A RESPONSABILIDADE CIVIL E AS APOSTAS ESPORTIVAS: as condutas expostas pela operação “penalidade máxima”

08/11/2023

Coordenação da Coluna: Associação Mineira de Professores de Direito Civil

O presente artigo tem como propósito a análise das condutas dos esportistas dos envolvidos nos escândalos de manipulação de apostas esportivas e os desdobramentos da Operação Penalidade Máxima. Para tanto, utilizaremos como parâmetro o Código Civil e, mais especificamente, o instituto da Responsabilidade Civil, com foco na percepção das relações jurídicas envolvidas nos crescentes escândalos de apostas envolvendo, principalmente, os jogos de futebol no Brasil.

Para tanto, recorremos, inicialmente, à noção de obrigação natural. Dispensando momentaneamente a complexidade das obrigações no direito civil, é importante ressaltar que, em tese, a própria existência de uma obrigação faz com que ela seja exigível para o seu devedor.

Entretanto, isso não ocorre na obrigação natural, e é exatamente isso que distingue ela de uma obrigação comum (TEPEDINO, 2021, p. 38). Essa incidência da inexigibilidade pode ocorrer diante de algumas circunstâncias jurídicas, entre as quais estão as apostas, conforme explica o art. 814 do Código Civil:

Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.

Em um olhar mais próximo, invoca-se o parágrafo segundo:

§ 2º O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos. 

Conclui-se, com a leitura do texto legal, que a exigibilidade pode ser considerada um caminho naquelas apostas devidamente legalizadas. De modo contrário, aquelas proibidas localizam-se nesse mar das obrigações naturais. Tal distinção é fundamental, uma vez que os acusados de se beneficiarem da manipulação utilizaram das crescentes casas de apostas on-line para alcançarem o lucro. Nota-se, também, que tais endereços eletrônicos carecem da devida regulamentação, haja vista que o acesso aos sites tem se tornado uma febre entre o público brasileiro durante os últimos anos.

Em uma análise inicial, sem a intenção se exaurir o assunto, a temática acende os holofotes em direção a responsabilização civil em um sentido amplo. O fundamento desse instituto pode ser estipulado como a obrigação de reparação quando provocado um dano injusto (TEPEDINO, 2021, p.38-39). Tradicionalmente, é uma abordagem da doutrina estabelecer os elementos nele associado, como a culpa (em sentido amplo), dano e nexo de causalidade (TEPEDINO, 2021, p.43-44).

Além disso, a responsabilidade ainda pode ser dividida entre a responsabilidade objetiva, cuja incidência é pautada naquelas ocasiões em que a atividade empenhada produz risco por sua própria natureza, como o dita o parágrafo único do art. 927 do Código Civil em vigência.

Também há a responsabilidade subjetiva, caracterizada pela necessidade de comprovação, através do clássico ônus da prova. Isso acontece porque, mediante diversas ações propositais, os jogadores estavam dispostos a simular, por meio da casualidade do esporte, diversas situações as quais, diretamente ou indiretamente, interferem no andamento da partida. Em uma escala ainda mais ampla, isso põe em questionamento a legitimidade de campeonatos se esse for visto como um aglomerado de disputas. Não obstante, com o objetivo de conseguir um benefício econômico, tais esportistas acabaram por promover verdadeiros danos de diversas naturezas.

O presente texto pretende percorrer por alguns caminhos intuitivos, a responsabilidade civil perante os clubes, às confederações e às torcidas. Apesar disso, é válido ressaltar que a responsabilização também repercute no âmbito penal e administrativo incidente sobre a figura do jogador como agente causador do dano.

O foco do presente texto é a operação penalidade máxima trata de uma investigação relacionada a manipulação de resultados em partidas de futebol no Brasil. A investigação é descrita em várias fases, e seu escopo se expande à medida que os investigadores descobrem mais informações sobre o esquema. A investigação começou com a suspeita de vícios em três jogos da Série B do Campeonato Brasileiro, com a equipe do Vila Nova tendo conhecimento dessa irregularidade.

A primeira fase da operação, denominada "Penalidade Máxima", concentrou-se inicialmente em analisar a possível manipulação de um pênalti, mas logo se expandiu para incluir simulações de condutas em outros jogos. O esquema de manipulação revelou-se complexo, com os acusados distribuindo vantagens financeiras em várias contas de casas de apostas digitais e utilizando contas de terceiros para gerenciar o dinheiro. A investigação identificou diferentes núcleos no esquema, incluindo financiadores, apostadores, intermediadores e administradores.

