem réus processados pela prática de feminicídio com fundamento na tese. O partido apontou, também, divergências de entendimento entre o Supremo e o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Argumento odioso, desumano e cruel

Ao reafirmar sua decisão liminar, o ministro Dias Toffoli deu interpretação conforme a Constituição a dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa. Acolhendo sugestão do ministro Gilmar Mendes, o voto de Toffoli determina que a defesa, a acusação, a autoridade policial e o juízo não podem utilizar, direta ou indiretamente, o argumento da legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais nem durante julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento. Na decisão liminar de fevereiro, o impedimento se restringia a advogados de réus.

Segundo Toffoli, além de ser um argumento “atécnico e extrajurídico”, a tese é um “estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida” e totalmente discriminatório contra a mulher. A seu ver, trata-se de um recurso argumentativo e retórico “odioso, desumano e cruel” utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil.

Ao ressaltar que o argumento não é, tecnicamente, legítima defesa (essa, sim, causa de excludente de ilicitude), o ministro registrou que, para evitar que a autoridade judiciária absolva o agente que agiu movido por ciúme, por exemplo, foi inserida no Código Penal a regra do artigo 28 de que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal. “Portanto, aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério, não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma, desproporcional, covarde e criminosa”, afirmou.

Ranços machistas

Para o ministro Alexandre de Moraes, o Estado não pode permanecer omisso perante a naturalização da violência contra a mulher, sob pena de ofensa ao princípio da vedação da proteção insuficiente e do descumprimento ao compromisso adotado pelo Brasil de coibir a violência no âmbito das relações familiares. A ministra Cármen Lúcia, por sua vez, afirmou que a tese não tem amparo legal e foi construída como forma de adequar práticas de violência e morte “à tolerância vívida”, na sociedade, aos assassinatos de mulheres tidas por adúlteras ou com comportamento que destoe do desejado pelo matador. Já o ministro Gilmar Mendes ressaltou que a tese é pautada “por ranços machistas e patriarcais, que fomentam um ciclo de violência de gênero na sociedade”.

Também acompanharam integralmente o relator a ministra Rosa Weber e os ministros Marco Aurélio, Nunes Marques e Ricardo Lewandowski.

É contra essa naturalização dos discursos violentos contra as mulheres que se insurge a Defesa, notadamente, porque essa narrativa é realmente muito potente e pode incidir sobre os jurados de maneira contundente, provocando o mesmo ódio e a mesma ira que provoca na internet, quando as matérias sobre o caso são publicadas. Um passar de olhos sobre os comentários das pessoas, mostra como é eficaz esse discurso de ódio.

Que seja dado, aqui, um exemplo para o País, num caso com repercussão internacional. É hora de dizer que não serão mais toleradas condenações com base no famigerado DIREITO PENAL DE AUTOR. O consagrado princípio da culpabilidade pela conduta é que estrutura (deve estruturar) a noção de direito penal e processo penal na contemporaneidade. Fora daí, é arbítrio, abuso, violência.

A anulação é medida que se impõe.

(...)

Com os fundamentos expostos nas razões acima, como já dito, queremos chamar a atenção das pessoas e, especialmente, da comunidade jurídica para as importantes questões da misoginia, do racismo, do sexismo, do machismo, fenômenos que atravessam a estrutura desse modo de vida ocidental, capitalista, paternalista, centrado no indivíduo branco do sexo masculino e na sua capacidade (infinitamente maior) de acesso aos meios de produção e consumo.

(...)

Justiça

Em nome disso eles são pagos

Mas a noção que se tem

É limitada e eu sei, que a lei

É implacável com os oprimidos

Tornam bandidos os que eram pessoas de bem

Pois já é tão claro que é mais fácil dizer

Que eles são os certos e o culpado é você

Se existe ou não a culpa

Ninguém se preocupa

Pois em todo caso haverá sempre uma desculpa

O abuso é demais, pra eles tanto faz

Não passará de simples fotos nos jornais

Pois gente negra e carente

Não muito influente

E pouco frequente nas colunas sociais

Então eu digo meu rapaz

Esteja constante ou abrirão o seu bolso

E jogarão um flagrante num presídio qualquer

Será um irmão a mais

Racistas otários nos deixem em paz

(...)

Pois a lei é surda, cega e mal interpretada

Então a velha história outra vez se repete

Por um sistema falido

Como marionetes nós somos movidos

E há muito tempo tem sido assim

Nos empurram à incerteza e ao crime enfim

Porque aí certamente estão se preparando

Com carros e armas nos esperando

E os poderosos me seguros observando

O rotineiro Holocausto urbano

O sistema é racista, cruel

Levam cada vez mais

Irmãos aos bancos dos réus

Os sociólogos preferem ser imparciais

E dizem ser financeiro o nosso dilema

Mas se analizarmos bem mais você descobre

Que negro e branco pobre se parecem

Mas não são iguais

Crianças vão nascendo

Em condições bem precárias

Se desenvolvendo sem a paz necessária

São filhos de pais sofridos

E por esse mesmo motivo

Nível de informação é um tanto reduzido

Não... É um absurdo

São pessoas assim que se fodem com tudo

E que no dia a dia vive tensa e insegura

E sofre as covardias humilhações torturas

A conclusão é sua KL Jay

Se julgam homens da lei, mas a respeito eu não sei

Porém direi para vocês irmãos

Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos

O preconceito e desprezo ainda são iguais

Nós somos negros também temos nossos ideais

Racistas otários nos deixem em paz

(...)

Os poderosos são covardes desleais

Espancam negros nas ruas por motivos banais

E nossos ancestrais

Por igualdade lutaram

Se rebelaram morreram

E hoje o que fazemos

Assistimos a tudo de braços cruzados

Até parece que nem somos nós os prejudicados

Enquanto você sossegado foge da questão

Eles circulam na rua com uma descrição

Que é parecida com a sua

Cabelo, cor e feição

Será que eles vêem em nós

Um marginal padrão

50 anos agoras se completam

Da lei anti-racismo na constituição

Infalível na teoria, inútil no dia a dia

Então que se fodam eles com sua demagogia

No meu país o preconceito é eficaz

Te cumprimentam na frente

E te dão um tiro por trás

O Brasil é um país de clima tropical

Onde as raças se misturam naturalmente

E não há preconceito racial

Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos

O preconceito e o desprezo ainda são iguais

Nós somos negros também temos nossos ideais

Racistas otários nos deixem em paz

Racionais MC's (Álbum Holocausto Urbano, 1990)

Quando eu e Rodrigo, dois homens, advogados, brancos, heterossexuais, de classe alta apontam o dedo para as pessoas do seu estamento e falam de misoginia e de racismo, estão carregando e confessando as mesmas culpas e o fazem conscientes das suas responsabilidades em relação àqueles que sofrem os efeitos da omissão cotidiana e já naturalizada de cada um. Sim, nós também somos misóginos, racistas, machistas. Isso não retira nossa obrigação de arguir as nulidades. Ao contrário, torna-se ônus.

Ainda bem que temos, na banca defensiva, uma advogada da estatura de Janira Rocha, pois a sua presença obriga a defesa técnica a elevar-se ao patamar máximo de respeito aos direitos humanos, em homenagem a sua história de luta por um País mais justo, mais digno, mais igual.

Que um dia assim seja!

Mais não digo.

 

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