A REVISÃO JUDICIAL DOS CONTRATOS SOB O ENFOQUE DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

04/04/2019

            Segundo o Conselho Nacional de Justiça, em dados estatísticos publicados[i], a maior parte dos processos julgados pelos Tribunais Estaduais, em 2017, eram relativos a Obrigações/Espécies de Contratos.

            O Direito brasileiro possui, como se sabe, uma cultura de ampla possibilidade de revisão contratual, principalmente sob a ótica distributiva da “justiça social” e do “constitucionalismo” brasileiro, mas há que se estabelecer um tempero sob a base repercussiva da hipótese de quebra de contratos no âmbito do Poder Judiciário, apresentando-se, aqui, uma solução de interpretação  ancorada na recente Lei nº 13.655/2018 que deu nova redação ao artigo 20 do Decreto-Lei nº 4.657/42, alterando-se, portanto, a Lei de Introdução à Normas do Direito Brasileiro.

            Por conseguinte, percebe-se na praxis forense que grande parte dos litígios envolvendo contratos parte da necessidade de interpretação de cláusulas consideradas obscuras ou ambíguas. Observe-se que o contrato prevê duas distintas declarações de vontade que se integram, e obviamente há que se interpretar diante de ambiguidade ou dúvida. É o sentido, o significado destas declarações o desafio que se apresenta ao intérprete, que buscará entender o que de fato foi idealizado pelas partes no acordo ou consenso.[ii]

            A rotina do julgador esbarra na árdua tarefa de interpretar objetivamente o acordo firmado entre duas partes distintas, clarificar o que significa e identificar a aplicação jurídica do conteúdo das  cláusulas inseridas no documento.

            Afinal, o festejado princípio da vontade real tem cunho subjetivo e a busca consiste em um processo de dedução, pelo juiz, daquilo que as partes realmente quiseram dizer e não efetivamente aquilo que está disposto no instrumento contratual. Cumpre ressaltar, inclusive, que este princípio possui supedâneo legal no artigo 112 do Código Civil.

            Utilizar-se apenas de conceitos jurídicos calcados na linguagem dogmática para fazer frente à interpretação dos contratos, traz riscos ao caso concreto e a solução pode apresentar-se de maneira inadequada, tendo espaço à teoria econômica para harmonizar aspectos teóricos, dogmáticos, aos técnicos e empíricos.

            Para o positivismo jurídico os contratos estão relacionados a declarações de vontade emitidas pelas partes, submetidas à normatização do ordenamento jurídico, enquadradas no campo da autonomia privada e que devem preencher os requisitos legais (capacidade das partes, objeto lícito e possível, dentre outros). Entretanto, o estudo jurídico per si não transita no contexto das questões comportamentais inseridas no ambiente de negócios.

            O julgador não está impedido de socorrer-se de outras ciências para a solução do litígio que depende de interpretação de conteúdo, mas sempre se impôs barreiras em razão da formação curricular, ficando ele deveras limitado à declaração de como elas devem ser interpretadas segundo a ciência jurídica, deixando de lado uma das principais funções do contrato, que é a econômica.

            Por outro lado, o cientista econômico não se atém ao positivismo lógico, ele estuda a tomada de decisão em um ambiente de mercado. Segundo Luciano Timm, reforçando esta ideia, quando um economista estuda os contratos, debruça-se sobre a realidade social, buscando compreender o agente econômico em suas interações de mercado. Ou seja, [...] estuda a realidade dos contratantes e o seu papel em uma realidade empírica.[iii]

            Dito isto, parte-se da premissa de que preponderam nos contratos os fins econômicos com o intuito de transacionar bens e serviços, mediante a vontade declarada das partes, visando a realocação ótima de recursos. Assim, se o objeto do contrato custa mais do que vale para um dos contratantes, tendo em vista a racionalidade (apesar de limitada), é certo, salvo questões de ordem pessoal e de valor inestimável, que o negócio jurídico não se concretizará e, por conseguinte, não haverá expressão de vontade.

Com efeito, Luciano Timm compartilha deste entendimento ao dizer:

Iniciamos com a constatação de que o contrato é o grande instrumento de funcionamento do mercado, juntamente com a propriedade; e isso tende a ser mais verdade quanto mais complexo for o mercado em questão. Com efeito, é o contrato que permitirá que agentes econômicos transacionem (com maior ou menor liberdade conferida pelo ordenamento jurídico) suas propriedades ou direitos. A presunção é a de que indivíduos recorrem ao mercado para satisfazerem suas necessidades, e os bens tendem a se deslocar para quem os valorize mais. Não será da bondade do padeiro que comeremos o pão, como já alertava A. Smith. [iv]

            Não obstante, se o contrato tem um fim econômico, não parece razoável que, ao decidir sobre um determinado o conflito de interesses entre os contratantes, o intérprete se afaste da análise econômica e aplique somente o entendimento jurídico (mesmo sob o manto da constitucionalização prospectiva do direito civil), divorciando-se da valoração empírica ou consequencialista e das lateralidades da decisão que deverá ser tomada.

