Coordenador: Ricardo Calcini
O sistema jurídico está mergulhado em um período de mudança de paradigmas ou quebra de dogmas inerentes ao clássico modelo casuístico do civil law. Cede-se espaço, atualmente, para o reconhecimento da criatividade judicial em contraposição ao sistema fechado, estático e com pretensões de completude que inflamou os ideais da Revolução Francesa ao devotar o culto à lei e ao Poder Legislativo.
O juiz da tradição do civil law era um ser inanimado, que deveria agir de acordo com a lei, a partir de uma atividade puramente mecânica. O Poder Judiciário era limitado, cingindo-se à tarefa de julgar reproduzindo um texto exato da lei, como se fosse la bouche de la loi, de acordo com a expressão construída por Montesquieu[1].
O poder de criar o direito estava destinado ao Legislativo, enquanto o Judiciário apenas “declarava” a lei e o Executivo incumbia-se de executar as decisões judiciais, segundo a Teoria da Separação dos Poderes[2] e funções típicas do Estado.
Logo se observou que o legislador não poderia prever todas as soluções para o caso concreto nem desenhar todos os procedimentos possíveis para tutelar o direito material, devendo deixar uma margem livre para que o juiz completasse o vazio legislativo e participasse do processo de construção do Direito, embora até hoje os signatários mais fiéis ao civil law sejam reticentes a negar alguns dogmas e, sobretudo, a admitir a criatividade judicial e o verdadeiro papel do magistrado ao julgar.
Em tempos de constitucionalismo, cláusulas gerais, conceitos indeterminados, precedentes, julgamento de casos repetitivos e súmulas que vinculam, contudo, não se pode duvidar de que o juiz, como componente da engrenagem jurídica e não mero reprodutor do texto legal, atua como criador do Direito ou, ao menos, lhe confere uma interpretação judicial[3], extraída não só da lei, mas da jurisprudência, dos usos e costumes, das máximas de experiência e da realidade social.
Em outras palavras: o juiz participa ativamente do processo de construção da norma jurídica, o que se torna mais evidente quando é necessário concretizar os elementos integrantes das cláusulas gerais (hipótese fática e efeito jurídico)[4] ou conceitos indeterminados para aplicá-los no caso concreto e assim formar a sua decisão.
Mas não é apenas nessas hipóteses que o juiz é autorizado a atuar como criador do Direito. Sempre que é convocado a julgar, ainda que o raciocínio, aparentemente, se desenvolva no sentido de aplicar uma norma jurídica preexistente, o papel de “criador” será exercido. Afinal, como consagrou Mauro Cappelletti em célebre obra que versa sobre a criatividade judicial, “na interpretação judiciária do direito legislativo está ínsito certo grau de criatividade”[5], o que sempre foi veementemente negado pelos adeptos do direito casuístico na sua concepção clássica, a pretexto de que a lei seria suficiente para regular todas as situações do caso concreto, reduzindo a função do juiz a mero reprodutor/aplicador do texto legal[6].
Assim, toda interpretação judicial possui o seu grau de criatividade ou discricionariedade, que será maior ou menor a depender da complexidade do caso, das lacunas existentes no ordenamento, da vagueza, incertezas e ambiguidades dos enunciados invocados[7], além da cultura evidenciada na época e dos valores cultivados.
O certo é que o magistrado, ao decidir, é incumbido de criar duas normas jurídicas[8]: uma de caráter geral e outra individual. A primeira é extraída da interpretação do juiz acerca dos fatos narrados na lide e sua adequação/conformação ao Direito aplicável, cuja ratio decidendi, se bem delimitada e precisa, poderá ser utilizada como referencial para julgamentos de casos análogos.
Aliás, é importante perceber, como observou Evaristo Aragão Santos[9], que o pronunciamento judicial não se volta apenas para as partes e os interesses postos à apreciação do judiciário, nem pode ser analisado como a manifestação pessoal do magistrado, mas sim do próprio sistema jurídico, ultrapassando as fronteiras da lide individualizada para alcançar a sociedade e, porque não, servir de paradigma para outros julgados.
Isto quer dizer que o juiz, ao criar a norma geral, constrói uma teoria paradigmática para resolver outros casos. A norma geral ou enunciado universal, de autoria do juiz, nada mais é do que o raciocínio jurídico utilizado para resolver um problema derivado do caso concreto, mas com pretensão de ser aplicado a outros conflitos submetidos ao Judiciário. A solução cristalizada na norma geral deve guardar coerência e harmonia com o ordenamento, permitindo a integridade do Direito.
Daí a importância da decisão ser bem fundamentada, contendo os motivos que levaram o juiz a decidir daquele modo, afastando ou aplicando normas preexistentes, através da sua interpretação judicial, ou mesmo sugerindo e criando elementos para suprir as lacunas legislativas propositalmente deixadas pelas cláusulas gerais.
A segunda norma criada pelo juiz ao julgar é a individual, que será a solução propriamente dita a ser atribuída a uma determinada demanda, assentada na parte dispositiva da decisão, com o fito de se entregar a prestação jurisdicional para os litigantes. Também aqui se pode falar em atividade criativa, pois será a norma fixada no dispositivo que regulará o caso concreto, ficando acobertada pela coisa julgada material.