As evidências se baseiam em conversas de aplicativos de mensagens que revelam a colaboração estreita entre os membros do grupo na busca por ganhos financeiros por meio da manipulação de resultados. Além disso, são apresentadas informações sobre a utilização de uma conta bancária para realizar transferências de valores significativos, ultrapassando um milhão de reais em 2022.

A segunda fase da investigação envolveu um maior volume de provas e mais envolvidos, incluindo jogos da Série A do Campeonato Brasileiro. Isso causou grande comoção, uma vez que questionou a integridade da principal competição nacional de clubes de futebol, o esquema era minuciosamente disfarçado entre contas e casas de apostas, a fim de evitar detecção. No entanto, em algumas situações, as casas de apostas bloquearam as transações devido a suspeitas de irregularidades.

As evidências incluem comprovantes bancários de transferências em valores elevados realizadas após os acordos de apostas, bem como chamadas de vídeo dentro do vestiário entre jogadores e apostadores para comemorar o sucesso da operação.

A investigação é detalhada em relação a cada conduta manipulada, com capturas de tela de conversas entre jogadores, intermediadores e apostadores sendo anexadas como prova. O texto também menciona casos em que as manipulações não tiveram sucesso, resultando em frustração por parte dos envolvidos.

O esquema de apostas envolveu a montagem de apostas múltiplas para aumentar as chances de lucro, e os apostadores mantiveram contato com jogadores de equipes diferentes para criar combinações complexas que se estenderam aos campeonatos estaduais.

O crescimento da visibilidade alcançada pelo esporte ao longo do tempo fez com que este se transformasse em um fenômeno de massa, atraindo grandes investidores que perceberam nessa atividade uma excepcional perspectiva de lucro (VARGAS, 2017, p. 29). Entretanto, o lucro visado a partir da manipulação dos resultados da operação “Penalidade Máxima”, foi executado de uma maneira ilícita. Por isso, além da análise da responsabilidade penal, enxerga-se, também, a necessidade e a importância de se analisar as repercussões no âmbito da responsabilidade civil, a fim de tentar abarcar todas as consequências que a operação vem demonstrando. Por isso, essa análise se dividirá em dois aspectos, o primeiro deles será a responsabilização civil dos jogadores envolvidos em face do clube que fazem parte, e em seguida, analisaremos também, a responsabilização civil dos jogadores em face da torcida.

O jogador de futebol profissional ao estabelecer um vínculo contratual (negócio jurídico) com o clube, apesar de o seu contrato não permitir que haja vínculo de empregador e empregado, sendo a organização deste o estabelecimento o jogador na posição de atleta e o clube na condição de entidade de prática desportiva (PELISARI, et. al. 2021), o jogador ainda deve se preocupar com esse vínculo, pois dele advém direitos e deveres.

Em relação aos 4 pressupostos para a responsabilidade civil, que são: ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, relação de causalidade e danos (GONÇALVES, 2011), atualmente, a doutrina ao analisar a culpa lato sensu, que engloba a distinção entre dolo e culpa, preocupa-se mais numa reflexão que vai além dos liames da vontade subjetiva do autor do dano. Dessa forma, percebe-se que o jogador, ao manipular os resultados dos jogos, visava o lucro para si, mas não deixou de lado a possibilidade de previsão da produção de um dano maior (TEPEDINO, 2021, p. 206), que envolvia o clube e a torcida, sendo esse moral e pela perda de uma chance, por isso, ao aceitar as possíveis consequências advindas dos seus atos, deve ocorrer a responsabilização. Nesse viés, a definição de dano moral está presente no art. 5º da Constituição Brasileira, inciso X.

Sobre essa perspectiva, o clube, por ser uma pessoa jurídica, não possui honra subjetiva, aquela que vincula os sentimentos de dignidade que a própria pessoa tem de si mesma, mas sim honra objetiva, que se relaciona com a visão externa daquela pessoa, a sua reputação. Por isso, de acordo com a Súmula 227 de 1999 do STJ, a pessoa jurídica pode sofrer dano moral se comprovado a lesão à sua imagem e à credibilidade, de tal modo que essa lesão prejudique a sua atividade habitual.