            Sendo o contrato um instrumento jurídico-econômico, como já dito, é recomendável que a interpretação hermenêutica apoie-se, concomitantemente, nas duas ciências.

            Na linha deste raciocínio, como entende Mackaay e Rousseau a análise econômica do direito é ambiciosa, propondo uma releitura do direito a partir da concepção do ser humano e de suas relações com os outros. Explica que o direito pode se apropriar de conceitos econômicos e de todo o ferramental analítico e empírico, esclarecendo que o propósito da AED é bem entendido a partir da célebre frase do jurista belga, Monsieur Mertens de Willians, para quem “bom número de instituições jurídicas clássicas, assim como o usufruto, a acessão ou a cláusula de reserva de domínio, nada mais são do que uma regulamentação de relações econômicas subjacentes. Todavia, como estão profundamente ancoradas no direito positivo, não as percebemos senão como conceitos jurídicos, sem nos darmos conta de seu significado econômico.[v]

            A AED parte do pressuposto de que se vive em uma sociedade que possui recursos escassos e agentes racionais, ou seja, não há a criação de recursos, apenas a sua realocação (lembrando sobre a famosa teoria de Lavoisier) e os agentes racionais tomarão a escolha que mais beneficiem o seu próprio bem estar.

            Para tanto, existem alguns critérios econômicos que devem ser utilizados para fundamentar determinada decisão. Vilfredo Pareto, cientista político italiano, criou um método de sopesamento para facilitar a tomada de decisão do player.

            Em uma rápida introdução pode-se dizer que o ótimo de Pareto enuncia que o bem-estar máximo de uma sociedade é alcançado quando não existir outro estado tal que seja possível aumentar o bem-estar de um indivíduo sem diminuir o bem-estar de outro.[vi]

            Como a aplicação do ótimo de Pareto é quase que utópica, o critério Kaldor-Hicks é muito mais palpável no caso que se apresenta. Pode-se definir a eficiência de Kaldor-Hicks quando o produto da vitória de A excede os prejuízos de B.[vii]

            Este elemento teórico, criado por Nicholas Kaldor e John Hicks, é mais bem utilizado, teleologicamente, por ter o condão de obter situações mais amplas e realistas, em um mundo de insumos limitados, todavia parte daquele mesmo princípio elaborado por Pareto, segundo o qual: a aplicação da noção eficientista das relações socioeconômicas para explicar a tomada de decisões de agentes sócio econômicos.[viii]

            Assim, para decidir qual será a interpretação adotada, o julgador deve, a priori, observar duas coisas: em qual das situações o produto da vitória de uma das partes em conflito irá ser maior que o prejuízo da outra e a externalidade gerada por ela, positiva ou negativa, e, em consequência destas duas, o Bem-Estar Social a ser atingido.

            Neste sentido, pode-se perceber que, muitas vezes, irão existir antinomias reais que impedirão a resolução do litígio por meio das normas positivadas no ordenamento. Nesta situação o julgador deverá utilizar-se, principalmente, da ponderação e da equidade.

            Como visto, o contrato tem como sua principal finalidade a realocação ótima de recursos entre as partes que o entabularam. A economicidade do contrato é intrínseca e parte principal de sua natureza.

            Desta forma, quando surgem controvérsias interpretativas entre as partes contratantes, o julgador deve decidir de acordo com a finalidade máxima do contrato, ou seja, da melhor forma de realocação de recursos que aquele instrumento poderá prover.

            Dito isto, a ponderação deveria, em geral, preferir o princípio da eficiência econômica em detrimento do princípio que impõe uma função social ao contrato, pois esta última não pode ser utilizada como fundamento de quebra contratual em quaisquer espécies de pacto, considerando-se a insegurança jurídica que tal postura acarreta.

            Realizar a “justiça social” é também “avaliar e analisar os impactos econômicos das  decisões”, diante das externalidades geradas, tarefa agora imposta ao julgador por força da alteração dada ao referido ao artigo 20 da Lei de Introdução à Normas do Direito Brasileiro. O próprio Tribunal de Justiça do Paraná já possui inúmeros precedentes, cujo conteúdo decisório apoia-se no novo dispositivo legal.

            Deste modo, para a solução de conflitos contratuais, entende-se pertinente o uso concomitante da hermenêutica jurídica e dos critérios de eficiência lançados por Kaldor-Hicks, além dos demais contornos que a ciência econômica poderá atrair para o caso concreto.

