A TEORIA DA ENCAMPAÇÃO NO MANDADO DE SEGURANÇA E O ENUNCIADO 628, DE SÚMULA DA JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO STJ

02/02/2020

Coluna: Adovocacia Pública em Debate / Coordenadores: Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

A primeira coluna do ano de 2020 tem por objetivo discutir os conceitos de autoridade coatora e a aplicação da chamada teoria da encampação, seguindo o entendimento firmado em precedentes do Superior Tribunal de Justiça.

Como é sabido, no mandado de segurança desenvolveu-se a teoria da encampação do ato impugnado pela autoridade coatora inicialmente inadequada ou ilegítima, com o claro objetivo de aproveitar o procedimento e evitar sua extinção ou mesmo deslocamento de competência para outro órgão jurisdicional.

A questão maior a ser enfrentada, especialmente diante do texto contido no Enunciado 628, de Súmula da Jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça e da própria jurisprudência anterior daquela Corte, é quais os requisitos para esse aproveitamento e possibilidade de prosseguimento da demanda mesmo em caso de erro na indicação da autoridade coatora, como se passa a demonstrar.

Uma das características mais importantes do procedimento do mandamus é a presença da autoridade coatora. Contudo, em qual condição? Parte, litisconsorte ou terceiro interveniente? O erro na indicação da autoridade coatora gera a extinção do processo? Essas perguntas são relevantes para o desenvolvimento da teoria da encampação.

Em verdade, devem ser interpretadas as normas fundamentais do CPC/15 (como boa-fé, dever de cooperação, contraditório prévio) em consonância com o procedimento do mandado de segurança. Da mesma forma, a primazia de resolução de mérito (arts. 4º e 6º, do CPC/15) deve ser vislumbrada com os olhos voltados ao mandado de segurança.

Em que pese a existência de manifestações em sentido contrário, acompanho o posicionamento de que a autoridade coatora não é no procedimento mandamental, mas mera informante, não devendo ser considerada a peça informativa como defesa, mas meio de prova[i]. Sendo informante, exclui-se a alegação de que seria litisconsorte passivo[ii], parte ou assistente litisconsorcial passivo[iii].

Em decorrência deste raciocínio, o erro na indicação da autoridade não gera a extinção do processo por ilegitimidade (desde que não seja alterada a pessoa jurídica indicada no polo passivo), sendo possível, dependendo do caso concreto, a decretação de incompetência absoluta do Órgão Jurisdicional a quem foi distribuído o feito.

O próprio CPC permite a correção do polo passivo (arts. 338 e 339), visando o atendimento aos princípios da efetividade, celeridade, duração razoável do processo e primazia da resolução de mérito.

O Superior Tribunal de Justiça admite, com alguns regramentos, a correção da autoridade coatora (AgInt no REsp 1505709/SC, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/06/2016, DJe 19/08/2016; AgRg no RMS 32184/PI, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/05/2012, DJe 29/05/2012; AgRg no RMS 35638/MA, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/04/2012, DJe 24/04/2012) como forma de evitar a extinção do processo sem resolução de mérito e atender, como consequência, os princípios constitucionais indicados acima.

A questão ligada à correção da autoridade coatora pode ficar superada, ao se entender que a parte passiva no mandado de segurança é a pessoa jurídica. Aliás, alguns precedentes da Corte da Cidadania permitem essa correção do aspecto procedimental, desde que seja mantida a competência do Órgão Jurisdicional e ambas as autoridades pertençam à mesma pessoa jurídica (STJ -AgRg no AREsp 368.159/PE, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 1º/10/2013)[iv].

Mesmo em caso de erro na indicação da autoridade coatora, eventualmente poderá ocorrer a aplicação da chamada teoria da encampação. Contudo, é necessário atender alguns requisitos para a encampação, partindo de duas afirmações: a) a competência no mandado de segurança é estabelecida pela autoridade apontada como coatora pelo impetrante; b) o sujeito passivo é a pessoa jurídica, ressalvados os posicionamentos anteriormente apontados.

