A sociedade unipessoal e os custos de agência  

09/07/2020

A edição da Medida Provisória 881 de 2019, conhecida popularmente como “Medida Provisória da Liberdade Econômica”, foi celebrada por muitos juristas pelas inovações que trouxe no âmbito do direito privado, tanto no direito contratual quanto no direito societário, conforme já previamente explorado nesta coluna.

Após sua conversão na Lei 13.874/2019, essas mudanças foram efetivadas no ordenamento jurídico brasileiro, trazendo mecanismos importantes e úteis para a prática empresarial. Dentre elas destaca-se a sociedade limitada unipessoal, agora uma realidade pelo § 1º do artigo 1.052 do Código Civil:

Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.    

§ 1º A sociedade limitada pode ser constituída por 1 (uma) ou mais pessoas (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019).

Era tradicional, na prática empresarial, que muitos empresários buscassem uma segunda pessoa para formar sociedade e adquirir o benefício da limitação de responsabilidade, os chamados “sócios de palha”. Até 2011, essa era a única alternativa para a pessoa que quisesse proteger seu patrimônio do risco empresarial.

Em 2011, foi editada a Lei 12.441/2011, que criou a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI), como mecanismo para tentar proteger empresários que queriam empreender sem afetar todo seu patrimônio. Apesar de louvável, a EIRELI requer capital mínimo de 100 salários mínimos para ser constituída, o que afastou seu uso de muitos pequenos e médios empresários.

Apesar dessa limitação, dados da Junta Comercial do Paraná indicam que houve uma penetração progressiva da EIRELI nas empresas registradas. Em 2012[i], elas representavam apenas 4,62% das empresas registradas no Estado; em 2017, elas já representavam 17,91%[ii].

A permissão de sociedades limitadas unipessoais tende a diminuir o uso da EIRELI por empresários, devido à ausência do capital mínimo. Assim, pequenos e médios empresários poderão obter o benefício da limitação de responsabilidade sem necessitar de elevado capital inicial. Dados parciais de 2020  da Junta Comercial do Paraná[iii] indicam que houve um notável aumento de sociedades limitadas registradas, ao mesmo tempo em que se verificou uma diminuição das EIRELI registradas: em janeiro e fevereiro de 2020, antes de os efeitos da pandemia pelo COVID-19 serem sentidos no Brasil, foram registradas 481 e 588 EIRELI, em comparação a 633 e 924 nos mesmos meses de 2019, ao passo que foram registradas 2.062 e 2.570 sociedades limitadas nesse período, em comparação a 1.416 e 1.972 no ano anterior.

A prática ainda confirmará o sucesso ou o fracasso da limitada unipessoal, mas é imperativo que se realizem estudos aprofundados a seu respeito, para evitar que caia em desuso ou mau uso por conta de incertezas. A Lei de Liberdade Econômica, apesar do tempo, com atraso em relação às grandes economias do mundo, nessa particularidade foi bem recebida, em que pesem algumas alterações pontuais nas normas de direito societário, sem a percepção de uma avaliação mais pormenorizada da norma em relação às práticas societárias, em termos de consequências para esse tipo societário. A análise econômica do direito tem bom encaixe, como ferramenta útil, a propiciar o estudo de algumas potencialidades da limitada unipessoal.

A limitação de responsabilidade dos sócios não elimina os riscos presentes na prática empresarial, mas apenas os transfere, da pessoa dos sócios para partes com as quais se relaciona (stakeholders), especialmente os credores[iv]. Estes são vistos como sendo os mais capazes de suportar os riscos do investimento. Em contrapartida, os sócios possuem maior liberdade e maior segurança nos negócios em que investiram, sem preocupações maiores em relação ao potencial de perda do seu patrimônio pessoal em caso de insucesso da empreitada.

A limitação de responsabilidade é de fato um incentivo legal e eficiente para a diversificação de investimentos dos sócios, alcançando tanto as sociedades unipessoais como as pluripessoais, tratadas, nessa particularidade, com isonomia, em que pesem as anomalias ainda existentes na derivação de responsabilidade sem justa causa.

Uma vantagem considerável que pode ser levantada, quando comparada à sociedade pluripessoal, é a inexistência de risco de saída de outros sócios a qualquer momento, hipótese plenamente viável nos termos da jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça. Tal prática valoriza os direitos do sócio minoritário em detrimento da própria empresa, que pode ficar inviabilizada quando da obrigação de pagamento de haveres ao retirante[v]. Ainda, evitam-se os custos envolvidos quanto à negociação do conteúdo das cláusulas relacionadas à apuração de haveres, bem como os custos de transação na saída, litigiosa ou não, do sócio (custos com processos no Judiciário, negociação do valor dos haveres, alterações no contrato social, dentre outros).

