A solidão do mentiroso

06/03/2019

Dizer-se o que não é exatamente o que se acredita que seja. O nome disso é mentira. Formulei este conceito para poder excluir compreensões distorcidas por transtornos de qualquer ordem que alcancem alguém.

Se, por motivos emocionais, eu desvirtuo os fatos, de maneira a contornar desconfortos insuperáveis, não estaria mentindo, pois me encontraria pressionado por consternações emocionais invencíveis.

Mentir, então, é mentir mesmo, é não dizer a coisa como se sabe, ou honestamente se supõe, que ela é: aumentar, mitigar, distorcer, suprimir, acrescentar, escamotear etc., como ato deliberado, induzindo a erro.

Há casos em que a mentira é perfeitamente legítima. O exemplo extremo é o do judeu que negava sua etnia a um nazista, simplesmente para não ser morto. Mas há coisas mais singelas, que, igualmente, legitimam a mentira.

Se pais autoritários cerceiam exageradamente o ir e vir da filha, não se pode condenar o ‘‘vou dormir na casa da amiga para estudar’’, e, de lá, o ir para as festas que a vida oferece, às quais a menina tem direito.

Existe a mentira misericordiosa, dita, talvez indevidamente, ao doente, ou à pessoa não tão bem vestida assim. Há, inclusive, a regalia de mentir: ninguém é obrigado, ao depor em juízo, a produzir prova contra si.

Mas, e a mentira gratuita? Aquela que não é transtorno ou misericórdia, nem é legítima. Não creio que haja um mentiroso sem necessidade psicológica de sê-lo. Uma necessidade, contudo, explica o mentiroso; não o justifica.

Ninguém pode meramente atender suas necessidades, desconsiderando os danos emocionais e de relacionamento que causa ao seu redor. Uma necessidade não é, forçosamente, insuperável. Talvez, se pedir ajuda...

Quem mente tem que optar entre as amarguras de saber-se um mentiroso e as dores de encarar uma verdade que lhe seja difícil. A própria decisão de optar é aflitiva. Mas, quem pode viver sem enfrentar opções?

O mentiroso mente, antes de tudo, para ele mesmo. Auto-engana-se de que enganou o próximo. E não tem muita vergonha de mentir. Se tivesse, não mentiria. E não é exatamente de ser descoberto que tem medo.

Ao mentiroso apavora-lhe é que se lhe descubra a verdade. Envergonha-se de algo escondido: simplesmente, a verdade. Esta verdade, normalmente, o envolve. O mentiroso tem vergonha da verdade em que está envolvido.

Então, ele cria uma realidade mentirosa e tem que sustentá-la com outras mentiras. Isto não lhe é confortável, mas menos confortável é a realidade que deseja esconder. Cria um mundo vicioso de mentiras e vai morar nele.

Este mundo é construído sobre mentiras indulgentes, pregadas para si mesmo. O mentiroso se convence de que está convencido (no fundo, não está) de que mente para o bem da vítima, ou de que prega a última mentira.

O mentiroso, em momentos de verdade, está só: ele sabe que os outros sabem que ele está mentindo e que ele não vai parar. Na vida, quem mente vai sendo desmoralizado, vai se desmoralizando, vai se desmoralizar.

Não deve ser confortável levar a existência deparando-se consigo falsificado por si mesmo. “Fiz questão de esquecer \ Que mentir pra si mesmo \ É sempre a pior mentira” (Legião Urbana, Quase sem querer).

Os amigos do mentiroso devem-lhe duas coisas: um espaço afetuoso, que lhe abrigue a verdade escondida, e uma reclamação: que pare de mentir. Tolerá-lo sob suspeita é fazer-lhe mais mal do que o mal que ele faz a si.

 

 

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