O equívoco em relação à autoridade pode gerar a decretação de incompetência absoluta do Órgão Jurisdicional originário, tendo em vista que, dependendo do caso concreto, a alteração da autoridade apontada como coatora, v.g, de uma que detém prerrogativa de foro para o processamento em Tribunal (Local ou Superior) para outra que não a possui, poderá gerar a modificação do órgão competente para apreciação do mandamus. Neste caso, mesmo que tenha adentrado no mérito, não há que se falar em possibilidade de aplicação da encampação.

Os Tribunais pátrios (especialmente o Superior Tribunal) têm enfrentado os requisitos para a aplicação da teoria, quando, apesar de indicada incorretamente, a autoridade ultrapassa as preliminares processuais e adentra no mérito do ato impugnado pelo impetrante, não devendo ser extinto o processo por ilegitimidade[v].

Contudo, três indagações devem ser enfrentadas para o correto aproveitamento processual do MS: a) qualquer autoridade pode encampar o ato supostamente imputado a outra ou apenas aquela com competência hierárquica superior? c) amplia-se a competência funcional no caso de modificação da autoridade? c) a encampação será na condição de parte ou de terceiro?

A aplicação da teoria pressupõe a atuação de autoridade hierarquicamente superior. No RMS 28745/AM, a Corte Superior entendeu inaplicável a teoria exatamente pelo fato de que a autoridade era de hierarquia inferior e não poderia encampar ato que deveria ser praticado pela superior: 

“Processual civil. Recursos ordinário e especial em mandado de segurança. Art. 535 do CPC: Súmula 284/STF. Legitimidade ativa do contribuinte de fato para questionar a alíquota do ICMS. Mandado de segurança com efeitos patrimoniais pretéritos: Descabimento. Súmulas 269 e 271  do STF. Teoria da encampação: inviabilidade. Alteração, pelo Judiciário, de ato normativo: Descabimento. 1. O contribuinte de fato, por suportar o encargo financeiro do ICMS, tem legitimidade para questionar judicialmente a alíquota do imposto. 2. Não cabe mandado de segurança objetivando efeitos patrimoniais pretéritos (súmulas 269 e 271 do STF). 3. A chamada "teoria da encampação" não pode ser invocada quando a autoridade apontada como coatora (e que "encampa" o ato atacado), é hierarquicamente subordinada da que deveria, legitimamente, figurar no processo. Não se pode ter por eficaz, juridicamente, qualquer "encampação" (que melhor poderia ser qualificada como usurpação) de competência superior por autoridade hierarquicamente inferior. 4. Não cabe mandado de segurança objetivando, sob fundamento de inconstitucionalidade, substituir por percentual menor as alíquotas de ICMS fixadas em ato normativo (decreto estadual). A sentença que atendesse a tal pedido produziria efeitos semelhantes ao da procedência de ação direta de inconstitucionalidade, e, mais ainda, transformaria o Judiciário em legislador positivo. 5. Recurso ordinário improvido. Recurso especial provido. (RMS 28745 / AM – Rel. Min. Teori Albino Zavascki – 1ª Turma – J. em 19/05/2009 – DJ de DJe 01/06/2009).

Como se pode perceber, deve o intérprete, ao analisar o caso concreto, realizar duas ponderações antes de concluir pela aplicação ou não da teoria em comento: i) se a autoridade que figura como coatora é de hierarquia superior ou inferior em relação à que deveria atuar no mandamus; b) se as informações impugnam o mérito do ato, ou apenas alega a ilegitimidade.

Outrossim, assunto que também provoca reflexão respeita a consequência processual em casos de (in) competência absoluta. Apenas é aplicável a encampação nos casos de inexistência de modificação da competência do órgão jurisdicional, como bem definiu o Ministro Sérgio Kukina, ao Relatar o AgInt no RMS 58354 / RJ (1ª T - J. em 26/02/2019 - DJe 01/03/2019)[vi].