Portanto, em relação à vinculação de uma imagem negativa ao clube envolvido, este pode ajuizar uma ação de danos morais em face do jogador, pois os jogadores profissionais ao manipularem os resultados dos jogos no exercício da sua profissão e, por conta disso, ao mesmo tempo estarem vinculando o nome e a imagem do clube a qual pertencem, feriram diretamente a honra objetiva do time, visto que, em um primeiro momento, não se sabia se eram apenas os jogadores envolvidos ou se o clube também estaria diretamente envolvido na manipulação, gerando desconfianças e manchando a sua reputação e credibilidade, principalmente na mídia. Além disso, a repercussão da manipulação dos resultados na torcida pode influenciar também na diminuição de sócio torcedores.

Ademais, os jogadores envolvidos devem ser responsabilizados também por proporcionarem aos clubes o dano pela perda de uma chance. Sobre isso, a perda de uma chance é do ponto de vista jurídico, uma situação em que alguém alega ter perdido a oportunidade de obter algum benefício ou evitar algum dano devido à conduta negligente ou inadequada de outra pessoa, empresa ou entidade. Embora a perda de uma chance não seja um conceito universalmente aceito em todos os sistemas legais, muitos sistemas jurídicos a reconhecem e, por isso, indeniza-se a oportunidade que foi perdida, e não o prejuízo final, e é por esse motivo que a indenização deve ser fixada seguindo os critérios de proporcionalidade e razoabilidade, relacionando uma certa “proporcionalização” do dano sofrido juntamente com as consequências advindas do determinado ato lesivo (BRASIL, 2022).

Dessa forma, isso é observado na interferência provocada pelos jogadores envolvidos nos esquemas de manipulação, que, ao participarem da modificação de diversos atos nas partidas, como pênaltis, cartões amarelos, vermelhos, faltas, podem ter impedido o time de ganhar alguma partida e alcançar uma posição mais elevada na tabela do campeonato, impossibilitando a chance real do time de melhorar a sua trajetória, e, assim, conseguir um valor patrimonial maior através de novos patrocinadores e do lucro que os próprios campeonatos oferecem, além da maior visibilidade e prestígio. Por isso, o time foi imensamente prejudicado através do dano pela perda de uma chance, e deve ocorrer a responsabilização.

Em segundo lugar, devemos analisar brevemente a responsabilidade civil dos jogadores em face da torcida. Sobre isso, ao encaixá-la como uma coletividade, e equiparar a relação da torcida com o futebol com uma relação de consumidor e produto, de acordo com o acórdão 1.374.318 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (BRASIL, 2021), podemos estabelecer, também, uma relação do Estatuto do Torcedor,[i] Lei 10.671/03, com o Código de Defesa do Consumidor, porque, apesar de o Estatuto do Torcedor ser uma legislação especial, com elementos próprios, ele pode ser aplicado juntamente ao Código do Consumidor, por causa do princípio do diálogo das fontes.

Por isso, a torcida, por acompanhar de perto os altos e baixos que seu time pode percorrer, equiparando-se com um consumidor, deve ser indenizada em face dos jogadores envolvidos na manipulação, a partir do conceito de dano moral coletivo, pois há uma inegável frustração coletiva ao saber que time que torcem pode ter sofrido consequências irreparáveis em determinado campeonato por conta dos atos de manipulação de alguns jogadores.

O dano moral coletivo, como diz Sérgio Pontes (2018):

[...] é aferível in re ipsa, ou seja, sua configuração decorre da mera constatação da prática de conduta ilícita que, de maneira injusta e intolerável, viole direitos de conteúdo extrapatrimonial da coletividade, revelando-se despicienda a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral. 

Sob essa perspectiva, o Ministério Público de Goiás, que está investigando a operação “Penalidade Máxima”, pediu 2 milhões de reais para o dano moral coletivo, sob a fundamentação de que esse valor seria uma espécie de expectativa do lucro que o grupo criminoso obteve com a utilização das contas nas apostas manipuladas descritas na denúncia.

Então, conclui-se que todo ato cometido gera uma consequência e, sob essa perspectiva, apesar de as investigações acerca da operação ainda estarem em andamento, percebe-se que a responsabilização pode ocorrer amplamente, tanto no aspecto penal, administrativo e civil, como foi mencionado nesse trabalho.

