Nesta semana, volta à tona a saga quanto ao julgamento da suspeição do ex Juiz Sérgio Moro na Operação Lava Jato.
Assunto delicado, pois este julgamento, mais do que qualquer outro (poder-se-ia falar que “nunca antes na história deste país” um julgamento foi tão comentado e debatido), suscita posicionamentos apaixonados, ideológicos, por envolver um líder político, o ex Presidente Lula, que que tem sua representatividade, sendo querido ou amado por muitos brasileiros e não muito bem-quisto por outros tantos.
O que, efetivamente, acaba poluindo ou desvirtuando a análise mais técnica que deveria nortear o assunto, muito embora a tão almejada neutralidade, sobretudo no estudo das ciências humanas, não exista mesmo na prática (e, como demonstra a pandemia de Covid-19, nem mesmo nas demais ciências, pois o argumento científico, ou o cientificismo em si, é utilizado conforme as conveniências em voga, conforme evidencia a própria história).
Outrossim, o julgamento envolve outra figura que, assim como o ex Presidente Lula, entrou para a história do país, qual seja, o ex Juiz e ex Ministro da Justiça, Sérgio Moro, tendo também este, assim como Luís Inácio, seus fiéis admiradores e detratores, seja entre os petistas e, recentemente, entre os próprios bolsonaristas.
Talvez a união entre estes dois espectros políticos tão antagônicos entre si explique o enfraquecimento daquele que, até há bem pouco tempo, tinha a conduta reputada quase como sendo imaculada. E, diga-se de passagem, bolsonaristas, que se intitulavam pretensos defensores da pauta do combate à corrupção, tiveram maior êxito na derrocada da imagem do ex Juiz Sérgio Moro perante a opinião pública se comparados aos próprios petistas, e, talvez, tenham sido determinantes para a recente tomada de posição pelo Supremo Tribunal Federal em detrimento de uma melhor avaliação da atuação de Moro.
De fato, o Presidente Jair Bolsonaro, ainda que por fundamentos equivocados, acerta quando afirma que acabou com a Operação Lava Jato[1], tendo isso se dado, entretanto, pelo enfraquecimento da figura do ex Juiz Sérgio Moro.
Neste sentido, em um ambiente tão polarizado como se encontra a nação, é muito difícil afirmar – e isso por parte de quem quer que seja – que exista uma maior isenção, do ponto de vista estritamente técnico jurídico, para tratar do assunto: ressalte-se, quer da parte de quem defenda a anulação pela suspeição do ex Juiz (um Ministro, em prol da anulação, até chegou a chorar ao final do julgamento na 2.ª Turma, visivelmente emocionado), quer de quem defenda a regularidade da atuação do ex Magistrado.
Portanto, ninguém tem tanta legitimidade para acusar o outro de atecnia, ou de fazer “política”, por sustentar esta ou aquela posição jurídica, no caso em discussão, dado o histórico de proximidade, ou de simpatia ou mesmo de aversão por um ou outro envolvido na controvérsia jurídica ora em julgamento no Supremo Tribunal Federal, até porque a ação envolve nomes de expressão nacional, que, por razões políticas, despertam paixão ou repulsa nas pessoas, sendo que todos, a princípio, são suspeitos para se arvorarem à condição de sábios, de neutros, ou para fazer um julgamento desapaixonado ou inteiramente técnico a respeito se houve ou não suspeição do Magistrado.
Tendo em vista o exposto, consignando, de pronto, que não atuamos em qualquer caso da Operação Lava Jato atualmente[2], e a fim de se afastar, o tanto quanto possível, questionamento de ordem não técnica (ideologicamente, por transparência, reconhecemos que estamos em espectro ideológico oposto ao do ex Presidente Lula, embora, pessoalmente, não temos problemas com pessoas, mas reservas pelas ideias e condutas que estas possam ter ou defender), situaremos a nossa análise na coerência da atual posição da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, que declarou a suspeição do Juiz pela sua forma de atuação na operação Lava Jato, cuja análise deve ser ainda referendada, ou não, pelo Plenário.
Não entraremos no mérito quanto ao acerto do resultado da decisão em si, se foi correta ou não a declaração da suspeição, pois, como dito, ambos os posicionamentos, em um ou outro sentido, têm amparo em argumentos respeitáveis, albergando componentes políticos, sendo nossa análise situada nas consequências e na extensão quanto ao reconhecimento da suspeição e qual seu impacto para a Operação como um todo.
