A REVISÃO DOS ALIMENTOS EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS  

21/07/2020

Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

1 Coronavírus e a mudança nas relações jurídicas

Desde dezembro de 2019, o mundo assiste à rápida evolução do Coronavírus, causador da doença conhecida como COVID-19, sendo recentemente classificada pela OMS como uma emergência de saúde pública internacional.[1] O Brasil possui 1.888.889 casos de Coronavírus confirmados, com 72.950 mortes e uma taxa de mortalidade de 3,86%[2].

Nesse cenário pandêmico, diversas leis, decretos e medidas provisórias foram sancionados a fim de que a disseminação do vírus fosse contida. A título de exemplo, foi sancionada a Lei nº 13.979, de fevereiro de 2020, que dispõe em seu artigo 3º as medidas de isolamento e quarentena.[3] Já no Direito do Trabalho, diversas mudanças ocorreram, como o adiantamento de férias e a possibilidade de redução salarial sem anuência do sindicato. Quase não se passou um dia sem que uma Medida Provisória no âmbito trabalhista fosse editada.

O isolamento e a quarentena, bem como as mudanças trabalhistas, impactaram diretamente e negativamente as relações sociais e as atividades econômicas. O desemprego ficou cada vez mais comum e o vínculo empregatício cada vez mais raro. É nesse contexto caótico de redução da capacidade financeira que o inadimplemento e a mora se tornaram cada vez mais frequentes, sendo a obrigação alimentar uma das obrigações com o risco iminente de insolvência.

 

2 A ação revisional de alimentos

Importante constatar que o princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, bem como no artigo 3º do Código de Processo Civil (CPC), deve sempre ser respeitado, sendo impossível a alteração de pensão alimentícia sem decisão judicial. Assim, a mera comunicação de redução da pensão por parte do devedor expondo a diminuição de sua capacidade financeira, ainda que verdadeira, não produz nenhum efeito jurídico. O direito a alimentos não pode ser objeto de transação ou renúncia, sendo restrita a vontade individual nas convenções a seu respeito.[4] Ademais, a pandemia por si só não retira a exigibilidade dos alimentos, cabendo o ajuizamento de execução forçada caso haja o inadimplemento por parte do devedor.

Isso posto, uma das opções para o devedor que teve sua capacidade financeira reduzida é o ajuizamento de ação revisional de alimentos com base no artigo 1.699 do Código Civil, bem como no artigo 505, inciso I, do Código de Processo Civil, e do artigo 15 da Lei de Alimentos.

A priori, o devedor deverá utilizar dos meios de provas contidos no CPC para que o magistrado se convença a respeito da diminuição de sua capacidade financeira, cabendo ainda demonstrar que não possui nenhum outro meio de adimplir a prestação. Importante constatar que a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça (STJ) alega que o desemprego não é justificativa para o inadimplemento da pensão alimentícia.

Há quem sustente que os reflexos do Coronavírus são um fato público e notório nos termos do artigo 374, inciso I, do CPC, sendo a produção de provas desnecessária. Em acordo com essa ideia está uma recente decisão do magistrado Fernando Henrique Pinto, da 2ª Vara de Família e Sucessões de Jacareí/SP, que reduziu o pagamento da pensão alimentícia e fixou para os meses de março, abril, maio e junho de 2020 valor de obrigação alimentar em 30% do salário mínimo. Ademais, o magistrado constatou que o Coronavírus impactou diretamente a atividade empresarial exercida pela mãe da autora, reduzindo, assim, a pensão da menor.[5]

O diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM destacou a adequação da decisão acima citada sustentando como fato público e notório a diminuição dos rendimentos durante a quarentena.

São poucos os segmentos que mantêm a sua remuneração. A grande maioria tem efetivamente reduzido o seu rendimento, e para as camadas, quanto mais pobres, mais impactante é a redução dos seus ganhos. A decisão me parece adequada porque se trata de um fato notório, é necessária a redução dos rendimentos das pessoas que não podem trabalhar[6].

 

Ademais, enfatiza que:

Dependendo da profissão do devedor de alimentos, poderá ser flexibilizado. É claro que há uma massa enorme de pessoas que estão passando dificuldades, então o juiz foi extremamente diligente porque não abriu um longo processo para se provar que está ganhando menos. Acreditou na boa-fé que a pessoa está falando a verdade[7].

É de conhecimento geral que o isolamento e a quarentena trouxeram reflexos negativos para diversos setores da economia. Ademais, as medidas provisórias trabalhistas editadas no período de Coronavírus claramente favoreceram o empregador em uma tentativa desesperada de impedir a falência em massa, fazendo com que diversos trabalhadores perdessem seus empregos ou que tivessem seus salários reduzidos. Dessa forma, há uma clara relação de causalidade entre o Coronavírus e a diminuição de rendimento de diversos trabalhadores brasileiros.

