A sanha punitivista e/ou a boçalidade do discurso da impunidade

10/06/2017

Por Leonardo Isaac Yarochewsky – 10/06/2017

Hodiernamente, tem sido comum recorrer ao “discurso contra a impunidade” para fomentar a necessidade de incrementar o Estado penal em detrimento do Estado social. No dizer de Ricardo Genelhú o discurso contra a impunidade tem servido de motivo para uma suposta restauração da “segurança social” quando na verdade, serve ela mesma, per se, é de desculpa para a perseguição ao “outro” (...)”.[1]

Neste diapasão um grupo de magistrados e promotores de Justiça do Rio de Janeiro lançou no facebook a página “Movimento de Combate à Impunidade”. A página que está no ar desde o último dia 03 já tem mais de dez mil seguidores.[2]

Os magistrados Fábio Uchôa e Alexandre Abrahão e o procurador Marcelo Rocha Monteiro fazem parte do grupo. Segundo o juiz Fábio Uchôa o objetivo é discutir temas penosos, como a liberação de criminosos em audiência de custódia. Uchôa sustenta que muitos magistrados defendem a liberdade dos presos sem fazer um contraponto profundo com a realidade violenta da cidade.

A página traz textos com opiniões críticas, como por exemplo, às “vozes dizendo que o bandido deve ser solto e aguardar em liberdade o julgamento e o consequente trânsito em julgado” ou “o Brasil não prende demais; ao contrário, prende de menos”.[3]

É lamentável o desprezo, dos que se amesquinham em vestir a mesma toga do autoritarismo, para com um dos corolários do processo penal acusatório que reside justamente na separação entre as partes e entre elas e o juiz. A união espúria entre juízes e promotores de Justiça, ainda que fora dos autos, releva o descaso com o processo acusatório e democrático.

Quando magistrados e promotores de Justiça se unem e criam uma página em rede social com o propósito de combater uma suposta impunidade, o fazem contrariamente aos princípios mais elementares do Estado democrático de direito. Quando magistrados e promotores agem como verdugos e inquisidores, não há dúvida de que o Estado democrático de direito foi por eles assaltado.

Sem qualquer “vênia”, o discurso apresentado pelos idealizadores da abjeta página no facebook é raso, impróprio, leviano e banal. Trata-se de homilia apelativa e panfletária, própria das discussões leigas ocorridas nas mesmas mesas dos bares em que se discute futebol.

No que se refere ao usual e já banalizado discurso da impunidade para justificar o avanço do Estado penal através de medidas draconianas, Ricardo Genelhú observa que:

E o ‘discurso da impunidade’, com seu ensaio neurótico promovido por pessoas com onipotência de pensamento, tem poderosamente servido muito mais para ‘justificar’, ‘ratificar’ ou ‘manter’ a exclusão dos ‘invisíveis sociais’, tragicamente culpados e, por isso, incluídos por aproximação com os ‘inimigos’ (parecença), do que para demonstrar a falibilidade seletiva e estrutural do sistema penal antes e depois que um ‘crime’ é praticado, ou enquanto se mantiver uma reserva delacional publicizante, seja porque inafetadora do cotidiano privado, seja porque indespertadora da cobiça midiática.[4]

É certo que o discurso midiático - criminologia midiática - da impunidade, contribui sobremaneira para o avanço do Estado autoritário e para a cólera do punitivismo.

Atingidos pela criminologia midiática e pelo discurso da impunidade, políticos tendem a apresentar projetos de leis com viés autoritário, conservador e reacionário. Já os juízes, tendem agir de igual modo quando usam e abusam das medidas repressoras e de exceção, como a prisão preventiva, transformando a medida excepcional em regra e em antecipação da tutela penal, ou quando fixam penas privativas de liberdade bem acima do razoável em nome de uma prevenção geral positiva e/ou negativa e do apelo à prevenção especial negativa – neutralização e incapacitação do infrator - em prejuízo dos princípios garantistas, notadamente, o da culpabilidade.

O criminólogo Salo de Carvalho, com a precisão e a clareza de sempre, observa que “o sintoma contemporâneo vontade de punir, atinge os países ocidentais e que desestabiliza o sentido substancial de democracia, propicia a emergência das macropolíticas punitivistas (populismo punitivo), dos movimentos políticos-criminais encarceradores (lei e ordem e tolerância zero) e das teorias criminológicas neoconservadoras (atuarismo, gerencialismo e funcionalismo sistêmico)”. [5] 

Os idealizadores da página “Movimento de Combate à Impunidade” ignoram o fato de que o encarceramento não guarda relação com a redução da criminalidade ou da violência. Fosse assim, o Brasil com a terceira ou quarta população carcerária do Planeta – sendo a segunda que mais cresceu na última década – estaria longe de ser um país com índices elevados de criminalidade.

