A responsabilidade constitucional da escola na educação de crianças e adolescentes

17/09/2019

Coluna Direitos das Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

A Constituição Federal de 1988 (CF/88) representou uma mudança significativa em nosso ordenamento jurídico, sobretudo no que tange aos direitos infantojuvenis. Foi a partir dela que, pela primeira vez, crianças e adolescentes passaram a titularizar direitos fundamentais como qualquer outro ser humano e ainda direitos específicos em respeito a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Essa importante mudança de paradigma no ordenamento jurídico elevou crianças e adolescentes de meros objetos de proteção assistencial na denominada Doutrina da Situação Irregular para titulares de direitos fundamentais no que se chama agora de sistema garantista da Doutrina da Proteção Integral.

Esse novo sistema não só alcança a todas as crianças e adolescentes como também, sabiamente, divide a responsabilidade de assegurar o respeito a esses direitos entre família, sociedade e Estado, transformando-os em corresponsáveis e cogestores desse modelo. Foi essa revolução constitucional que colocou o Brasil no rol das nações mais avançadas na defesa dos interesses infantojuvenis.

Entre os direitos assegurados no art. 227 da CF/88 com absoluta prioridade à criança, ao adolescente e ao jovem, estão o “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Com bem diz o texto legal, essa prioridade deve ser assegurada por todos: família, sociedade em geral e Poder Público. Mas, infelizmente, ainda hoje, trinta anos depois desse avanço legal, não foi possível fazer a sociedade, como um todo, compreender esse passo que nossa lei maior deu e o grande desafio segue sendo sedimentar a implementação desse novo sistema. numa sociedade esculpida por quase um século no sistema anterior, tão contrário em diversas formas.

Afinal, por muito tempo, o cenário jurídico infantojuvenil se resumiu em tratar crianças e adolescentes como meros objetos de intervenção judicial. As leis se limitavam a determinar como proceder com os menores que não se enquadravam naquele molde predefinido, assim considerados os infratores, carentes, abandonados e inadaptados. Ocorre que para ajustá-los o Estado pouco se prendia a mecanismos de ordem assistencial como ferramenta útil optando muitas vezes, independente da razão da irregularidade, por mecanismo mais opressor por acreditar ser possível educar por meio da punição.

No atual sistema, ao serem entendidos como sujeito de direito, crianças e adolescentes ganham voz, passando a ter direito de participar, de opinar e construir coletivamente as regras, seja na família, na escola ou em qualquer grupo que frequentem inclusive e, principalmente, nas políticas sociais que os atendem.

No entanto, uma das barreiras culturais que ainda persiste, por exemplo, é a dificuldade em aceitar que a máxima “o filho é meu, eu que decido” deve ser superada e entender que a responsabilidade pela causa da infância ultrapassou a esfera do poder familiar, recaindo também sobre a comunidade e o poder público, não para restringir direitos dos pais, mas para ampliar a proteção dos direitos dos filhos.

A crença do ¨filho/filha propriedade¨ não raro interfere no comportamento dos vizinhos dessa família, da escola ou da igreja que frequentam, que muitas vezes deixam de intervir em alguma situação de direito violado justamente por se tratar de “filho/filha dos outros” e existir esse receio de intervir na vida intima de outrem. Porém, a responsabilidade constitucional de garantir esses direitos foi também atribuída a eles e em parte exatamente por conta dessa proximidade que certamente lhes confere condições de identificar violações de direitos mais rapidamente.

Essa dificuldade com o novo molde atinge inclusive aqueles legalmente incubidos de garantir a proteção dos direitos, como agentes do judiciário, ministério público, executivo, legislativo, casas de acolhimento, conselho tutelar, entre outros, que muitas vezes não conseguem ainda abrir mão daquela velha forma de interação com crianças e adolescentes e questionam e resistem em adequar o cotidiano infantojuvenil ao sistema garantista, não apenas comprometendo a efetivação desses direitos, mas sendo eles próprios também violadores.

Pois bem, são essas barreiras ainda enraizadas em todos aqueles que deveriam estar garantindo esses direitos, que comprometem o avanço da efetivação e não podemos permitir que essa morosidade social comprometa a certeza das crianças e adolescentes da sua condição de sujeito de direitos ou afetem seu senso de pertencimento social.

