Coluna Direito Civil em Pauta / Coordenadores Daniel Andrade, David Hosni, Henry Colombi e Lucas Oliveira
Alguns casos judiciais detêm algo de anedótico. Alinhados a uma verve poética do julgador, uma decisão judicial, por vezes, mais parece uma crônica do que um provimento judicial.
Em 2012, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais julgou a Apelação Cível n. 1.0480.06.084977-9/002[1], o qual foi alcunhado por Julio Gonzaga Andrade Neves como o "Caso do Ranchinho"[2]. O recurso era originário de uma ação de usucapião julgada na Comarca de Patos de Minas, na qual foi declarada a aquisição da propriedade imobiliária de uma pequena fração de uma fazenda pertencente ao Apelante. Em seu recurso, o Apelante alegou que o Apelado, "Zé Bento", não poderia adquirir a propriedade, pois residia e plantava naquele "ranchinho" por mera permissão, não sendo posseiro, mas mero detentor.
Os desembargadores que julgaram o caso, ao analisarem os autos, constataram que, de fato, Zé Bento não detinha posse sobre aquele terreno. Excertos do acórdão demonstram que, desde quando aquelas terras pertenciam a "Juca Mandu", Zé Bento era o zelador da igrejinha da fazenda, que ficava na imediação da área usucapienda. Após a venda da fazenda para o Apelante, a presença do Apelado foi tolerada, sendo incontroverso nos autos que ele permanecia na propriedade como mero detentor. A harmonia foi quebrada apenas quando Zé Bento ajuizou o processo em questão, buscando tornar-se definitivamente proprietário de seu ranchinho. Para atestar o lirismo do caso, vale destacar alguns trechos do voto do desembargador relator:
Em seu depoimento pessoal, prestado na fl. 193, o autor deixa evidenciado, em resumo, de forma cristalina que sempre ocupou o imóvel usucapiendo por aquiescência de Juca Mandu, então dono do terreno. Que foi Juca Mandu foi quem o colocou como gerente da igreja ali existente, onde morou por aproximadamente 18 (dezoito) anos, tendo depois construído uma casinha na beira de uma capoeira, onde continuou tocando as suas plantações. Disse, também, que planta no imóvel 30 (trinta) litros de roça".
Já o apelante varão, em seu depoimento de fl. 194, esclareceu que adquiriu seu terreno de Juca Mandu. Que, quando comprou o terreno, já sabia que Zé Bento já estava na área ocupando uma casa cercada por cerca de arame. Esclareceu que sempre visitava o autor, mas deixou de fazê-lo depois que ele ajuizou contra ele a ação de usucapião de que cuidam os autos. Esclareceu, também, o réu que a cerca construída em torno da área medindo 17, 47,92ha foi construída por ele próprio e um ajudante.
A testemunha Moacir Teófilo de Leles, em seu depoimento de fl. 195, limitou-se a esclarecer que o autor se encontra morando no imóvel usucapiendo há mais de 25 anos, e que com ele plantou uma moita de arroz e uma lavoura de milho, à meia.
Já a testemunha Noraldino Pereira Cardoso (fl. 196) afirmou que o autor planta lavoura de subsistência na área. Que o autor mora na região há 30 (trinta) anos, residindo num ranchinho perto da capela e que tocava roça com Joel Mandu, e que depois foi permitido por este construir uma casa em outro local e cercar a área que hoje reivindica. Esclareceu que tem o autor como se fosse seu pai. Disse que existe cerca em torno da casa em que o autor reside, separando-a da área de pastagem.
Por sua vez, a testemunhas Luiz Gonzaga de Abreu, em seu depoimento de fl. 199, esclareceu que mora na região há aproximadamente 50 (cinquenta) anos, conhecendo o autor na posse de uma área dentro de outra área, tendo a área usucapienda sido cercada de uns 04(quatro) anos para cá. Que o autor tem a posse apenas de uma casa e um quintal, onde mora há aproximadamente 25 (vinte e cinco) anos. Disse, também, que apenas há 04 (quatro) anos, o autor está ocupando a área maior, objeto do pedido de usucapião, e que de dois anos para cá está plantando na área desmatada. E que - encerrando seu depoimento - que o autor não cria galinha nem porco na área usucapienda.
Dos depoimentos acima, verifica-se que o autor jamais teve posse do imóvel com "animus domini", ali permanecendo com autorização do antecessor dos apelantes, situação que não se alterou com a aquisição do imóvel pelos réus[3].
Diante dessas constatações, tendo em vista a impossibilidade de se reconhecer a aquisição originária da propriedade pela usucapião, a qual tem como requisito essencial a posse, o Tribunal reformou a sentença. Contudo – e nisso está o interesse do caso em comento – apesar de reconhecerem a inexistência de usucapião, os desembargadores, por maioria, deferiram ao Apelado, Zé Bento, o direito "de permanecer, enquanto viver ou quiser, na área menor, em que reside e planta"[4].
A posição da maioria não foi fundamentada em qualquer dispositivo ou teoria. Foi o voto vencido que qualificou o entendimento em questão como uma manifestação da suppressio, tendo entendido, contudo, que essa situação permitiria o próprio reconhecimento da posse com animus domini para fins de aquisição originária pela usucapião. Parece, no entanto, acertado que a suppressio seria o fundamento dessa decisão, tendo em vista que o caso trata da manutenção de uma situação fática indutora de confiança em razão de sua perpetuação pela inércia do titular do direito[5].
