A sociedade, o Estado repressivo e a Síndrome de Estocolmo

13/05/2016

Por Paulo Silas Taporosky Filho e Ludmila Ângela Müller– 13/05/2016

Não é fácil pensar na possibilidade de a sociedade como um todo ser acometida por algum tipo de transtorno. Mas é inegável o fato de que não se está diante de uma sociedade saudável. O pedido desenfreado por cada vez mais leis e punições severas, juntamente com o acionamento da Justiça de maneira, muitas vezes, leviana, demonstra que as pessoas não estão conseguindo “dar conta” da demanda de diversos aspectos sociais, demanda essa que se encontra em constante transformação e evolução, e que acaba sendo repassada para um terceiro que detém o poder.

Mesmo assim, ainda nos dias atuais, é comum imaginar doenças físicas ao se pensar em alguém que não está em seu “estado saudável”, esquecendo o aspecto sistêmico do ser humano e ignorando que corpo e mente não são dissociáveis. Sabendo que algumas síndromes desenvolvem-se a partir de acontecimentos específicos, é possível lembrar uma bastante conhecida no mundo jurídico: a Síndrome de Estocolmo.

De acordo com o Dicionário de Psicologia da APA (American Psychological Association)[1], esse conjunto de sintomas é caracterizado por uma resposta tanto mental quanto emocional em que um prisioneiro – um refém, por exemplo – apresenta lealdade, e até mesmo afeto, pelo seu próprio captor. A partir disso, pode existir uma visão distorcida daqueles que oferecem ajuda, sendo estes tomados como inimigos, já que a percepção da realidade está confusa.

Nestes casos, sendo o captor aquele que detém o poder de “vida ou morte” do prisioneiro, este acaba por desenvolver uma dependência do primeiro, como forma de sobrevivência. Mas se, inicialmente, existia o caráter de defesa, com a progressão da crise ele torna-se uma reação de cópia e de costume (DE SOUZA, 2010)[2]. Ou seja, numa relação que já coloca um em papel de submissão ao outro, o detentor do poder “opta” por manter a vida do indivíduo, criando, assim, a percepção de gratidão, fidelidade e até mesmo de carinho pelo captor.

Levando isso em conta, para além da constatação prática da mencionada síndrome na ilustração do refém/captor, aponta-se aqui para a própria sociedade na condição de refém, enquanto um Estado repressivo figurando como o captor, observação esta não muito distante daquela que já foi feita por Freud[3].

Foucault[4] evidenciou com profundidade a questão dos métodos e formas de punição já praticadas pelo Estado, quando em sua famosa obra discorreu sobre a história de algumas épocas e o modo com o qual o “combate aos desvirtuados” era travado. Aliás, os horrores que existiam (e alguns ainda existem) nos meios de perseguição e punição aos ditos criminosos não são novidade. “Confissões” obtidas mediante tortura, procedimentos secretos, ausência de garantias ao acusado e execuções de penas sumárias são somente alguns dos problemas que já pairaram sobre as maneiras de combate ao crime. Não que tais problemas cessaram. É que atualmente não há o aval do Estado para a prática daqueles métodos mais degradantes. Ao menos na teoria.

Notório também é o fato de que muitas e árduas foram as lutas para que os mínimos direitos e garantias do cidadão fossem resguardados, devidamente previstos em lei e plenamente assegurados. O Direito Penal visto não somente como meio de proteção de bens jurídicos, mas também como limitador de arbítrio e garantia. A Constituição prevendo um extenso rol de direitos e garantias. Enfim, a barbárie desenfreada do Estado gradativamente dando lugar ao bom senso e ao respeito. Em certo tempo, o refém despertou da condição em que se encontrava, quando se deu conta dos grilhões que o mantinha cativo e dos açoites que recebia. Deu basta quando passou a exigir de seu sequestrador a sua liberdade, cuja qual aos poucos foi sendo conquistada.