É necessário e urgente acabar com esse imaginário coletivo que objetifica crianças e adolescentes e fazer com que sejam tratados como o que realmente são: pessoas em desenvolvimento.

Hoje em dia muito se fala do protagonismo infantojuvenil, de dar voz à crianças e adolescentes, da importância de guia-los nesse processo de compreensão da sua capacidade de mudar o meio em que vivem, em busca desse empoderamento que lhes confere a certeza de poder e a vontade de fazer parte da mudança, atribuindo ao protagonismo um valor fundamental na transformação do mundo.

E para que suas vozes sejam capazes de transformar, eles têm que saber o que dizem. O conhecimento é imprescindível e sendo assim chegamos na escola, essa parcela da sociedade que ocupa espaço privilegiado para interferências mais assertivas e que inclusive, há tempos, já enxergam e trabalham com crianças e adolescentes observando essa sua condição de pessoa em formação.

O art. 205 da CF/88 diz que o processo educacional visa à integral formação da criança e do adolescente buscando seu desenvolvimento, seu preparo para o exercício pleno da cidadania e para ingresso no mercado de trabalho.

Portanto, para além do domínio das técnicas de leitura e escrita, a escola precisa se preocupar em ensinar os alunos a refletir e questionar tudo que aprendem, pois é essa capacidade crítica que desenvolverá neles a percepção de que é possível romper com os muros sociais e mudar o mundo ao seu redor, usando a educação como instrumento de transformação social.

Ora, não é exagero creditar tamanha importância a esse espaço. A escola hoje acumula sua responsabilidade institucional de ensinar com sua responsabilidade constitucional enquanto sociedade de promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente. Não tem como separar.

O direito à educação é fundamental afinal educação é sim a base de tudo, é o conhecimento que viabiliza a efetivação dos demais direitos. A educação é importante para crianças e adolescentes hoje, para os adultos que serão no futuro, e reflexamente para a sociedade inteira, pois uma sociedade sem conhecimento de seus direitos, não tem como exigi-los e não exigir é o mesmo que não tê-los.

Importante levar em consideração ainda que crianças e adolescentes passam boa parte do seu dia na escola, e que, portanto, essa constitui um importante espaço de convivência infantojuvenil. Somado a isso temos pesquisas mostrando que a maioria dos registros de violências contra crianças e adolescentes são cometidos dentro de casa, por parentes ou pessoas próximas da família, o que faz da escola uma das mais importantes portas de denúncia dessas violações de direitos.

Ambos indicativos reforçam a necessidade da escola se reconhecer enquanto corresponsável pela salvaguarda dos direitos infantojuvenis e assumir sua responsabilidade enquanto espaço de promoção e proteção desses direitos, inclusive como meio de conceder-lhes cidadania, cumprindo assim também sua responsabilidade institucional.

Por essa razão, a escola precisa antes de qualquer coisa estimular nos alunos e nas alunas a certeza de que aquele espaço é seguro e de confiança e, portanto, não pode ela própria ser um espaço que reforce discursos violadores de direitos, tampouco ser omissa em relação a situações observadas em seu espaço porquanto estaria normalizando essas violações.

É fundamental que a escola trabalhe a conscientização de sua equipe inteira de trabalho, para que saibam como proceder assim que identificarem casos de violação de direito no espaço escolar e, tão importante quanto, para que tenham condições de orientar crianças e adolescentes a se reconhecerem como vítimas, e construírem a confiança de denunciar, como também a se reconhecerem enquanto agressores e com essa tomada de consciência mais cedo ter maiores chances de mudanças de comportamento, mas, acima de tudo, para que se apropriem dos seus direitos e todas as possibilidades que isso lhes confere.

Ademais, a escola que ciente do seu papel institucional bem como ciente de sua responsabilidade enquanto sociedade, e que perante crianças e adolescentes ainda não trabalha a educação dos direitos fundamentais infantojuvenis está violando a CF/88, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e fatalmente está ela própria violentando a infância e, consequentemente, o futuro de todas aquelas crianças e adolescentes que acreditaram que aquele era o caminho para um futuro melhor.

O espaço escolar deve ser um local de proteção da infância e adolescência e não podemos permitir que as instituições criadas para educar e proteger nossas crianças e adolescentes passem a constituir espaços de violação de direitos retirando a cidadania a quem deveriam conceder.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Studying // Foto de: rhodesj // Sem alterações

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