No tema, aliás, é importante ratificar que o Superior Tribunal editou o Enunciado 628, de Súmula de sua Jurisprudência dominante (DJe 17/12/2018 - RSSTJ vol. 48 p. 241 - RSTJ vol. 252 p. 1304Decisão: 12/12/2018), consagrando, em definitivo, os requisitos para a aplicação da teoria, senão vejamos:

“A teoria da encampação é aplicada no mandado de segurança quando presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) existência de vínculo hierárquico entre a autoridade que prestou informações e a que ordenou a prática do ato impugnado; b) manifestação a respeito do mérito nas informações prestadas; e c) ausência de modificação de competência estabelecida na Constituição Federal”.

Trata-se, portanto, de uma tentativa de colocar a última pá de cal em relação à aplicação da teoria da encampação e seus requisitos obrigatórios. A encampação, aliás, também pode ocorrer nas informações prestadas no habeas data, com semelhantes requisitos[vii].

Contudo, resta analisar a terceira indagação feita anteriormente e ora ratificada: em qual qualidade será aproveitada a manifestação da autoridade (parte ou terceiro)?

A ressalva interpretativa a ser feita é no sentido de que a encampação, caso prevaleça o entendimento de que a autoridade coatora não é parte e sim informante, ocorre nesta condição, não passando a ser considerada legitimada passiva aquela que, na peça informativa, adentrou no mérito da causa discutida no MS.

Neste particular, se a pessoa jurídica (sujeito passivo) não for alterada, mas apenas a autoridade coatora, inexistirá ilegitimidade, em que pese a possibilidade de decretação de incompetência absoluta do órgão jurisdicional.

É razoável aduzir que, mesmo em caso de aplicação da teoria da encampação na qualidade de informante – e não de parte – o caso concreto poderá demonstrar a necessidade de decretação de incompetência absoluta como consequência da alteração da autoridade.

Não se deve esquecer que a legitimidade recursal é da pessoa jurídica, podendo a autoridade apresentar apelo, na condição de terceiro interessado para evitar, quem já mencionado anteriormente, procedimento administrativo em decorrência da decisão judicial ou mesmo ação de regresso a ser eventualmente proposta pelo poder público.

 

Notas e Referências

[i] Nesse particular, há duas passagens de ensaio de Fredie Didier Júnior que merecem transcrição: “a participação da autoridade coatora restringe-se a prestar informações e completar a citação, comunicando ao réu a existência da demanda contra ele proposta. Empós, sai do processo. No momento da prolação da sentença, por exemplo, já é pessoa totalmente estranha ao feito, fato que a qualifica, neste momento, como terceiro”. E, em seguida, defende corretamente que: “a participação da autoridade coatora, ao que nos parece, pode ser visualizada muito melhor de acordo com a teoria geral da prova: trata-se de colheita de prova, por escrito, feita em momento procedimental anterior ao da apresentação da defesa”. Natureza jurídica das informações da autoridade coatora no mandado de segurança. In Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança. Cassio Scarpinella Bueno, Eduardo Arruda Alvim e Teresa Arruda Alvim Wambier (coord). São Paulo : RT, 2002, pp. 370 e 371.

[ii] Por outro lado, em caso de dúvida objetiva, é possível a impetração contra mais de uma autoridade coatora. Neste caso, se ambas forem vinculadas à mesma pessoa jurídica de direito público, ainda assim é incabível falar-se em litisconsórcio passivo, mas sim em mais de um presentante cujos atos estão sendo impugnados. A contrário sensu, , há precedente indicando tratar-se de litisconsórcio passivo, senão vejamos: “Mandado de segurança. Impetração contra duas autoridades – Determinação pelo Juiz para que os impetrantes escolham uma autoridade para permanecer no pólo passivo – Litisconsórcio passivo que pode permanecer, com exame da matéria por ocasião da sentença – Decisão reformada – Recurso dos autores provido. Possível o litisconsórcio passivo em mandado de segurança, podendo ser dirimida a dúvida sobre a efetiva autoridade coatora por ocasião da sentença” (TJSP. AI. 110.813-5 – SP, 1ª CDPu., v.u., j. 30.3.99, Rel. Luís Ganzerla. CD/ APMP – In REMÉDIO, José Antonio. O mandado de segurança na jurisprudência. 2ª edição. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 491.