Entretanto, infelizmente os sintomas da tal Síndrome de Estocolmo passaram a se fazer presentes neste mesmo refém. As garantias conquistadas passaram a ser sinônimo de uma suposta impunidade. Os Direitos Humanos passaram a ser taxados como “direitos de bandido”, quando o refém passou a clamar pela extirpação destes. Para piorar, o cativo iniciou movimentos em prol da supressão de garantias, bradando por castigos mais longos e severos, simpatizando com execuções sumárias eventualmente praticadas pelo captor e pedindo mais. Passou a ver aqueles poucos que lutam e buscam minimizar as ofensas praticadas pelo sequestrador como maus elementos e que deveriam tais blasfemos “levar para casa” todo o refém subjugado que o insurgente “tivesse dó”. Enfim, o capturado acabou por esquecer todas as atrocidades anteriormente sofridas, achando inclusive que atualmente apanha pouco de seu opressor, quando assim passou a ter afeto pelo seu captor, zelando não somente por sua manutenção, mas almejando também um fortalecimento e aumento de poder para este.

E assim, tomada por esta síndrome, a sociedade vem cedendo espaço para o direito penal do inimigo, descrito por Airto Chaves Junior e Fabiano Oldoni como “uma doutrina que restringe o alcance dos direitos e garantias fundamentais, previstas constitucionalmente”[5]. Curiosamente a sociedade clama por opressão, sem que se dê conta das terríveis consequências de tal pedido. O captor promete segurança em troca de supressões de liberdade e de algumas garantias, assegurando ao refém uma batalha implacável contra os execráveis, para que tudo fique bem ao “homem médio”. Como narram Alexandre Morais da Rosa e Augusto Jobim do Amaral, tal promessa, em tom de discurso inflamado, “seduz ao prometer à massa que vive numa insegurança imaginária a tão almejada segurança, especialmente de neuróticos”[6], ou seja, o captor arrebata o coração do refém com todo o seu galanteio pragmático-utilitarista, contribuindo para que o oprimido se apaixone pela barbárie e clame por mais, quando, por assim ocorrer, “um fervor punitivo invade as sociedades democráticas para além dos palácios da justiça”[7].

Percebe-se aí uma certa alienação da realidade, uma falta de reflexão acerca daquilo que se é exigido, pois não considera o que há por trás de tais pedidos. A relação mantida entre sociedade e um Estado repressivo tende a ser de dependência, onde um retroalimenta as demandas do outro, fazendo com que se esqueça de um fato básico: sociedade e Estado não devem ser consideradas duas instâncias em polos diferentes, mas dois elementos que caminham juntos, dentro de um mesmo sistema.

Deste modo, constata-se que a sociedade sofre de uma terrível moléstia, a saber, a Síndrome de Estocolmo, doença esta que resulta em drásticas consequências para todos os cidadãos. A dependência que abre espaço para a manipulação e para a aceitação de medidas sem questionamento, bem como o rápido esquecimento de acontecimentos tidos como repressivos.

Os sintomas estão aí. Mais do que evidentes. Resta aguardar para que este refém de um sistema rumo à opressão cada vez maior se dê conta disto (o doente tem que aceitar que está doente), torcendo para que os viciados em punição se tratem naquele “Rehab” proposto por Alexandre Morais da Rosa e Salah  H. Khaled Jr.[8].


Notas e Referências:

[1] VANDENBOS, Gary (org.). Dicionário de Psicologia. Porto Alegre: Artmed, 2010.

[2] DE SOUZA, Wanderley M. Negociação de reféns: sistematização e manejo das ações do negociador no contexto da segurança pública. São Paulo: Editora Ícone, 2010.

[3] FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Cultura. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2010.

[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 39ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

[5] CHAVES JUNIOR, Airto. OLDONI, Fabiano. Para Que(m) Serve o Direito Penal?: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 18

[6] ROSA, Alexandre Morais da. AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da Punição: A Ostentação do Horror. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 98

[7] ROSA, Alexandre Morais da. AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da Punição: A Ostentação do Horror. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 53

[8] ROSA, Alexandre Morais da. KHALED JR., Salah H. In Dubio Pro Hell: profanando o sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 55.


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. Paulo Silas Taporosky Filho é advogado, especialista em Ciências Penais, em Direito Processual Penal e em Filosofia e membro da Comissão dos Advogados Iniciantes da OAB/PR. E-mail: paulosilasfilho@hotmail.com. .


Ludmila Ângela Müller. . Ludmila Ângela Müller é Psicóloga, Especialista em Psicologia Jurídica. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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