Entre os pontos mencionados para o reconhecimento da suspeição do magistrado na Operação Lava Jato, seja da leitura, em sessão, dos votos do Ministro Gilmar Mendes, bem como de nosso sempre ilustre Professor nas Arcadas, o eminente Ministro Ricardo Lewandowski, e da leitura do voto da Ministra Carmen Lúcia, que, na última hora, mudou de posicionamento (sem considerar as mensagens vazadas pelo hacker), é possível listar que foi levada em conta a atuação objetiva do magistrado na Operação como um todo, tendo o Ministro Gilmar Mendes pontuado, inclusive, práticas do Magistrado em outras Operações.
A análise do Ministro Gilmar Mendes, que carregou um pouco mais nas tintas que os demais Pares, parece apontar quase para um estado de suspeição congênito de Sérgio Moro para atuar em todo e qualquer caso criminal, quase como uma hipótese, se houvesse, de impedimento por práticas consideradas inquisitoriais, elencando exemplos não apenas no caso do ex Presidente Lula, tanto assim que citou práticas que se deram em relação a diversos outros imputados e a réus, inclusive, de outras Operações.
Enfim, da leitura dos votos lidos na sessão, verifica-se que houve uma espécie de reprovação geral quanto aos métodos adotados, que aconteceram, em realidade, em, praticamente, todos os casos da Operação, pontuando-se sobre a relação próxima entre Juiz e a parte acusatória, bem como para as práticas utilizadas e sedimentadas contra muitos dos investigados, como a própria condução coercitiva.
Mais que uma relação pessoal de suspeição (de caráter mais subjetivo, como, por exemplo, prova de inimizade, ou prova da animosidade), elencaram-se condutas objetivas do ex Juiz, que, digno de nota, foram igualmente praticadas contra muitos outros réus e investigados da Lava Jato, e usadas para justificar o reconhecimento da parcialidade apenas no caso de Lula, ficando a indagação por que, na análise do habeas corpus, não se avaliou a possibilidade de extensão de efeitos, plenamente cabível, dada a situação de isonomia.
Ao contrário, os Ministros, em sua maioria, fizeram questão de frisar que aquela decisão só estava sendo tomada naquele caso concreto, naquela situação específica, não se aplicando aos demais, o que, salvo melhor juízo, a nosso sentir, aponta para uma atecnia, e injustiça, pois a justiça do caso concreto, ou do “cada caso é um caso”, nunca é a melhor solução, por propiciar casuísmo e soluções díspares para casos iguais.
Embora se pudesse vislumbrar a fisiologia de um juiz que, no jargão criminal, pudesse ser qualificado como “linha dura” (e desde muito antes da eclosão da Operação Lava Jato, todos, em âmbito penal, já sabíamos da fama de Moro), como quis pontuar o Ministro Kassio Nunes Marques, ao explicar que, em âmbito forense, é comum juízes terem linhas diferentes, alguns sendo mais garantistas, outros mais acusatórios, podendo-se, inclusive, prever qual será o resultado do processo, conforme o caso caia com este ou aquele juiz, razão pela qual, ao seu sentir, não haveria motivo para se falar em suspeição, o fato é que, vencido em sua argumentação, uma vez reconhecida, por maioria, a parcialidade, e alicerçada esta no modus operandi de Sérgio Moro enquanto magistrado, isto é, em fatos objetivos, e praticados contra inúmeros investigados, é, a nosso ver, tecnicamente equivocado querer circunscrever esta suposta suspeição apenas para o caso Lula.
De fato, não tem sentido considerar o juiz suspeito apenas para o caso do ex Presidente Lula quando este sequer teve prisão cautelar decretada pelo magistrado reconhecido suspeito (a sua prisão se deu por ordem do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, com participação do próprio Supremo ao referendar a execução provisória) enquanto que, em outros casos, além de serem decretadas várias medidas levadas em conta para consideração da sua suspeição no caso Lula, decretaram-se também prisões cautelares, sequestros, medidas cautelares de diversos tipos, podendo-se citar, a título exemplificativo, o caso do então Deputado Federal, Eduardo Cunha, o qual, tão logo cassado, teve sua prisão decretada pelo ex Juiz Sérgio Moro, em outubro de 2016, bem como o do ex Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, entre tantos outros.