Entretanto, essa não é uma constatação absoluta. Aplicativos de delivery, como rappi e ifood, tiveram um crescimento exponencial nesse período. O gerente de inovação do Sebrae, Paulo Renato Macedo, explica que:

Uma área que cresceu muito é a de infraestrutura de home office. As pessoas buscam mobiliário, cadeiras mais ergométricas. Também tem um efeito sobre upgrade de planos de banda larga para trabalhar em casa, além de noteboooks e tablets para as pessoas estarem online e acompanharem uma aula, por exemplo.[8]

Ademais, houve um aumento de demanda em indústrias de materiais hospitalares e de produtos de higiene.

Dessa forma, percebe-se que deixar a produção de provas de lado alegando fato público e notório não é o mais prudente, principalmente em relação a um assunto tão delicado como são os alimentos, uma vez que versam sobre princípios e garantias constitucionais, como o direito à vida e à dignidade da pessoa humana. De acordo com o artigo 5º do CPC, quem participa do processo deve se comportar de boa-fé, porém, essa não é sempre a realidade, o oportunismo ainda está muito presente na sociedade brasileira.

A fim de proteger os interesses de quem necessita de alimentos, é indispensável a produção de provas, cabendo ao devedor demonstrar que teve sua capacidade financeira reduzida e que não possui outros meios de adimplir a sua obrigação, sendo inadmissível a simples menção ao Coronavírus como única justificativa para a redução da prestação alimentícia.

Superado esse entendimento, importante salientar que, de acordo com o artigo 1.694, §1º, do Código Civil, a obrigação alimentar tem como critério de fixação o o trinômio “possibilidade – necessidade – proporcionalidade”, em que é usada a diretriz da proporcionalidade para a fixação dos alimentos.

Assim, mesmo que tenha ocorrido a diminuição da capacidade financeira do devedor, deverá ser observada a necessidade do alimentando, que pode ter inclusive aumentado devido ao Coronavírus. Com o isolamento e a quarentena, as pessoas começaram a ficar praticamente 24 horas dentro de suas residências, aumentando, assim, as contas de água, energia e gás, bem como a expectativa de aumento das despesas médicas, caso haja o contato com o Coronavírus.

É importante que a situação financeria de ambas as partes, credor e devedor, seja analisada para que o menor não fique desassistido, destacando que qualquer parte pode requerer a ação revisional, tanto para a majoração quanto para a diminuição da pensão, a fim de que o trinômio “possibilidade – necessidade – proporcionalidade” seja reestabelecido.

Aderindo aos ensinamentos de Silvio Rodrigues, a obrigação alimentar tem um fim precípuo: atender às necessidades de uma pessoa que não pode prover à própria subsistência.[9] Em tempos difíceis e desafiadores como o que se vivencia atualmente, cabe ao magistrado utilizar de seus poderes de deveres previstos no artigo 139 do CPC, afastando o oportunismo. Deve analisar o caso concreto sempre levando em consideração o princípio norteador do direito aos alimentos: o princípio da dignidade da pessoa humana. Todos têm direito à vida e a uma vida com dignidade.9

 

3 A tutela antecipada antecedente e sua estabilização

O CPC de 2015 trouxe a possibilidade da tutela antecipada antecedente em seu artigo 303.

Importante constatar que, baseado no artigo 304 do Código de Processo Civil, a tutela antecipada se tornará estável uma vez que da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso. Assim, baseado no artigo 1015, I do CPC, o recurso cabivel é o agravo de instrumento. Entretanto, baseado em discussões doutrinárias e jurisprudenciais, entende-se que a contestação também é um recurso que obsta a estabilização da tutela.

A tutela antecipada antecedente é perfeitamente cabível se houver urgência e perigo de dano ou do resultado útil do processo, o que, normalmente, ocorre no direito de família. Dessa forma, há a possibilidade de o devedor que teve sua renda prejudicada com o Coronavírus requerer a tutela antecipada em caráter antecedente.

Como visto anteriormente, se não houver a interposição de recurso, a tutela será estável e fará coisa julgada formal, só sendo possível a discussão do mesmo assunto caso haja uma nova alteração da realidade.

A tutela antecipada antecedente é um procedimento trazido pelo novo CPC que realmente facilita a instrumentalização do direito material, entretanto, a sua estabilização se torna preocupante se pensarmos que há a possibilidade de uma das partes não agir de boa-fé e usar da justificativa pandêmica como uma oportunidade para a redução da pensão alimentícia.

 

4 Conciliação como eficaz solução para a resolução do conflito?

O contexto atual é de incertezas. Almeja-se a desaceleração da contaminação privilegiando o bem maior que é a vida, sem, contudo, afetar drasticamente a economia. Diversas dúvidas e incertezas surgem em relação à obrigação alimentar a ser paga não só durante, mas também após o fim da quarentena com seus reflexos na economia.

Uma solução apresentada diante dos impactos financeiros advindos do Coronavírus foi a Ação Revisional de Alimentos. Contudo, essa não é a única e talvez nem a mais adequada forma de resolução do conflito devido ao momento pandêmico e caótico presenciado. Evitando a judicialização, podem ser utilizados meios alternativos e eficazes como a conciliação e a negociação. Afinal, o momento vivenciado é uma oportunidade para a conciliação.

O Código de Processo civil prevê em seu artigo 3º, § 3º, a possibilidade de conciliação: "A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial[10]".

