Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
A Depressão também deve ter afetado a parte branca de Stamps com impacto de ciclone, mas penetrou na área Negra lentamente, como um ladrão apreensivo. O país estava mergulhado na Depressão havia dois anos quando os Negros de Stamps a conheceram. Acho que todo mundo pensava que a Depressão, como todo o resto das coisas, era para os brancos e não tinha nada a ver com eles…
Stamps demorou para sair da Depressão tanto quanto demorou para entrar. A Segunda Guerra Mundial já estava no meio quando houve uma mudança considerável na economia daquele povoado quase esquecido.
– Maya Angelou (1969),
Eu sei por que o pássaro canta na gaiola.
As primeiras notícias de infecção pela doença associada ao SARS-CoV-2, a Covid-19, chegaram até nós em dezembro de 2019. Três meses depois, em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS)declarou a doença uma pandemia que, na época, apresentava maiores taxas de óbitos na Itália e Portugal. Quase três anos depois, o continente americano é o principal foco de casos e óbitos por Covid-19, sendo os Estados Unidos e o Brasil os países mais afetados no continente de acordo com dados da OMS.
Lembro que no início do distanciamento social, estava lendo o livro com o qual abro esta coluna. Uma autobiografia da poetisa e artista Maya Angelou que inicia com narrativas sobre sua infância empobrecida no sul racista dos Estados Unidos. Ao me deparar com o trecho citado, perguntei-me se os impactos da pandemia de COVID-19 nos países em desenvolvimento seriam correlatas a narrativa da vivência da Grande Depressão (1929) pela comunidade negra de Stamps. O tempo mostrou uma negação e uma afirmação:
- A velocidade da propagação da pandemia fez com que ela rapidamente se propagasse, no caso do Brasil, por exemplo, em junho do mesmo ano ele ultrapassou o Reino Unido e se tornou o segundo país com mais mortes por Covid-19 no mundo[1]. Além disso, o primeiro óbito por COVID-19 confirmado no país, foi de uma mulher negra, empregada doméstica.
- As consequências socioeconômicas da pandemia começaram a ser sentidas já nos seus primeiros dias. No caso do Brasil, foram reforçadas, principalmente pela união de uma política pautada no negacionismo da ciência e na agenda neoliberal adotada pelo Governo Federal.
São exemplos, a queda na renda das famílias com crianças e adolescentes. Além das dificuldades de acesso a atividades escolares e à alimentação adequada (Unicef, 2021). Nessa coluna, chamo a atenção para consequências da pandemia de COVID-19 para crianças e adolescentes, diante da crescente desigualdade socioeconômica que teve maiores efeitos nas crianças e adolescentes provenientes de famílias lideradas por mulheres e homens negros, povos indígenas e comunidades marginalizadas (Oxfam, 2021).
Cabe pontuar que O Golpe Parlamentar de 2016 impôs a agenda neoliberal de caráter radical no país e pretendeu deslegitimar as conquistas sociais, colocadas como privilégios que devem ser contidos, em favor do desenvolvimento econômico. Dentre as ações iniciais ocorreu a “a limitação dos gastos públicos em vinte anos; a desvinculação das pensões e aposentadorias das correções do salário-mínimo; o desmonte da CLT e a lei de regulamentação da terceirização irrestrita” (CASTILHO; LEMOS; GOMES, 2017, p. 458).
A edição de 2018 do Relatório Luz, desenvolvido por especialistas do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), já apontava o agravamento da pobreza e das suas consequências entre os brasileiros:
Os orçamentos de políticas e programas importantes para a sociedade e para o meio ambiente estão menores ou zerados, enquanto crescem o endividamento público, a pobreza e a fome. Os abismos sociais entre ricos e pobres se aprofundam, consolida-se a exclusão história baseada em raças, etnias, identidade de gênero e orientação sexual; continuam os ataques às Unidades de Conservação, à legislação ambiental (…) e o desmonte dos principais mecanismos de proteção social e ambiental, conquistados ao longo de décadas,avança. (NILO; PINTO, 2018, p. 5)
As crianças e adolescentes foram, assim, afetados por diferentes circunstâncias, que abrangem desde as consequências da política socioeconômica do país, até a perda de mães, pais e/ou cuidadores. De acordo com o Instituto Geração do Amanhã[2], o Brasil tem cerca de um novo órfão a cada 5 minutos. Além disso, estima-se que cerca de 168 mil órfãos, perderam um ou ambos os pais. Número que sobe para mais 282 mil quando a perda é de um dos pais, de ambos ou do responsável (CIFALI, 2022). Os dados disponíveis, entretanto, não são suficientes para dimensionar à realidade em razão da subnotificação dos casos e da invisibilidade das crianças e adolescentes órfãs da pandemia. Uma vez que a maioria foi acolhida por familiares, não sendo incluídas no Sistema Nacional de Acolhimento. A ausência de dados impede a compreensão dessa realidade e o desenvolvimento de políticas públicas que atendam as demandas dessa população nos seus diversos aspectos como o emocional e o econômico.