Poder-se-ia citar diversos casos de pessoas que foram presas mesmo sem uma acusação formulada pelo Ministério Público Federal, sendo bastante difícil sustentar que apenas no caso Lula o juiz seria suspeito, mas não para os demais, quando, na mesma Operação, o mesmo Juiz praticou uma série de atos similares, e, convenha-se, até muito piores (em termos de supressão da liberdade, com a decretação de prisões preventivas e temporárias), contra outros tantos políticos e mesmo contra empresários ou pessoas comuns.
Nesta semana, a princípio, o Pleno do Supremo Tribunal Federal terá oportunidade de revisitar a matéria, seja referendando a decisão da 2ª Turma ou não.
Caso referende, conforme previsão esperada, como já adiantado pela imprensa[3], data venia, até para afastar alegação de julgamento político, ou com finalidade eleitoral, ou para reconhecimento da nulidade para proteger determinado imputado, deveria o Supremo Tribunal Federal, em reconhecendo a suspeição do ex Juiz Sérgio Moro, pelo Plenário, para Lula, estender os efeitos da decisão para toda a Operação Lava Jato.
Não haveria qualquer problema nesta solução, até mesmo porque o próprio Código de Processo Penal a prevê, expressamente (extensão de efeitos no HC), sendo que, ainda que não a previsse, o princípio Constitucional Maior da Igualdade Jurídica assim mandaria. Nunca é demais lembrar que tutelas coletivas, em sede penal, têm sido implementadas pelo próprio Supremo Tribunal Federal, por meio de HCs Coletivos, sendo que, também por este argumento jurídico, a solução aqui aventada não encontraria empecilhos.
Somente assim a decisão será considerada inquestionavelmente técnica, pois guardará coerência com seus pressupostos, pois se o Tribunal considera que o juiz adotou práticas inquisitoriais, apontando a proximidade com alguns membros da Força Tarefa da Operação Lava Jato[4], é de convir que esta suspeição não se deu apenas com relação a apenas um único imputado, mormente quando as mesmas práticas processuais se deram em relação a outros tantos investigados, que tiveram até a prisão decretada e prolongada pelo magistrado reconhecido suspeito tão somente no caso Lula (que nem preso foi por Moro).
Um dos grandes problemas da matéria das nulidades é o casuísmo na sua aplicação. Não raro, neste tema, se reconhece a nulidade para Tício, mas não para Caio, embora ambos estejam na mesmíssima situação jurídica.
Não é incomum um jovem advogado se empolgar com lindas decisões proferidas para casos célebres, publicadas em periódicos de Institutos e em revistas especializadas, mas se frustrar ao constatar que, em casos idênticos que este patrocina, os maravilhosos precedentes citados não são aplicados aos seus casos, em tudo iguais.
Este não é um problema atual, mas antigo e sempre presente.
Em trabalho próprio, tivemos oportunidade de constatar como são proferidas decisões díspares para casos em tudo iguais, ficando a indagação, já aventada por vários Autores e, mais recentemente, pela Professora Mariângela Gama de Magalhães Gomes, em seu excelente trabalho a respeito da relação entre direito penal e jurisprudência, de que, embora as pessoas estejam sujeitas à mesma legislação, não necessariamente receberão o mesmo “tratamento jurídico”[5], ficando a desconfortável sensação já exposta por nós, no que tange à matéria de nulidades, de ofensa à isonomia, sendo que:
“Em um Estado democraticamente justo, a lei deve valer igualmente para todos. Ninguém pode estar nem acima ou abaixo dela. Todos devem ser responsabilizados pelos seus atos, na medida de sua culpabilidade, cumprindo não tornar a matéria das nulidades processuais uma ferramenta, de um lado, a favor da punição de muitos e, de outro, da impunidade de poucos (tratamento privilegiado). Afinal, tratamentos diferenciados, quando despropositados e sem razão legítima, ferem, igualmente, a lógica do Estado de Direito, minando a confiança que os cidadãos têm na justiça e na legitimidade das decisões”[6]
Em prol do princípio da isonomia, e também em homenagem ao trabalho de toda a advocacia, mencionada e enaltecida, aliás, pelo Ministro Gilmar Mendes, ao declarar o resultado do julgamento da suspeição do ex Juiz Sérgio Moro, na 2.ª Turma, a solução técnica esperada e correta é que o Pleno, caso referende a decisão dada, reconhecendo a parcialidade de Moro, estenda os seus efeitos para todos os casos da Operação Lava Jato. É uma solução que parece radical, mas, do ponto de vista jurídico, é o certo (e justo) a fazer.