Desta forma, é incontestável que o juiz, ao decidir um caso concreto, não se limita a aplicar a norma editada pelo legislador, valendo-se unicamente do método da subsunção. Ele atua como verdadeiro criador do direito, pois constrói a norma jurídica individual, fixada no dispositivo da sentença, e a geral (ratio decidendi), que servirá de paradigma para o julgamento de casos semelhantes (lides).
Sobre a criatividade judicial exercida pelos tribunais assinala Fredie Didier Jr.[10]:
Os problemas jurídicos não podem ser resolvidos apenas com uma operação dedutiva (geral-particular). Há uma tarefa na produção jurídica que pertence exclusivamente aos tribunais: a eles cabe interpretar, construir e, ainda, distinguir os casos, para que possam formular as suas decisões, confrontando-as com o Direito vigente. Exercem os tribunais papel singular e único na produção normativa.
É preciso, portanto, redefinir a atividade jurisdicional à luz do novo paradigma da criatividade judicial. O juiz não é mais um ser inanimado, um autômato da lei, incumbido de descrever os significados e reproduzir, no caso, a intenção do legislador.
Ao contrário, o Judiciário participa da produção jurídica, construindo e reconstruindo significados, preenchendo os espaços deixados pelo legislador, concretizando conceitos e regulando o caso concreto a partir da construção de normas jurídicas. Cabe ao órgão jurisdicional resolver a lide posta a sua apreciação com base no Direito vigente e nas circunstâncias presentes na demanda sob julgamento.
Cumpre trazer, a propósito, a lição de Humberto Ávila[11] sobre o papel criativo do Judiciário:
É preciso substituir a convicção de que o dispositivo identifica-se com a norma, pela constatação de que o dispositivo é o ponto de partida da interpretação; é necessário ultrapassar a crendice de que a função do intérprete é meramente descrever significados, em favor da compreensão de que o intérprete reconstrói sentidos, quer o cientista, pela construção de conexões sintáticas e semânticas, quer o aplicador, que soma àquelas conexões as circunstâncias do caso a julgar; importa deixar de lado a opinião de que o Poder Judiciário só exerce a função de legislador negativo, para compreender que ele concretiza o ordenamento jurídico diante do caso concreto.
O reconhecimento da criatividade judicial emerge, portanto, como um novo paradigma da metodologia jurídica, conferindo ao juiz um relevante papel na construção da norma (seja geral ou individual) e do próprio Direito. A manifestação judicial traduz-se em manifestação do sistema jurídico, integrado, complementado e reconstruído pelo magistrado na decisão judicial, em cumprimento a sua função precípua.
Feitas essas considerações e fixadas tais premissas é preciso tecer, brevemente, críticas ao art. 8˚, §2˚ do Projeto de Lei n˚ 6.787-B/2016 (Reforma Trabalhista):
§ 2˚ Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei.
O dispositivo se traduz em uma clara tentativa de amordaçar o Judiciário, ou seja, de reduzir ou eliminar a criatividade judicial e repristinar, em certa medida, os velhos dogmas da Revolução Francesa que transformaram o juiz em la bouche de la loi.
Já se viu, todavia, que o juiz não se limita a declarar o sentido da lei e sim interpretá-la de acordo com as circunstâncias do caso concreto e os preceitos do ordenamento jurídico, tendo que, por vezes, suprir lacunas normativas e decidir com base em princípios gerais do direito ou na equidade, já que é vedado o non liquet. E essa tarefa é, inegavelmente, criativa, visto que culmina na construção de normas jurídicas pelo juiz e, em muitas oportunidades, em criação de obrigações e/ou restrição de direitos não previstos de forma expressa e intuitivo na legislação trabalhista.
Não é diferente com a súmula ou outros enunciados da jurisprudência, que expressam a ratio decidendi (tese jurídica prevalecente) oriunda do julgamento do caso concreto a partir da interpretação da lei. Em outras palavras, o magistrado ao julgar pode restringir direitos legalmente previstos em lei e criar obrigações que não estejam previstas em lei, mas que podem ser extraídos da análise do ordenamento jurídico em seu conjunto e da teleologia da norma (interpretação sistemática e teleológica), na medida em que não se consegue extrair repostas prontas e automáticas do texto legislativo diante das peculiaridades e variações do caso concreto.
Note-se, por exemplo, que o art. 10, II, b do ADCT/CF, ao prever a estabilidade gestante desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, não resolve todas as implicações que podem decorrer da estabilidade gestacional, sendo insuficiente para solucionar as questões derivadas do caso concreto.
Ora, se a empregada omite deliberadamente a gravidez e é despedida de acordo com o procedimento previsto em lei (art. 477 da CLT), recebendo tempestivamente as verbas rescisórias, com a sua rescisão devidamente homologada pelo sindicato, persiste, ainda assim, o direito à reintegração ou à indenização substitutiva mesmo com o contrato extinto? O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador é suficiente para afastar a estabilidade da gestante?