Não é sem razão que o IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) lançará no próximo dia 13/6 (terça-feira) a campanha “Encarceramento em massa não é Justiça”. De igual modo, o IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), a Pastoral Carcerária Nacional - CNBB, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) e o Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação (CEED/UnB) elaboraram 16 (dezesseis) propostas legislativas que buscam impactar a dinâmica sistêmica do encarceramento em massa no país.

Não se pode olvidar que a prisão continua sendo há mais de dois séculos a principal forma de punição para os “perigosos”, “vulneráveis”, “estereotipados” e “etiquetados”, enfim, para os que são criminalizados (criminalização primária e secundária) em razão de um processo de estigmatização, segundo a ideologia e o sistema dominante.

Apesar de todas as descobertas e avanços da humanidade a indústria do encarceramento, alimentada pela indústria do crime, continua funcionando a todo vapor, em pleno século XXI.

A cultura do encarceramento é responsável pelo substancioso aumento da população carcerária – superpopulação prisional – que se materializa através da criação de novos tipos penais, cerceamento de direitos e garantias, prisão com primeira opção etc.

Em alerta aos punitivistas, Tiago Joffily e Airton Gomes Braga já destacaram que “o problema é que a imaginada correlação entre encarceramento, de um lado, e redução da criminalidade, de outro, nunca foi demonstrada empiricamente. Ao contrário, as mais recentes e abrangentes pesquisas empíricas realizadas sobre o tema apontam para a inexistência de qualquer correlação direta entre esses dois fenômenos, havendo praticamente consenso entre os estudiosos, hoje, de que o aumento das taxas de encarceramento pouco ou nada contribui para a redução dos índices de criminalidade”.[6]

Desgraçadamente, “há enorme resistência por parte daqueles que atuam no sistema de justiça criminal – vide os criadores do movimento contra a impunidade - em colocar em prática medidas desencarceradoras, ao argumento falacioso de que as altas taxas de criminalidade verificadas no Brasil – que, de fato, existem e preocupam – estariam a demandar um uso ainda maior da pena privativa de liberdade”.[7]

Conforme dito alhures, no Brasil nas últimas décadas verifica-se uma verdadeira “inflação legislativa”. “Francesco Carrara em monografia datada de julho de 1893 - Un nuovo delito - discorria sobre a “nomomania ou nomorréia” penal. A praga de seu tempo, que está em ter esquecido o sábio aforismo da jurisprudência romana, ‘minima non curat praetor’”. [8] No Brasil a “nomorréia” penal se deve há uma série de fatores que vão desde ao forte apelo popular alimentando pelo “discurso contra a impunidade”, passando pela influência perversa da mídia até a recorrente demagogia dos legisladores. Desgraçadamente, o chamado “populismo penal” vem dominando a política-criminal atual. As leis penais no Brasil são elaboradas sem qualquer verificação prévia e empírica de seus verdadeiros impactos sociais e econômicos.

Como bem salientou Marildo Menegat 

O melhor a fazer hoje é tornar público este debate, o que significa politizá-lo, pois é o único caminho para pôr termo, quem sabe aos martírios e sacrifícios desde sempre praticados por esta espécie que, por um milagre do acaso, fez-se uma forma de vida, ainda penso, inteligente. É hora de nos entregarmos à realização da liberdade, e, para isso, o fim das prisões torna-se imperativo.[9]

Enquanto determinados profissionais do direito continuarem usando as viseiras do autoritarismo, que os impeçam de olharem a realidade como deve ser vista, enquanto magistrado e membros do Ministério Público continuarem apelando para o “populismo penal” e para o boçal “discurso do combate à impunidade”, desprezando o direito, a verdadeira democracia em seu sentido material, a dignidade da pessoa humana como postulado do próprio Estado democrático de direito, resta, no dizer critico e inteligente de Vera Malaguti Batista, “recuperar os desejos e utopias para podermos imaginar, livremente, o nosso mundo depois do grande encarceramento”.[10]

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Belo Horizonte, 9 de junho de 2017.


Notas e Referências: 

[1] GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[2] Disponível em:< http://justicaecidadania.odia.ig.com.br/2017-06-06/promotores-e-juizes-criam-pagina-contra-impunidade.html

[3] Disponívelem:<http://amaerj.org.br/noticias/juizes-e-promotores-criam-movimento-contra impunidade/

[4] GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[5] CARVALHO, Salo. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010

[6] Disponível em< http://emporiododireito.com.br/alerta-aos-punitivistas-de-boa-fe-nao-se-reduz/

[7] Disponível em< http://emporiododireito.com.br/alerta-aos-punitivistas-de-boa-fe-nao-se-reduz/

[8] LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Fabris, 2003.

[9] MENEGAT, Marildo. Prisões a céu aberto. In: Seminário depois do grande encarceramento. Organização Pedro Vieira Abramovay, Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

[10] In: Seminário depois do grande encarceramento. Organização Pedro Vieira Abramovay, Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2010.


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. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Doutor em Ciências Penais pela UFMG. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Deutschland : KZ Konzentrationslager Buchenwald, 1937 // Foto de: (vincent desjardins) // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/endymion120/4870698674

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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