[iii] “Acolhida a tese de que o sujeito passivo é a pessoa jurídica, não é admissível o ingresso da autoridade como assistente litisconsorcial, porque ela não é titular de qualquer relação jurídica com o adversário do assistido. Por outras palavras, a autoridade a quem se atribui a prática do ato integra a pessoa jurídica (parte passiva), não tendo, pois, qualidade para agir nem como parte, nem como assistente”. LOPES, João Batista. Sujeito passivo no mandado de segurança. In Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança. Cassio Scarpinella Bueno, Eduardo Arruda Alvim e Teresa Arruda Alvim Wambier (coords). São Paulo : RT, 2002, p. 418.

[iv] Os Enunciados 488 e 511, do Fórum Permanente de Processualistas Civis consagram, respectivamente: “No mandado de segurança, havendo equivocada indicação da autoridade coatora, o impetrante deve ser intimado para emendar a petição inicial e, caso haja alteração de competência, o juiz remeterá os autos ao juízo competente” e “A técnica processual prevista nos arts. 338 e 339 pode ser usada, no que couber, para possibilitar a correção da autoridade coatora, bem como da pessoa jurídica, no processo de mandado de segurança”.

[v] Neste sentido, ver, no STJ, o  EDcl no RMS 16057, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 1ª Turma, J. em 07.10.2003, Dj de17.11.2003; AgRg no REsp 697.931/MT, Rel. Min. LAURITA VAZ, 5ª Turma, J. em 28.02.2008, DJ 07.04.2008.

[vi] “(...) 3. Não é possível valer-se da teoria da encampação na espécie, uma vez que haveria alteração de competência jurisdicional, pois compete originariamente  ao  Tribunal  de  Justiça  Estadual o julgamento de mandado de segurança contra Secretário de Estado (art. 161, e, 5, da Constituição  do Estado do Rio de Janeiro), prerrogativa de foro não extensível ao servidor responsável pelo lançamento tributário”.

[vii] “Habeas data. Legitimidade passiva do Comandante do Exército. Aplicação, mutatis mutandis, da teoria da encampação. Ausência de demonstração de recusa, na via administrativa, de acesso a informação. Súmula 2/STJ e art. 8º, I, da Lei nº 9.507/97. Pedido de cópia de parecer que teria dado causa à exoneração do impetrante. Deferimento.  1. A teoria da encampação aplica-se ao habeas data, mutatis mutandis, quando o impetrado é autoridade hierarquicamente superior aos responsáveis pelas informações pessoais referentes ao impetrante e, além disso, responde na via administrativa ao pedido de acesso aos documentos. 2. A demonstração da recusa de acesso a informação pela autoridade administrativa é indispensável no habeas data, sob pena de ausência de interesse de agir. Aplicação, quanto a um dos documentos pleiteados, da Súmula 2/STJ e do disposto no artigo 8º, I, da Lei nº 9.507/97. 3. Deve ser deferido o pedido de acesso a cópia de parecer que teria dado causa à exoneração do impetrante. A possibilidade de acesso das informações será sua garantia à defesa de sua honra e imagem, uma vez que esclarecerá os motivos pelos quais, segundo alega, teria sofrido prejuízos tanto morais como materiais. 4. Habeas data deferido em parte” (HD 84 / DF – Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura – 3ª Seção – J. em 27/09/2006 – DJ de 30/10/2006 p. 236). Ver também HD 147 / DF – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – 3ª Seção - J. em 12/12/2007, DJ de 28/02/2008 p. 69.

 

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