            Em outras palavras, a conjugação destes fatores admite a existência de uma mudança social eficiente mesmo quando o aumento do bem-estar de uma parte resulta na redução do bem-estar de outra, desde que a parte cujo bem-estar sofreu redução possa ser compensada para manter o seu nível de satisfação.[ix]

            Para atingir este critério de eficiência, existem diversas fórmulas pensadas por juristas e economistas, utilizadas principalmente em países adeptos da Common Law. Assim, para medir a eficiência de uma ou de outra decisão, faz-se a alusão a Fórmula de Hand, ao chamado Teorema de Coase, a Fórmula do Custo Social, entre tantas outras. Existem, também, vários princípios concebidos com esta finalidade, como é o exemplo do Cheapest Cost Avoider ou o Duty to Mitigate the Loss.

            Como visto, não faltam meios, referências e elementos que podem ser utilizados pelo julgador para resolver um litígio contratual com lastro nos critérios de eficiência.

            Tem-se em perspectiva que o reducionismo jurídico que ainda toma conta da matriz curricular, em razão da regulação do “currículo mínimo e estático” pelo órgão governamental, não dá ao profissional do direito uma visão multidisciplinar, capaz de entregar-lhe boas ferramentas para conduzir, estrategicamente, as questões pré-contratuais, contratuais ou decidir sobre elas, acarretando corriqueiras decisões ineficientes e prejudiciais ao ambiente de negócios e ao próprio desenvolvimento do País, impedindo, como se diz, a maximização da riqueza e o bem-estar.

            O uso da AED parecia estar mais distante, mas os Tribunais já têm se apropriado de soluções albergadas por este texto, como é o caso do uso explícito, pelo Ministro Luis Felipe Salomão, da 4ª Turma do STJ, onde em um determinado caso concreto, envolvendo a discussão de um contrato de financiamento imobiliário, faz uso da análise econômica da função social do contrato, para reconhecer que o papel institucional e social do direito contratual é dar ao mercado segurança e previsibilidade nas operações econômicas (REsp 1163283/RS).  

            Deste modo, a Análise Econômica do Direito é onipresente, mas os embates acadêmicos e prático-profissionais ainda são pequenos, por outro lado, há uma tendência para que, não apenas o Poder Judiciário se aproprie cada vez mais de seus postulados, mas os demais profissionais do direito e os agentes econômicos de uma maneira geral também o façam.

            De fato, a AED bem entendida e contextualizada, não substitui o direito, mas propõe  conceitos e ferramentas para que ele se realize de forma mais eficiente, especialmente nesta pauta, contribuindo sobremaneira para resolver conflitos eminentemente econômicos e antinomias reais.

            Pelo conteúdo acima, cabe afirmar que a ideia de justiça social não se esvazia no positivismo lógico-jurídico, cabendo ao julgador, na intimidade do processo decisório, refletir, com muita profundidade, sobre os contornos do contrato que será por ele desvendado, pautando-se na real intenção das partes sob o enfoque do ambiente de negócios, onde o critério finalístico do pacto econômico deverá ser preservado.

 

 

Notas e Referências

[i] Dados disponíveis no link: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85421-justica-em-numeros-indica-os-assuntos-mais-demandados-em-2016-nos-tribunais. Acesso em 3 abril 2019.

[ii] GOMES, Orlando. Contratos. Atualização e Notas de Humberto Theodoro Junior. 18 ed. 3. Tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 198.

[iii] TIMM, Luciano Benetti; YEUNG, Luciana. A análise econômica dos contratos. Valor Econômico, 2016. Disponível em: https://www.valor.com.br/legislacao/4790221/analise-economica-dos-contratos. Acesso em 3 abril 2019.

[iv] TIMM, Luciano Benetti; YEUNG, Luciana. A análise econômica dos contratos. Valor Econômico, 2016. Disponível em: https://www.valor.com.br/legislacao/4790221/analise-economica-dos-contratos. Acesso em 3 abril 2019.

[v] MACKAAY, Ejan e ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 7.

[vi] GARCIA, Fernando. Texto introdutório do livro: PARETO, Vilfredo. Manual de economia política. Trad. de João Guilherme Vargas Netto. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 13.

[vii] TIMM, Luciano Benetti. Direito e economia no Brasil. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 353.

[viii] BOTELHO, Martinho Marins. A eficiência e o efeito Kaldor-Hicks: A questão da compensação social. Brasília: Revista de Direito, Economia e Desenvolvimento Sustentável, 2016, p. 30.

[ix] LEMOS, Alan. Falhas de mercado, intervenção governamental e a teoria econômica do Direito. Disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/28656-28674-1-PB.pdf. Acesso em 03 abril 2019.

 

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