Além disso, é importante mencionar também que, apesar das apostas esportivas de cota fixa, tanto virtuais quanto em eventos reais, serem autorizadas no Brasil desde 2018 com a aprovação da Lei 13.756, elas não são totalmente regulamentadas até os dias de hoje. Por isso, de acordo com uma notícia feita pelo Ministério da Fazenda (2023), o Governo Federal deve regulamentar, ainda esse ano, as apostas esportivas, conhecidas como “mercado das bets”. A proposta de regulamentação será através de uma Medida Provisória, estabelecida em conjunto com os Ministérios de Esporte, Turismo, Planejamento, Gestão e Saúde, a fim de estabelecer maior controle do setor.

Sobre a Medida Provisória, esta, pelo que explicita o Ministério da Fazenda, irá prever a criação de uma secretaria dentro do próprio Ministério, que será responsável por analisar os pedidos de aprovação do credenciamento das empresas de apostas. Dessa forma, somente as empresas aprovadas poderão fazer parte do mercado real e virtual de maneira lícita, e, além disso, serão taxadas em 16% sobre o Gross Gaming Revenue (GGR), que é a receita obtida com os jogos de apostas, menos os prêmios pagos aos jogadores, que serão tributados em 30% de Imposto de Renda.

Portanto, com a devida regulamentação das apostas esportivas, os participantes dos grandes mercados de apostas esportivas ficarão menos vulneráveis, e a probabilidade de escândalos envolvendo esse sistema se tornará cada vez menor. Não obstante, cabe salientar, também, que tal mercado on-line, surgiu recentemente na realidade brasileira. Com isso, entendemos que os clubes e organizações envolvidas nos esportes estão diante de uma nova realidade, a qual precisa de um certo tempo para ser devidamente recebida por aqueles competentes. De qualquer maneira, essa popularização pode ser percebida ao assistir uma simples partida, uma vez que diversas casas de apostas são patrocinadoras dos clubes e dos próprios campeonatos. Elas também usam dos comerciais televisivos para divulgação, bem como as redes sociais dos jogadores para serem conhecidas e utilizadas. Assim, o impedimento dessas combinações parecem ser um interesse comum dessas empresas, uma vez que tais condutas podem ser relacionadas às próprias práticas delas.

Desse modo, tal perspectiva parece ter o ânimo de permanência. Isso porque a prática dos palpites já se tornou um fator relevante quando os espectadores decidem assistir um jogo ou acompanhar um campeonato. O crescimento da abrangência dessas empresas fez com que o hábito se espalhasse rapidamente, haja vista que são sites de fácil acesso e os valores mínimos necessários para apostar são de pouca expressão, chegando à casa de um único real em alguns endereços eletrônicos. Destarte, é provável que tal realidade ainda seja muito modificada com o avanço da regulamentação, mas é possível perceber que estamos diante de uma nova modalidade intrínseca a uma das atividades mais apreciada pelo nosso país, o esporte, em especial o futebol.

 

Notas e referências 

BRASIL, MINISTÉRIO DA FAZENDA. Governo regulamenta apostas esportivas de quota fixa no Brasil. [S.l.]. Governo Federal, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/governo-regulamenta-apostas-esportivas-de-quota-fixa-no-brasil-1 Acesso em: 06 nov. 2023.

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_____. Lei nº 10.671. Dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor e dá outras providências (revogado em 15/06/2023). Diário Oficial da União, Brasília. 15/05/2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.671.htm Acesso em: 06 nov. 2023.

_____. Lei nº 13.756. Dispõe sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), sobre a destinação do produto da arrecadação das loterias e sobre a promoção comercial e a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa. Diário Oficial da União, Brasília. 12/12/2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13756.htm Acesso em: 06 nov. 2023.

_____. Lei nº 8.078. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília. 11/09/1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm Acesso em: 06 nov. 2023.

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_____. TJDFT (Segunda Turma Cível). Acórdão 1374318. Relator: HECTOR VALVERDE SANTANNA, 29/09/2021. Apelação Cível. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-df/1308120949/inteiro-teor-1308120954. Acesso em: 06 nov. 2023.

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[i] Observa-se que, enquanto esse artigo estava sendo escrito, o Estatuto do Torcedor foi revogado pela promulgação da Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023). Portanto, nesta parte analisaremos o argumento à luz desse dispositivo. Entretanto, a Lei Geral do Esporte não procura anular possíveis progressos advindos do Estatuto do Torcedor, ela apenas padroniza as normas que visam regulamentar a prática dos esportes no Brasil.

 

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