Outro efeito importante diz respeito aos custos de agência envolvidos, quando comparamos a sociedade de um único sócio com a sociedade plural. Agência pode ser definida como a situação na qual a maximização dos interesses de uma parte (o chamado “principal”) depende da atuação de um terceiro (o “agente”)[vi]. Os custos das partes envolvidas numa relação de agência são chamados de custos de agência. Tais custos não se resumem àqueles monetariamente computados, mas alcançam todos os demais custos de transação que impactam na sociedade (tempo, aspectos emocionais), inclusive aqueles que têm intimidade com o poder de controle, menos relevantes nas sociedades unipessoais, exceto quando a administração estiver nas mãos de terceiros.

Para a presente análise, é possível identificar três tipos de custos de agência: entre sócios minoritários e majoritários, entre sócios e administradores e entre a sociedade e seus stakeholders. Há um custo para o monitoramento entre todas essas diferentes partes, para assegurar que os agentes estejam agindo em prol dos principais. Aliás, entre as partes envolvidas é primordial a formalização do contrato de agência, que pressupõe, como dito, a existência de um delegante e um delegado, um principal e um agente, cujo enlace é o vínculo a se cuidar por essa espécie de contrato, pressupondo-se a prevalência dos interesses do principal em relação aos do agente. Trata-se, assim, no contrato de agência, de um efetivo instrumento de controle, indispensável em grande parte das sociedades, sejam unipessoais ou não[vii].

A familiaridade com esse tema, ao lado de outras necessidades adicionais, como governança e compliance, mesmo com uma estrutura simplificada, constituem elementos primorosos para o pleno êxito das atividades econômicas desenvolvidas em mercados segmentados.

Mackaay e Rousseau notam que os custos de agência entre sócios minoritários e majoritários podem ser elevados, especialmente se houver uma base societária fracionada[viii]. A sociedade limitada unipessoal, por envolver os interesses somente do sócio único, elimina completamente esse risco, pois ele agirá maximizando os seus interesses sempre. É uma vantagem a ser considerada quando do início de uma atividade por qualquer interessado, pois associar-se a outra pessoa envolve, necessariamente, interesses distintos e sua acomodação devida no âmbito da sociedade, em que pesem as contrapartidas e a união de esforços em torno de objetivos comuns, típicos das sociedades pluripessoais.

Os outros tipos de custos também estão presentes numa sociedade unipessoal, possivelmente em maior escala nas sociedades que dependem de terceiros administradores, comparativamente às sociedades que não dependem dessa estrutura, onde o próprio sócio é o administrador. Em uma estrutura em que o sócio responde a si mesmo o custo, neste particular, é igual a zero, pois é o único responsável pela regularidade da atividade econômica praticada.

Caso a sociedade seja administrada por um (ou mais) terceiro(s), os problemas de agência permanecerão, em eventuais conflitos entre a atuação do administrador e os interesses do sócio, que são sempre voltados a aferir o maior lucro possível da sociedade. Exemplos de divergências que podem ocorrer são quanto aos rumos do negócio, a saber: o administrador pode ter interesse em ingressar em um contrato de maior risco, mas com expectativa de maiores resultados, o que pode ir contra um perfil de sócio mais conservador.

Para que esses custos sejam minimizados, é necessária uma estrutura sólida de governança corporativa, na qual o sócio possua amplos poderes, listados no ato constitutivo, para intervir nas decisões do administrador, como a necessidade de sua autorização para o ingresso em contratos de valor mais elevado, sendo relevante a formalização de um contrato de agência, como antes referido.

Quanto aos custos com stakeholders, é necessário considerar que a sociedade, em suas atividades, causa externalidades (a terceiros), sejam elas tanto positivas (como geração de empregos) quanto negativas (como problemas com consumidores)[ix]. Numa sociedade de apenas um sócio, considerando-se o sócio como ser racional e maximizador de seu bem-estar, sem a fiscalização dos demais sócios e toda a dinâmica envolvida, é possível cogitar-se uma atuação pouco preocupada com externalidades negativas.

Soluções para esse impasse, novamente, podem ser encontradas numa estrutura de governança sólida, mesmo que simplificada, a depender da estrutura orgânica da sociedade e da sua capacidade de implantação. O uso de Conselhos Fiscais para assegurar a regularidade das contas da sociedade pode servir para dar mais transparência da sociedade perante terceiros. Calixto Salomão Filho, em 1995, já defendia o uso do Conselho Fiscal como mecanismo de proteção dos interesses de credores em sociedade unipessoais[x].

