A TECNOLOGIA NA MEDICINA EM TEMPOS DE PANDEMIA E O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO  

16/04/2020

Os efeitos da Pandemia na saúde pública

Ante situações concretas de impensáveis desafios, o mundo vivencia, no ano de 2020, um declarado estado de Pandemia  pela Covid-19, doença causada pelo denominado coronavírus” (SARS-CoV2 ou HCoV-19), conforme fala do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus[1].

No cenário nacional, tem-se produzido vasto rol de atos normativos, dentre Medidas Provisórias, Decretos, Portarias e Instruções, sob o mote de minimizar o impacto da pandemia, de reduzir a mortalidade e a demanda dos sistemas de saúde, a partir de experiências de outros países já atingidos, consideradas estratégias de mitigação e supressão.

Nesse sentir, foi editada a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020[2], estabelecendo medidas de combate ao COVID, recomendadas pela Organização Mundial de Saúde, tal como a imposição de “quarentena”, compreendida como restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação.

Concomitantemente, estabeleceu um rol de ações consideradas essenciais, na esteira da então já existente Lei Federal 7.783/89, que as define como aquelas aptas a atender às necessidades inadiáveis da comunidade sob pena de colocar em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.

Por óbvio, dentre as atividades imprescindíveis, inclui-se a “assistência médica e hospitalar” que, no contexto das atividades estatais, submete-se ao princípio da continuidade do serviço público.

Contudo, a crise trazida pela pandemia promoveu cenários sem precedentes, como a paralisação de atendimentos em unidades de pronto atendimento nos Municípios, suspensão das visitas e atendimentos das equipes de Saúde da Família, consultas médicas e procedimentos em Consórcios Públicos de Saúde e internamentos e cirurgias em determinados Hospitais particulares, conveniados com a rede pública.

Muitas dessas determinações partiram dos próprios gestores públicos que, pressionados, decidiram por voltar todos os seus esforços e recursos públicos ao combate à nova pandemia.

Sem adentrar ao mérito desta política, o fato é que, sob o argumento de que todas as referidas estruturas deveriam ser utilizadas, tão somente, para recepcionar portadores do novo vírus, um grande e considerável espectro de outros doentes ficaram absolutamente desprovidos de qualquer atenção.

Assim, o direito fundamental à vida é à saúde passou a ser visto sob uma estreita via de mão única, cujos efeitos em médio e longo prazo podem ser igualmente catastróficos.

 

O Princípio da continuidade do serviço público

princípio da continuidade do serviço público atenta para a impossibilidade de solução de continuidade das ações positivas em prol dos indivíduos sociais, sob o risco de seu próprio perecimento como ser humano.

Por se afigurarem imperativas à coletividade, a sua titularidade é estatal e, consequentemente, submetem-se ao regime jurídico de direito público.

Portanto, a continuidade do serviço público supõe o funcionamento pontual e regular do serviço, sendo defesa sua interrupção, exceto por força maior invencível.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello o princípio da continuidade do serviço público significa “a impossibilidade de sua interrupção e o pleno direito dos administrados a que não seja suspenso ou interrompido[3].

Para Jacintho Arruda Câmara, o dever de continuidade “sempre foi entendido como um vínculo de caráter genérico, que exigia do Estado a manutenção de determinado serviço público em funcionamento. É um dever estabelecido em favor da sociedade como um todo e assumido pelo estado ou por quem lhe faça as vezes[4].

Nesse contexto, a questão polêmica que se põe a desafiar o consenso da doutrina e da jurisprudência pátria é se o atual estado de pandemia declarada integra o conceito de “força maior” apto a justificar que determinados atendimentos em saúde sejam mantidos ou suspensos.

E aqui não se está a referir a patologias que “podem aguardar”, mas sim àquelas que não apresentam sinais físicos evidentes, imediatos ou graves, mas que, a médio prazo, também levam à óbito.

Dentro das estatísticas nacionais, cita-se como exemplo, as doenças de ordem psiquiátrica, sendo o suicídio a quarta maior causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos[5].

A atenção e o emprego destes dados numéricos permitem a leitura crítica dos fenômenos que ocorrem na população relacionados ao processo saúde-doença, e reclamam a adoção, com segurança, de novas tecnologias, mormente quando o combate a tantas patologias pode ocorrer com o mero acompanhamento clínico de um profissional médico.

Assim, associando a necessidade de constante e ininterrupta atenção a determinados eventos de saúde com o forçoso e emergencial combate ao COVID, em inegável estágio de transmissão comunitária em todo o território nacional, é que, no âmbito federal, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 467 MS/GM, de 20 de março de 2020 dispôs, em caráter excepcional e temporário, sobre as ações de Telemedicina.

Diante disso, questões como a manutenção de atendimentos médicos na área da saúde, envolvendo a patologia causada pelo COVID, foram iluminadas com as ferramentas tecnólogicas.

Não se pode olvidar, todavia, de tantas outras doenças que exigem cuidados contínuos e permanentes ou que possam ser controladas ou minimizadas se atendidas e combatidas imediatamente.

 

A tecnologia como garantia da manutenção dos atendimentos médicos

O emprego da telemática na Medicina, assim considerada a manipulação e a utilização da informação pelo uso combinado de computador, seus acessórios e meios de comunicação, não é recente no cenário mundial.

Na “Declaração de Tel Aviv sobre responsabilidades e normas éticas na utilização da Telemedicina", adotada pela 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em Israel, em outubro de 1999, marco referencial ético para as diversas atividades de telemedicina, consta o postulado básico de que "independente do sistema de telemedicina que o médico utiliza os princípios da ética médica, a que está sujeita mundialmente a profissão médica, nunca devem ser comprometidos".