A resposta a estes questionamentos está materializada na súmula 244 do TST, mais precisamente no inciso I: “O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade”, que não deixa de criar uma obrigação legal que não está expressamente prevista, mas pode se extrair da lei e da análise dos preceitos constitucionais.
Observe-se que se o TST não tivesse pacificado a questão, cada juiz estaria decidindo casos idênticos de maneira diferente dentro do próprio tribunal ao qual está vinculado. Teríamos, ainda, variadas soluções nas diversas regiões do país, o que gera odiosa incerteza, desconfiança, instabilidade e inevitável insegurança jurídica.
Quaisquer das partes, ao consultar um advogado, será orientada de acordo com o que prescreve a súmula 244 e, todas as decisões judiciais, salvo eventuais atos de rebeldia de alguns magistrados, serão pautadas no entendimento assentado no referido verbete jurisprudencial. Com isso, evitam-se julgamentos divergentes para uma mesma situação, possibilitando calcular as condutas e suas consequências através das balizas sedimentadas pelo TST (previsibilidade das decisões).
As súmulas e outros enunciados da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho ou dos Tribunais Regionais funcionam, pois, como vetores de orientação jurídica, já que veiculam o entendimento da Corte Trabalhista sobre determinado tema. Auxiliam o julgamento do magistrado e direcionam o trabalho do advogado, além de servir de baliza para reger as relações jurídicas contraídas pelos jurisdicionados.
Sem esses verbetes a Justiça do Trabalho estaria mergulhada em absoluta insegurança jurídica, pois cada juiz resolveria o caso concreto sem qualquer baliza interpretativa.
Por essas razões é que se revela tão prejudicial a tentativa do Projeto de Lei de amordaçar o Judiciário, mitigando a necessária criatividade e construção de normas jurídicas. Todavia, espera-se que a prática revele, assim como ocorreu na época da Revolução Francesa, que é impossível solucionar os conflitos submetidos ao Judiciário a partir da mera reprodução ou declaração automática do texto legal. O ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma sistemática a fim de suprir as lacunas normativas e de entregar ao litigante uma prestação jurisdicional justa e qualificada.
Notas e Referências:
[1] Charles-Louis de Secondat – Barão de Montesquieu. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.157-158.
[2] A Teoria, como se sabe, foi proposta por Montesquieu na obra citada acima “Do espírito das leis”.
[3] Luiz Guilherme Marinoni debruça-se sobre o tema da criatividade ou interpretação judicial quando o juiz está diante de conceitos indeterminados ou regras abertas: “[...] o que realmente importa neste momento é constatar que o juiz que trabalha com conceitos indeterminados e regras abertas está muito longe daquele concebido para unicamente aplicar a lei. [...] Alega-se que, nesses casos, a interpretação tem tamanho alcance e é guiada por argumentos tão frágeis e vagos da lei escrita que a decisão poderia ser explicada tanto pela teoria interpretativista quanto pela teoria positivista de criação judicial do direito. Ou seja, tal decisão judicial poderia ser vista como criação do direito ou interpretação judicial do direito”. MARINONI, Luiz Guilherme, Precedentes obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 88.
[4] Pertinente a observação de Fredie Didier Jr.;”É indiscutível que a existência de cláusulas gerais reforça o poder criativo da atividade jurisdicional. O órgão julgador é chamado a interferir mais ativamente na construção do ordenamento jurídico, a partir da solução de problemas concretos que lhe são submetidos”. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. Vol 01, Salvador: Editora Jus Podivm, 2013, p.37.
[5] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 20.
[6] Como se sabe, o civil law foi ancorado nos ideais da Revolução Francesa e na Teoria de Separação dos Poderes proposta por Montesquieu. É o que explica Luiz Guilherme Marinoni ao traçar um breve panorama histórico sobre o juiz do civil law, no plano teórico (utópico), que, segundo ele, já teria nascido natimorto: “Assim, conferiu-se o poder de criar o direito apenas ao legislativo. A prestação judicial deveria se restringir à mera declaração da lei, deixando-se ao executivo a tarefa de executar as decisões judiciais. Para que se pudesse limitar o poder do juiz à declaração da lei, a legislação deveria ser clara e capaz de dar regulação a todas as situações conflitivas”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 54.
[7] “[...] Mesmo o uso da mais simples e precisa linguagem legislativa, sempre deixam, de qualquer modo, lacunas que devem ser preenchidas pelo juiz e sempre permitem ambiguidades e incertezas que, em última análise, devem ser resolvidas na via judiciária”. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 20/21.
[8] Essa constatação foi explanada por Fredie Didier Jr. Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira Curso de Direito Processual Civil: Teoria da Prova, Direito Probatório, Ações Probatórias, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Antecipação da tutela. 8ª ed. Vol 2. Salvador: Jus Podivm, 2013, p. 428.
[9] SANTOS, Evaristo Aragão.Sobre a importância e os riscos que hoje corre a criatividade jurisprudencial. Revista de Processo. São Paulo, ano 35, nº 181, mar. 2010, p. 38-58.
[10] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. Vol 01, Salvador: Editora Jus Podivm, 2013, p.108/109.
[11] AVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.34.
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