O Relatório Luz 2021[3], também, destaca as consequências do feminicídio. Para tanto, traz dados do: Fórum Brasileiro de Segurança Pública que estima um total de 2.300 órfãos do feminicídio no Brasil em 2021; e dos registros das Polícias Civis Estaduais entre março de 2020 e dezembro de 2021, que apontam para um total de 2.451 mulheres assassinadas por sua condição de gênero, sendo a maioria dos crimes praticados dentro de casa.
O mesmo relatório registra que 6.122 crianças, adolescentes e jovens morreram por causas violentas intencionais em 2020, sendo 5.855 na faixa etária dos 12 aos 19 anos de idade. Em outras palavras, 7 crianças e adolescentes morrem no Brasil, por dia, devido a causas violentas. Significando um aumento de 3,6% quando comparado ao ano de 2019, pré-pandemia. Preocupante também, é o alerta dado pela FIOCRUZ em junho deste ano:
Desde o início da pandemia, a Covid-19 matou duas crianças menores de 5 anos por dia no Brasil. Ao todo, 599 crianças nessa faixa etária faleceram pela Covid-19 em 2020. Em 2021, quando a letalidade da doença aumentou em toda a população, o número de vítimas infantis saltou para 840[4].
Cabe salientar que enquanto a população adulta teve o início da vacinação contra o vírus da COVID-19 em janeiro de 2021, ainda que com atraso, as crianças só tiveram o mesmo acesso quase um ano depois. Ademais, aquelas que estão na primeira infância ainda estão significativamente sem cobertura vacinal. Dado preocupante devido à disseminação da ideologia antivacina e da propagação de novas variantes do vírus que demonstram a persistência do cenário pandêmico.
O acesso à vacina, apesar de ser vital para o desenvolvimento da população infantojuvenil não é suficiente para frear os impactos do cenário político e econômico do país. Uma pesquisa com jovens encapada pelo Atlas da Juventude[5] mostra uma geração preocupada e ansiosa ao revelar que 6 a cada 10 jovens pesquisados passaram ou vem passando por ansiedade nos últimos 6 meses. Ademais 50% relatam sentir cansaço e exaustão frequentes como efeitos da pandemia.
É inegável a necessidade de trazer mais luz sobre como a pandemia tem dificultado o acesso de crianças e adolescentes aos seus direitos fundamentais. Num processo que é reforçado pelo sucateamento das políticas sociais já existente antes da pandemia. A nós, defensoras/es dos direitos humanos de crianças e adolescentes cabe o desafio de lutar para que essa população seja ouvida nas suas necessidades e reivindicações para o momento atual e futuro da sociedade.
Notas e referências
[1] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/saude/brasil-ultrapassa-reino-unido-e-e-o-segundo-pais-com-mais-mortes-por-covid-19/
[2] Disponível em: https://geracaoamanha.org.br/orfaos-da-covid/
[3] Disponível em https://iddh.org.br/wp-content/uploads/2021/07/Relatorio-Luz-2021.pdf
[4] Disponível em https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-mata-dois-menores-de-5-anos-por-dia-no-brasil
[5] Disponível em https://atlasdasjuventudes.com.br/juventudes-e-a-pandemia-do-coronavirus/
CASTILHO, D. R.; LEMOS, E. L. DE S.; GOMES, V. L. B. (2017). Crise do capital e desmonte da Seguridade Social: desafios (im)postos ao Serviço Social. Serviço Social e Sociedade, (130), 447-466. 2017.
CIFALI, Ana Claudia. et al. Dossiê infâncias e covid-19: os impactos da gestão da pandemia sobre crianças e adolescentes. Instituto Alana. 2022 Disponível em: https://alana.org.br/wp-content/uploads/2022/03/DOSSIE-INFANCIAS-E-COVID-19.pdf.
OXFAM BRASIL. O vírus da desigualdade. 2021. Disponível em: https://materiais.oxfam.org.br/o-virus-da-desigualdade. Acesso em: 20 mar. 2022.
NILO A.; PINTO, F. A. Brasil: um Gigante que ficará para Trás?. In Grupo de
Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030. Relatório Luz da Agenda 2030 de
Desenvolvimento Sustentável, Síntese II (pp. 5). Brasil: ODS, 2018.
UNICEF. Impactos Primários e Secundários da COVID-19 em Crianças e Adolescentes. 2021. https://www.unicef.org/brazil/media/11331/file/relatorio-analise-impactos-primarios-e-secundarios-da-covid-19-em-criancas-e-adolescentes.pdf
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