Internamente, o Conselho Federal de Medicina há muito já reconheceu a legitimidade da prestação de serviços através da Telemedicina, por meio da Resolução nº 1.643/2002, desde que resguardados os preceitos éticos da profissão.

Em variadas manifestações, conforme as necessidades e as ferramentas envolvidas, a telessaúde se apresenta em teleconsultorias, telediagnóstico, disponibilização de segunda opinião, telecirurgia, telemonitoramento (televigilância), educação permanente (teleducação), videoconferências, simulações clínicas, prontuário eletrônico, formação e análise de bancos de dados e biblioteca virtual de imagens, dentre outros.

E, mais recentemente, no contexto do coronavírus, por meio do Ofício CFM nº 1756/2020-Cojur de 19 de março de 2020, reconheceu-se a possibilidade e a eticidade da utilização da Telemedicina, em caráter excepcional e enquanto durar as medidas de enfretamento ao COVID-19, como forma de também garantir a proteção da saúde do médico.

Dentre as medidas destacadas, o Conselho Federal de Medicina, sob o mote de “aperfeiçoar ao máximo a eficiência dos serviços médicos prestados enquanto durar a batalha de combate ao contágio da covid-19”, incentivou o uso da “Teleorientação”, por meio do qual profissionais da medicina realizam à distância a orientação e o encaminhamento de pacientes em isolamento; o “telemonitoramento”, por meio do qual, sob orientação e supervisão médica, monitora-se à distância parâmetros de saúde e/ou doença e  a “teleinterconsulta”, por meio da qual se cambiam informações e opiniões entre médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico.

Como já mencionado, encampando a orientação do Conselho de Classe, o Ministério da Saúde estabeleceu, por meio da Portaria nº 467 MS/GM, de 20 de março de 2020 que “as ações de Telemedicina de interação à distância podem contemplar o atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, monitoramento e diagnóstico, através de tecnologia da informação e comunicação, no âmbito do SUS, bem como na saúde suplementar e privada”.

Contudo, estabeleceu que o atendimento deverá ser efetuado diretamente entre médicos e pacientes, a fim de resguardar a higidez da relação médico- paciente, tão sagrado ao Código de Ética Médica.

Ademais, alertou para a primazia dos registros de dados clínicos do caso, da tecnologia da informação e comunicação utilizada, permitida a emissão de atestados ou receitas médicas também em meio eletrônico, contendo a identificação do médico, a preservação do sigilo, da confidencialidade e da privacidade nas informações de saúde, que são considerados dados pessoais sensíveis à luz da nova Lei Geral de Proteção de Dados.

A despeito da louvável iniciativa do Conselho Federal de Medicina e do próprio Ministério da Saúde, importante questão deve ser enfrentada no que pertine à competência legal para normatizar sobre o tema afeto ao exercício da profissão.

É que a Constituição Federal, em seu artigo 22, inciso XVI[6], estabelece ser de competência legislativa exclusiva da União legislar sobre “condições para o exercício de profissões”, não cabendo a entes da Administração Pública inovar a ordem jurídica, como é o caso da autarquia profissional em voga, sob pena de afrontar o princípio da legalidade e extrapolar os limites de seu poder normativo.

Nesse sentir, em 16 de abril de 2020, foi publicada a Lei Federal nº 13.989/2020, que dispõe sobre o uso da telemedicina enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), com a ressalva de que o médico deverá alertar o paciente todas as limitações inerentes ao uso da telemedicina, tendo em vista a impossibilidade de realização de exame físico durante a consulta.

Todavia, restou vetado pelo Presidente da República, o artigo do respectivo projeto de lei que assegurava a validade das receitas médicas apresentadas em suporte digital, sob o fundamento de que a possibilidade de fácil adulteração do documento eletrônico coloca em grave risco sanitário o interesse público.

 

Considerações finais

No atual cenário brasileiro, a despeito de o Conselho Federal de Medicina acenar para a pertinência e eticidade do uso da telemática no exercício da profissão, o impasse legislativo sobre o tema dever ser tratado tão somente por Lei Federal gera insegurança jurídica nos profissionais da saúde.

Ademais, no contexto do COVID, em que se buscar evitar o contato direto entre paciente e médico, como medida excepcional de proteção e contenção de contágio, persiste, de igual forma, empecilho sobre a possibilidade de prescrição médica pela via virtual.

Por fim e não menos importante, há que se destacar que, embora não se negue a singularidade da gravidade da pandemia pelo COVID, não é razoável que a população padece de tantas outras patologias, de natureza crônica ou aguda, de morbidade igualmente severa.

Ignorar que tais patologias e seus portadores são igualmente detentores do direito subjetivo à saúde e ao devido tratamento é ofender a Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana, o princípio da continuidade do serviço público e a própria razão de ser do Estado.

Assim, em contexto pandêmico, o uso da tecnologia deve ser priorizado, como solução ao atendimento universal e igualitário de todo e qualquer indivíduo, seja qual for a moléstia que lhe aflige.

Por razões lógicas, deve-se priorizar os casos mais severos e que exijam cuidados imediatos, sem descuidar de um espectro considerável de tantas outras morbidades, sob pena de seu agravamento pelo descaso do Estado.

 

Notas e Referências

[1] Decretado estado de pandemia em 11 de março de 2020.

[2] Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2019

[4] CÂMARA, Jacintho Arruda. Tarifa nas concessões. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

[5] Ministério da Saúde/DATASUS/MS (BRASIL, 2018)

[6] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

XVI - organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões;

 

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