O problema está no interesse do sócio único de constituir uma estrutura de governança neste sentido, vez que, em uma análise primária e superficial, enxergará apenas a elevação dos custos para si. Por outro lado, por meio de uma avaliação mais detida e dependendo do caso concreto, a repercussão será positiva em se tratando da melhora do desempenho e da competitividade. Ademais, não se pode deixar de considerar que a maior parte das sociedades limitadas são empresas de menor porte. Analisando as empresas registradas na Junta Comercial de São Paulo entre 2002 e 2012, Mariana Pargendler verificou que 83% das sociedades limitadas possuem capital social entre R$ 1.000,00 e R$ 59.999,99[xi] [10]. Apesar de o capital social não ser indicativo do patrimônio real da sociedade, é um instrumento útil para se ter ao menos um parâmetro.

Uma possível saída nesse caso pode derivar da adoção de uma estratégia regulatória[xii], consistente em regras prescritivas sobre a estrutura e o funcionamento das sociedades limitadas unipessoais, de forma a trazer uma restrição ao comportamento desconforme do agente (neste caso, do sócio único) por força de lei. Possíveis soluções são discutidas em torno da obrigatoriedade de Conselho Fiscal, ou da obrigatoriedade do arquivamento de balanços comerciais do ano/exercício findo, para dar publicidade a terceiros interessados. Em que pese a redução da autonomia privada do sócio único, tais soluções são discutidas com o objetivo de dar equilíbrio às relações da sociedade com terceiros, sem descuidar do fato de que a existência de governança e compliance, com regras claras e de relacionamento interno e externo, por si só, independentemente de qualquer ato de regulação, estão entre as soluções mais factíveis, onde a autonomia privada sofreria pouca influência.

Nesse contexto, por um lado, comemora-se pela criação da sociedade limitada unipessoal (sem a necessidade de capital mínimo, como na EIRELI), pois representa importante impulso para as atividades econômicas, trazendo maior segurança para os negócios e incentivos para os investimentos, diante da limitação de responsabilidade, a um menor custo, comparativamente com as sociedades pluripessoais. Porém, por outro, é necessário um estudo cada vez mais aprofundado dessa nova figura, para minimizar os custos envolvidos com todas as partes que se relacionarão com a sociedade e seu sócio único, para evitar mau uso, na prática, e uso abusivo, que repercutam em custos sociais elevados, sendo papel do direito (e da sua análise econômica) buscar saídas eficientes para problemas que surjam durante a prática empresarial.

 

Notas e Referências

[i] Disponível em:< http://www.juntacomercial.pr.gov.br/arquivos/File/RELATORIOS_2012/constituicoes_site_dezembro2012.pdf.>Acesso em 30 de junho de 2020.

[ii] Disponível em:< http://www.juntacomercial.pr.gov.br/arquivos/File/publicacoes/relatorios/rel_ag_2017.pdf >Acesso em 30 de junho de 2020.

[iii] Disponível em:< http://www.juntacomercial.pr.gov.br/arquivos/File/publicacoes/relatorios/5_maio_2020_BI.pdf. >Acesso em 30 de junho de 2020.

[iv] CATEB, Alexandre Bueno. GOMES, Frederico Yokota Choucair. A responsabilidade limitada dos sócios sob a perspectiva da análise econômica do direito. In: RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. TORRES, Dennis José Almanza. Análise Econômica do Direito: da teoria à prática. Curitiba: Íthala, 2018, p. 51.

[v] PARGENDLER, Mariana. O direito societário em ação: análise empírica e proposições de reforma. Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, vol. 59, p. 215, jan. 2013.

[vi] PIMENTA, Eduardo Goulart. Análise econômica dos conflitos de agência e governança corporativa. Economic Analysis of Law Review, Brasília, vol. 9, n. 1, p. 72-94, jan.-abr. 2018.

[vii]Empório do Direito. Disponível em: < https://emporiododireito.com.br/leitura/a-teoria-da-agencia-internalizada-no-contrato-como-ferramenta-para-o-pleno-exercicio-do-controle-nas-sociedades-anonimas.>Acesso em 07 de julho 2020.

[viii] MACKAAY, Ejan. ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 555.

[ix] KRAAKMAN, Reiner et al. A anatomia do direito societário: uma abordagem comparada e funcional. São Paulo: Singular, 2018, p. 81.

[x] SALOMÃO FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Editora Malheiros, 1995, p. 219.

[xi] PARGENDLER, Mariana. O direito societário em ação: análise empírica e proposições de reforma. Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, vol. 59, p. 215, jan. 2013.

[xii] KRAAKMAN, Reiner et al. A anatomia do direito societário: uma abordagem comparada e funcional. São Paulo: Singular, 2018, p. 83.

 

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