Nesse sentido, a Defensoria Pública do Estado do Piauí, através de sua diretoria Cível, orientou que, enquanto durar a pandemia causada pelo Coronavírus, sejam incentivados os acordos para os casos de inadimplência quanto ao pagamento da pensão alimentícia. A diretora cível da DPE constata que a negociação é a melhor saída: “É necessário ponderação para não assoberbar o Judiciário sem efetividade de prestação, haja vista o credor estar fadado a não receber. A tentativa de negociação e não judicialização nos parece ser a melhor saída”.[11]

Ante o exposto, é primordial que haja uma tentativa de negociação e conciliação entre as partes, preferencialmente com a presença de um advogado, e se estabeleca um pagamento diferenciado durante o período de pandemia até mesmo com a possibilidade do pagamento in natura, visando sempre o bem-estar do menor e o reestabelecimento do trinômio “necessidade –  possibilidade –  proporcionalidade”.

O momento não comporta brigas e rancores. O bom senso e a empatia devem prevalecer a fim de que um bem maior seja tutelado: a vida.

Caso o diálogo seja impossível, a judicialização será necessária, tendo em vista que o menor não pode, jamais, ficar desamparado.

 

5 Considerações finais

Conforme exposto, o contexto pandêmico vivenciado trouxe diversos reflexos econômicos, fazendo com que o inadimplemento e a mora da pensão alimentícia se tornassem cada vez mais comuns. Diante desse cenário caótico, e em virtude de seu caráter alimentar, a pensão não pode ser objeto de inadimplemento. No entanto, uma alternativa viável é a proposição da ação revisional de alimentos com a ressalva de que deve haver a devida produção de provas para que reste comprovada a redução da capacidade financeira como consequência do Coronavírus, afastando a ideia de fato público e notório.

Uma outra alternativa viável é a tutela antecipada em caráter antecedente devido à urgência e ao perigo de dano ou do resultado útil do processo que os alimentos possuem. Importante perceber que a estabilização da tutela ocorre não havendo a proposição de recurso – entendendo por recurso aquele capaz de obstar a estabilização, tanto a contestação quanto o agravo de instrumento –, sendo prejudicial caso haja o oportunismo de uma das partes.

Em relação à execução, o tema mais polêmico dessa pandemia foi a possibilidade de prisão domiciliar decretada pelo ministro do STJ e pela orientação do Conselho Nacional de Justiça. Entretanto, essa decisão não é a mais acertada, haja vista o prejuízo ao caráter coercitivo da prisão, entendendo como correta a suspensão do cumprimento de prisão até que se acabe a pandemia.

Nesse momento, é de suma importância seguir a orientação da Defensoria Pública do Estado do Piauí, prezando pela tentativa de acordo para os casos de inadimplência quanto ao pagamento de pensão alimentícia. Por fim, caso o acordo não seja possível, a judicialização se faz necessária, uma vez que o menor não pode jamais ficar desamparado.

 

Notas e Referências

1 OPAS. Folha informativa – COVID 19 (doença causada pelo ovo Coronavírus). In: OPAS Brasil – Organização Pan-americana da Saúde online. Atualizada em 16 de junho de 2020. Disponível em: <https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875.>. Acesso em: 17 jun. 2020.

2  Segundo dados do portal “Coronavírus”, no site Migalhas, no dia 18 de junho de 2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coronavirus>. Acesso em: 18 jun. 2020.

3 BRASIL. Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. 06 de fevereiro de 2020. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm>. Acesso em: 17 jun. 2020.

4 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 35.

5 Devido à pandemia, mãe pagará pensão alimentícia menor. In: Migalhas. 07 de abril de 2020. Disponível em: <https://migalhas.com.br/quentes/323912/devido-a-pandemia-mae-pagara-pensao-alimenticia-menor>. Acesso em: 17 jun. 2020.

6 ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO IBDFAM. Justiça de São Paulo reduz valor de pensão alimentícia por causa da pandemia do Coronavírus. In: IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família online. 08 de abril de 2020. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/noticias/7201/Justi%C3%A7a+de+S%C3%A3o+Paulo+reduz+valor+de+pens%C3%A3o+aliment%C3%ADcia+por+causa+da+pandemia+do+coronav%C3%ADrus>. Acesso em: 17 jun. 2020.

7 Ibid.

8 VAE – Vamos ativar o empreendedorismo. Na contramão da crise: os setores da economia que crescem na pandemia. In: G1. 30 de abril de 2020. Disponível em: < https://g1.globo.com/especial-publicitario/vae/noticia/2020/04/30/na-contramao-da-crise-os-setores-da-economia-que-crescem-na-pandemia.ghtml>. Acesso em: 17 jun. 2020.

9 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil Vol. 6: Direito de Família. 28. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 375.

10 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF, 2015. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 17 jun. 2020.

11 FERRY, Ângela. Defensoria orienta para negociação das dívidas de alimentos durante pandemia. In: Piauí – Governo do Estado online. 08 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.pi.gov.br/noticias/defensoria-orienta-para-negociacao-das-dividas-de-alimentos-durante-pandemia/>. Acesso em: 17 jun. 2020.

 

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