Caso contrário, se a decisão for aplicada exclusivamente para um único caso, tanto as pessoas comuns quanto os acadêmicos e estudiosos do Direito em geral terão razão de questionar a tecnicidade da decisão, já que aplicada para um caso específico e determinado, observando-se que todos devem ser tratados, igualmente, nos termos da lei.
Quanto ao ex Juiz Sérgio Moro, deve ser mantida a decisão da 2.ª Turma que não o condenou às custas processuais, conforme ponderado pela Ministra Cármen Lúcia, considerando que não seria adequado, correto tampouco justo, a nosso sentir, o STF condenar o Juiz neste sentido quando o próprio Supremo Tribunal Federal referendou centenas de decisões judiciais proferidas por ele, sendo o Tribunal conhecedor de suas práticas processuais, referendadas por outras instâncias, mas que, somente mais recentemente, vieram a ser vistas com maiores reservas por alguns Ministros, formando-se maioria neste sentido (por enquanto, na 2.ª Turma).
Notas e Referências
[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/07/bolsonaro-diz-que-acabou-com-a-operacao-lava-jato-porque-governo-nao-tem-mais-corrupcao.ghtml. Erra quando afirma que acabou com a Operação Lava Jato porque a corrupção tenha acabado em seu governo, embora, é preciso frisar, até o presente momento, não há notícia do nível de corrupção sistêmica nos moldes de um passado recente.
[2] Já atuamos em alguns casos, no passado, mas hoje não mais.
[3] https://noticias.uol.com.br/colunas/carolina-brigido/2021/04/21/stf-suspeicao-moro.htm
[4] A rigor, a suspeição do caso, com o devido respeito, se deu mais por culpa da conduta dos Procuradores da República que atuaram no caso, que forçaram e investiram em uma grande e inadequada proximidade com autoridades judiciais que julgariam o caso, isso mesmo nos Tribunais Superiores, sendo que, muito embora se fale da conduta do Juiz, a nosso ver, em realidade, quem invalidou todo o procedimento foi a desastrada atuação de alguns membros do Ministério Público Federal ao pretenderem ter um protagonismo e proximidade com Juízes, Desembargadores e Ministros que não lhes competiria. Seja como for, embora não se tenha avaliado, de forma expressa, o peso das mensagens hackeadas e reveladas à imprensa, pelo que ficou conhecido como Vaza Jato (o que entendemos ser um equívoco, pois o Tribunal não poderia fechar os olhos ou fingir desconsiderar uma prova encartada – ou, quando não encartada – que tenha trechos citados nas peças processuais, para fugir da apreciação da sua ilicitude, por exemplo, como se faz para não se reconhecer alguma invalidade, ao se afirmar que o elemento viciado não foi valorado na sentença, não havendo prejuízo...), esperamos que isso venha a ser debatido pelo Pleno no julgamento desta semana, porque este ponto precisa e deve ser enfrentado.
[5] “Os inúmeros contrastes jurisprudenciais que podem ser verificados nas decisões de nossos tribunais conduzem a um inevitável questionamento acerca da igualdade com que os cidadãos são tratados diante da lei. Resta
patente que interpretações diferentes da mesma norma criam, inevitavelmente, injustificada disparidade de tratamento – e não se pode esquecer que uma das importantes razões que levaram ao triunfo da legalidade no direito penal foi, justamente, a necessidade de que todos sejam tratados da mesma forma, sem discriminações e casuísmos. Sob esse prisma, a existência de diferentes interpretações do mesmo conjunto de leis conduz à constatação de que, não obstante os cidadãos estejam sujeitos à mesma lei, isso não implica, necessariamente, a
submissão ao mesmo tratamento jurídico” (GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 101)
[6] PASCHOAL, Jorge Coutinho. O Prejuízo e as Nulidades Processuais Penais: um estudo à luz do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. A terceira edição está prestes a ser lançada neste ano.
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