A segurança transformada em mercadoria – Por Ardala Marta Corso

03/02/2017

Coordenador: Marcos Catalan

A sociedade contemporânea vivencia a cultura do medo, que causa transformações na forma como as pessoas se relacionam e na organização do espaço urbano. Nas palavras de Débora Regina Pastana (2005, p. 183), cultura do medo representa: “a somatória dos valores, comportamentos e do senso comum que, associados à questão da criminalidade, reproduz a ideia hegemônica de insegurança e, com isso, perpetua uma forma de dominação marcada pelo autoritarismo e pela rejeição dos princípios democráticos”.

As pessoas passam a evitar outras pessoas e lugares, considerados perigosos, e as cidades passam a ser cercadas por muros altos e equipadas de sistemas de segurança sofisticados. Não é necessário que tenham sido vítimas de violência, pois no imaginário da população está consolidada a ideia de que o perigo é iminente. A cultura do medo faz com que as pessoas busquem a proteção contra uma eventual violência, como forma de prevenção. O medo incorporou-se ao modo de vida da sociedade e o comportamento dos indivíduos se molda a essa nova realidade. Estes “reorientam-se para conviver com o medo e a insegurança, sob a tensão e a expectativa de serem vítimas de ofensas criminais” (PASTANA, 2005, p. 184).

A cultura do medo cria uma indústria de consumo. Costa e Pereira (2014, p. 2311) afirmam que o território urbano, sem condições de transmitir uma ideia de segurança (quer seja por conta de patologias sociais ou por conta do imaginário social), torna-se o lugar ideal para a inciativa privada, que se aproveita da ausência de efetividade das ações estatais, para proporcionar bens, produtos e serviços que atendam à demanda do mercado influenciado pela cultura do medo.

Transforma-se, assim, o direito social à segurança em uma mercadoria, atribuindo a estas mercadorias o poder de prover segurança, reestabelecendo a tão famosa frase “sensação de segurança” (FELLETI, 2014, p. 29).  Esta é a lógica do capital para os produtos em geral, como o fetiche de mercadoria[1]. De acordo com Felletti (2014) a partir desse fetiche ocorre a reificação, de modo que as pessoas passam a estabelecer relação de segurança com a coisa e, uma vez estabelecido o fetiche, as coisas estabelecem relação de segurança entre elas mesmas, dispensando a presença humana

No imaginário da população está consolidada a ideia de que o perigo é iminente e que qualquer um pode ser a próxima vítima a qualquer momento, de modo que não é necessário que a ameaça de fato exista para as pessoas consumam algum produto de segurança e também não é necessário que seja realmente eficaz. “Basta o medo de ser vítima de um crime” (FELLETI, 2014, p. 26). O empresário manda blindar seu veículo para proteger-se contra o eventual ataque dos bandidos, sequestradores ou assaltantes. Na sua casa coloca alarmes, câmeras de vídeo e portões automáticos, como medida preventiva (PASTANA, 2005).

A cada dia são elaborados novos mecanismos defensivos “destinados a manter as pessoas afastadas: portarias, muros, cercas eletrificadas” (BAUMANN, 2009). Os serviços privados se segurança crescem a cada dia, tanto em quantidade como em extensão e não são apenas empresas ou instituições que investem nesta mercadoria, mas também cidadãos de todas as classes e mesmo algumas divisões do governo. Estes usuários dependem “dos serviços privados para identificação, triagem e isolamento de pessoas indesejáveis, assim como para vigilância e proteção” (CALDEIRA, 2003, p. 195).

Nesse contexto, Zanetic (2010) aponta que apesar de os maiores investimentos em segurança concentrarem-se em setores mais abastados da população, os mais pobres também utilizam, em alguma medida, de recursos para sua proteção, como grades, trancas e alarmes, e mesmo nos bairros periféricos é possível encontrar condomínios fechados (ou mesmo ruas ilegalmente fechadas), bem como prestadores de serviços de ronda e vigilância. Assim, vê-se como a busca por recursos de proteção tem caráter amplo, especialmente, nos grandes centros, ainda que os gastos com estas “mercadorias” tenham impacto no orçamento da família. A preocupação com a segurança está em todos os grupos, ainda que exista uma diferença significativa nos valores investidos, o que pode ser atribuído à desigualdade de recursos.

Esta cultura arraigou-se de tal forma na sociedade, que adquirir produtos de segurança passou a ser sinônimo de status social. Quanto mais caros e modernos forem os equipamentos que guarnecem a casa, mais aquela pessoa ganha prestígio. De acordo com Caldeira (2000, p. 294), atualmente cercas, barras e muros não são essenciais apenas por questão de segregação ou segurança, mas tornaram-se necessários por uma questão de estética e status, sendo que “todos os elementos associados à segurança tornaram-se parte de um novo código para a expressão da distinção, um código que chamo de "estética da segurança"”. Cercas e barras passaram a ser elementos de decoração e expressão de personalidade, de modo que estes itens devem ser sofisticados, pois não servem apenas para proteger, mas também para “expressar o status social dos moradores”. Mesmo em famílias de baixa renda, para as quais pode representar um fardo, as transformações nas casas ligadas à segurança, são consideradas necessárias. “Existe hoje na cidade uma estética da segurança definida da pelo novo modelo, que simultaneamente guia transformações em rodos os tipos de moradia e determina o que confere mais prestígio” (CALDEIRA, 2000, p. 294).

Não é consensual que exista uma relação entre o crescimento da indústria e do mercado de segurança e o avanço da criminalidade. O crescimento no ramo da segurança privada refere-se ao aumento da riqueza nas cidades e aumento do patrimônio e, consequentemente, preocupação com a proteção deste patrimônio (MAIA, FEITOSA, 2012). Ou seja, a cultura do medo abriu espaço para a criação de um novo mercado, transforando a segurança em mercadoria.


Notas e Referências:

[1] Fetichismo de mercadoria é uma expressão criada por Karl Marx, como: Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantem relação entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias (MARX, 1994, p. 81).

BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, 2. ed. 2003.

COSTA, Renata Almeida, PEREIRA, Diego Oliveira. Criminalização, direito e sociedade: olhares dogmáticos e empíricos sobre a cultura do medo e do espaço urbano, 2014. Disponível em:< http://media.wix.com/ugd/203511_b7060c02cce54d20b75e7be2794a7188.pdf>. Acesso em: 23/12/2016

FELLETTI, Vanessa Maria. Vende-se segurança: a relação entre o controle penal da força de trabalho e a transformação do direito social à segurança em mercadoria. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

MAIA, Rosemere Santos, FEITOSA, Clarisse Lopes Leão. A indústria do medo e o consumo da segurança. Impactos sobre a vida urbana, 2012. Disponível em:< http://www.aps.pt/vii_congresso/papers/finais/PAP1182_ed.pdf>. Acesso em: 20/12/2016.

PASTANA, Débora Regina. Cultura do Medo e Democracia: Um paradoxo brasileiro. Meditações Revista de Ciências Sociais.  n. 2, jul./dez., 2005.  Disponível em:< http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/2172>. Acesso em: 20/12/2016

ZANETIC, André. A Segurança Privada no Brasil: Alguns Aspectos Relativos às Motivações, Regulação e Implicações Sociais do Setor. Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade. n. 03, 2010. Disponível em:  <http://www.pgsskroton.com.br/seer/index.php/adolescencia/article/viewFile/224/210>. Acesso em: 23/12/2016


 

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