A revisão política de decisões do STF é inconstitucional: comentários à PEC n. 50/2023

03/10/2023

Na última semana, foi apresentada pelo Deputado Federal Domingos Sávio (PL-MG) a Proposta de Emenda à Constituição n. 50/2023 (PEC n. 50/2023). A proposta pretende alterar o art. 49, da Constituição de 1988 (CRFB/88), para atribuir ao Congresso Nacional a competência de suspender decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que extrapole os limites constitucionais.

A PEC n. 50/2023 acrescentaria o inciso XIX ao art. 49, da CRFB/88. Referido dispositivo permitiria ao Congresso Nacional editar Decreto Legislativo, desde que aprovado por três quintos dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e requerido por um terço dos seus membros, para sustar decisão proferida pelo STF transitada em julgado, que extrapole os limites constitucionais. Além disso, acrescentaria um parágrafo único ao art. 49, da CRFB/88. Esse dispositivo, por sua vez, atribuiria ao Presidente do Congresso Nacional a competência para promulgar o Decreto Legislativo a que se refere o inciso XIX e comunicar ao STF a edição do referido ato normativo com vigência imediata.

A justificativa da PEC n. 50/2023 dá pistas da intenção dos parlamentares signatários da proposta. Invocando o princípio constitucional da separação dos poderes, alega-se que “nenhum poder é soberano sobre o outro”, razão pela qual, “uma vez elaborada e aprovadas as leis pelo legislativo”, caberia “ao judiciário a sublime função de julgar e assegurar o seu plano cumprimento”.

Afirma-se que uma decisão judicial “controversa” seria contrária à “própria Constituição” e, nesse caso, à “ampla maioria dos representantes do povo”, colocando em risco o Estado Democrático de Direito. Por isso, seria preciso haver “recurso capaz de rever a decisão de afronta a vontade da ampla maioria do povo devidamente representado no Congresso Nacional”. 

Quanto à constitucionalidade das alterações pretendidas pela PEC n. 50/2023, alega-se que a medida seria “absolutamente constitucional, pois não fere nenhuma cláusula pétrea, uma vez que não retira nenhuma prerrogativa do STF, mas tão somente acrescenta nas prerrogativas do Congresso Nacional”.

Antes de mais nada, é preciso destacar: a PEC n. 50/2023 é flagrantemente inconstitucional, por violar as cláusulas pétreas da separação dos poderes e dos direitos e garantias individuais do art. 60, § 4º, incisos III e IV, da CRFB/88.

Ao contrário da sua justificativa, ela retira, sim, uma competência do Poder Judiciário, fundamental à separação dos poderes tal como delineada pela Constituição, qual seja: a autoridade da coisa julgada (art. 5º, inciso XXXVI, da CRFB/88), que, inclusive, é um dos direitos e garantias dos cidadãos assegurados pela Constituição.

A coisa julgada é qualidade atribuída à decisão judicial não mais sujeita a recurso, tornando-a imutável e indiscutível. Constitui, assim, elemento imprescindível ao exercício da função tipicamente jurisdicional, na medida em que ao Judiciário compete julgar os casos levados à sua apreciação. É também elemento imprescindível à segurança jurídica e à estabilização de conflitos sociais, razão pela qual é reconhecida como direito fundamental dos cidadãos.

Para além desses argumentos de ordem jurídico-constitucionais, bastantes o suficiente para justificar a suspenção da tramitação da PEC n. 50/2023 por ofensa ao devido processo legislativo de reforma constitucional, pense-se nos inconvenientes que a possibilidade de revisão legislativa das decisões do STF provocaria para o sistema constitucional brasileiro.

Após anos de tramitação perante o Poder Judiciário, uma causa poderia ser a qualquer momento revista por uma determinada maioria parlamentar, simplesmente porque contrária aos interesses políticos dessa maioria? E se essa dita maioria no futuro se tornar minoritária, poderá a revisão da decisão judicial ser desfeita? Como ficariam, nessas hipóteses, as relações já constituídas com base nesses entendimentos? Quem as regulamentariam, o Congresso Nacional ou o Poder Judiciário? Além disso, essas revisões não seriam, elas mesmas, passíveis de controle pelo próprio Poder Judiciário?