O que se verifica no caso é a utilização da suppressio como uma forma de contornar os requisitos estanques necessários à configuração da usucapião[6], quais sejam: a posse ad usucapionem e o decurso temporal. Casos que aplicam a mesma ratio decidendi são frequentes na jurisprudência brasileira, sobretudo no que se refere a conflitos condominiais referentes ao uso exclusivo de áreas comuns que, em razão de sua perpetuação no tempo, têm sido mantidas pelo Poder Judiciário[7]. O que se observa é que o sistema móvel permitido pelas cláusulas gerais, já muito experimentadas no âmbito do direito das obrigações, foi transposto para a seara dos direitos reais em algumas situações-limite, de forma a permitir que os julgadores façam a justiça do caso concreto.
A priori, não se verifica uma incompatibilidade necessária entre o instituto da suppressio e o ramo dos direitos reais. Afinal, a cláusula geral de vedação ao abuso do direito, estatuída no art. 187 do Código Civil, a qual é, com certa uniformidade, considerada a base positiva para a aplicação da suppressio, encontra-se na Parte Geral do Código Civil, sendo, portanto, potencialmente aplicável a qualquer espécie de relação jurídica[8].
Contudo, não se pode desprezar o fato que o maior problema das cláusulas gerais e da adoção de um sistema móvel é a perda em termos de segurança jurídica. Dessa forma, é conhecido o clamor da doutrina pela necessidade de critério de aplicação estáveis e controláveis de soluções baseadas em cláusulas gerais[9]. Essa preocupação parece ainda mais relevante quando se trata de direitos reais, os quais são naturalmente perenes, estáveis e, em regra, economicamente relevantes.
É claro que situações consolidadas no tempo são de difícil alteração. As relações jurídicas, como os corpos físicos, tendem à inércia. Contudo, é necessário perceber que a ausência de critérios sólidos de emprego de cláusulas gerais pode gerar situações imprevisíveis que, além de eventuais injustiças pontuais, transmitem incentivos que podem acarretar resultados socialmente indesejáveis, sobretudo quando envolvem questões fundiárias.
Retomemos o "Caso do Ranchinho". Por mais que a situação de Zé Bento atraia a imediata simpatia daqueles que têm contato com o caso, ainda que pareça insensível retirá-lo da terra em que sempre viveu, plantou e zelou pela igrejinha, é necessário ponderar os incentivos que uma decisão como a prolatada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais transmitem a eventuais proprietários de terras que, por atos de liberalidade e tolerância, permitem a manutenção de detentores em suas áreas.
Intuitivamente, é de se esperar que a reiteração de decisões dessa natureza gere incentivos pouco altruístas por parte de proprietários, o que pode desequilibrar situações socialmente aceitas que, em razão do aumento de riscos, podem se tornar contraindicadas. Obviamente, essas são questões que merecem um estudo aprofundado antes que conclusões definitivas sejam tomadas. Entretanto, sobretudo em se tratando de situações jurídicas que envolvem direitos reais imobiliários, máxime de natureza fundiária, é necessário cautela.
Notas e Referências
[1] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça, 14ª Câmara Cível. AC 1.0480.06.084977-9/002. Rel. Des. Antônio de Pádua. Belo Horizonte, 15 de março de 2012. p. 9.
[2] NEVES, Julio Gonzaga Andrade. A Suppressio (Verwirkung) no Direito Civil. São Paulo: Almedina, 2016. p. 179.
[3] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça, 14ª Câmara Cível. AC 1.0480.06.084977-9/002. Rel. Des. Antônio de Pádua. Belo Horizonte, 15 de março de 2012. p. 9.
[4] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça, 14ª Câmara Cível. AC 1.0480.06.084977-9/002. Rel. Des. Antônio de Pádua. Belo Horizonte, 15 de março de 2012. p. 9.
[5] CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2001. p. 797.
[6] Esse diagnóstico também é feito por Lauro Oliveira. OLIVEIRA, Lauro E. C. de. A supressio em áreas comuns de condomínios edilícios. In: LOPES, Christian Sahb et al. (Coords.). Direito Civil Contemporâneo. Vol. I. Florianópolis: CONPEDI, 2015.
[7] Para uma lista de casos, cf. PEREIRA, Fabio Queiroz; COLOMBI, Henry. Aspectos materiais e registrais da suppressio de direitos reais. 2º Concurso de Artigos CORI-MG. Disponível em: <https://corimg.org/conheca-os-trabalhos-premiados-no-2o-concurso-de-artigos/>. Acesso em agosto de 2020. Destaca-se, dentre eles, o primeiro caso a aplicar o instituto da suppressio no Brasil, o REsp 214.680, denominado "caso dos corredores inúteis". BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Quarta Turma. REsp 214.680-SP. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr. Brasília, 10 de agosto de 1999.
[8] Para uma análise mais aprofundada dessas questões, bem como sobre a compatibilidade entre a figura da suppressio e o ramo dos direitos reais e o seu impacto sobre os registros imobiliários, cf. PEREIRA, Fabio Queiroz; COLOMBI, Henry. Aspectos materiais e registrais da suppressio de direitos reais. 2º Concurso de Artigos CORI-MG. Disponível em: <https://corimg.org/conheca-os-trabalhos-premiados-no-2o-concurso-de-artigos/>. Acesso em agosto de 2020.
[9] A propósito, a reformulação do próprio título da relevante obra de Judith Martins-Costa, que, em sua primeira edição era "Boa-Fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional", e, mais modernamente, passou-se a se intitular "A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação". MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
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