O que se vê é a insatisfação de setores políticos representados no Congresso Nacional com decisões do STF contrárias aos seus interesses, daí o esforço legislativo no sentido de limitar a independência do Poder Judiciário, como demonstra a PEC n. 50/2023. Nesse sentido, a proposta parece apostar na existência de uma suposta soberania parlamentar contra a Constituição, em que as regras do jogo somente são respeitadas quando interessarem às facções políticas majoritárias representadas a cada momento no Congresso Nacional e não no igual interesse de todos. Esvaem-se, assim, as noções de supremacia e rigidez constitucional. Trata-se de uma leitura que, afinal, não reconhece o sentido normativo específico da Constituição.   

Não por outra razão, afirma-se na justificativa da PEC n. 50/2023 que decisões judiciais controversas seriam contrárias à Constituição e potencialmente danosas ao Estado Democrático de Direito. Entre essas decisões, encontram-se os recentes julgamentos relativos à inconstitucionalidade da tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas, a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, a descriminalização do aborto e, por que não, a punição dos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Em um recorte temporal mais amplo, entrariam também no rol das decisões judiciais a serem revistas pelo Congresso Nacional a constitucionalidade da política de cotas, bem como a constitucionalidade da união homoafetiva.

Dos pronunciamentos realizados pelos parlamentares favoráveis à proposta, é facilmente perceptível que o incômodo está relacionado ao reconhecimento de novos direitos e novos sujeitos pela jurisdição constitucional. Em face dessas decisões, levanta-se o argumento de que essas questões seriam apenas políticas a serem resolvidas exclusivamente pelo parlamento.

Esquecem-se de que, apesar das repercussões inegavelmente políticas, todas essas matérias são, na verdade, questões de direito. Contribuiu para essa confusão, embora com propósitos bem distintos, parcela da doutrina jurídica brasileira que, importando acriticamente discussões acadêmicas de matriz anglo-saxã, não vê em todos esses temas nada mais além do que “ativismo judicial”, “supremacia judicial”, “judicialização da política” ou “megapolítica”, como se houvesse, nesses temas, uma intromissão indevida do Poder Judiciário em um campo que não fosse seu. Ao contrário disso, a autoridade do STF tem por fundamento a autoridade da Constituição.

Discutir os limites da atuação da jurisdição constitucional é fundamental para o desenvolvimento de qualquer regime democrático, sobretudo quando se leva em consideração a legitimidade democrática dessa atuação. O que não pode haver é falsas equivalências, como que se o simples fato de o Poder Judiciário decidir casos sobre os quais exista desacordo político na sociedade fosse equiparável a uma intromissão sua em uma matéria supostamente exclusiva de outro poder.   

A proposta de instituição de um controle político das decisões judiciais, contudo, não é inédita na recente história constitucional brasileira. Em 2011, foram apresentadas na Câmara dos Deputados as PECs n. 3/2011 e n. 33/2011 para, respectivamente, viabilizar a suspensão de decisões judiciais e executivas pelo parlamento e alterar a quantidade mínima de votos de membros de tribunais para declarar a inconstitucionalidade das leis, condicionar o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo STF à aprovação do Poder Legislativo e submeter à análise do Congresso Nacional decisão de inconstitucionalidade de emendas constitucionais.  Conquanto pretendessem acrescentar à Constituição competências do Congresso Nacional para rever decisões judiciais, não havia àquele tempo, como há no presente momento, declarado ataque de facções políticas à independência do Poder Judiciário, em especial do STF e a seus Ministros, o que somente agrava a atual situação. A possibilidade de revisão legislativa de decisões judicias também esteve presente na Constituição brasileira de 1937, de nítido caráter autoritário, do qual se aproxima a PEC n. 50/2023. Isso, um de nós já teve a oportunidade de demonstrar aqui, aqui e aqui.

Subjacente à PEC n. 50/2023 está uma leitura deturpada acerca da relação entre soberania popular e constitucionalismo em um Estado Democrático de Direito. Confunde-se soberania popular com manifestação irrestrita da vontade majoritária e limites constitucionais à vontade majoritária como restrição ilegítima da vontade popular. Daí porque decisões judiciais contrárias aos interesses políticos majoritariamente representados no Congresso Nacional são vistas como ilegítimas e passíveis de correção por essa mesma vontade. O potencial ameaçador aos direitos e às garantias individuais de uma concepção como essa se revela em propostas como a da PEC n. 50/2023. Por isso, mais uma vez, cabe repetir: a PEC n. 50/2023 é flagrantemente inconstitucional, por violar as cláusulas pétreas da separação dos poderes e dos direitos e garantias individuais do art. 60, § 4º, incisos III e IV, da CRFB/88.

 

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