A responsabilidade civil do parecerista público – Por Mauricio Mota

19/10/2016

O advogado público quando atua no dever de consultoria da Advocacia de Estado tem o dever de interpretar a lei para apontar a solução correta; ele tem de ser imparcial, porque protege a legalidade do ato administrativo; ele atua na defesa do interesse público primário, de que é titular a coletividade, e não na defesa do interesse público secundário, de que é titular a autoridade administrativa. Nessa tarefa tão difícil tem surgido recentemente dúvidas quanto à responsabilidade de tal pareceristas público na emissão de seu parecer. Especificamente o problema está nos casos em que a manifestação das assessorias jurídicas é obrigatória. Discute-se se a autoridade está obrigada a “decidir” conforme o parecer ou nada decidir, daí decorrendo uma responsabilização também solidária do parecerista público.

Parecer é entendido como peça fundamental para que o procurador público exerça suas funções consultivas. O parecer é espécie do gênero ato enunciativo. Por sua vez, ato enunciativo é meio pelo qual a Administração atesta uma situação fática ou de direito, estando aqui o parecer incluso. O parecer é um ato administrativo unilateral, onde a Administração se limita a manifestar opinião acerca de questão submetida a pronunciamento, isto é, manifestação de uma vontade, seja sobre questões jurídica, técnica ou administrativa.

Consoante a classificação de René Chapus o parecer é classificado de três formas: facultativo, obrigatório e vinculante. O parecer facultativo é aquele em que a administração solicita (sem que haja imposição normativa que a obrigue, estando, pois, sob oportunidade, discricionariamente valorada) ouvir a declaração opinativa do órgão consultivo.

O parecer facultativo é destituído de relevância no âmbito externo. Além disso, a administração não tem o dever de ater-se ao parecer. Esta discricionariedade de manifestação técnica, permite que o órgão administrativo não esteja obrigado a aceitar sua conclusão.

O parecer obrigatório é aquele em que a norma jurídica enuncia que este seja solicitado, em certos momentos – por exemplo, o art. 38 da lei nº. 8.666/1993 –, de determinados órgãos consultivos. Esta obrigatoriedade é constituída pela solicitação do parecer, onde tal omissão influi sobre a validade do ato final, sem, contudo, existir o dever da administração de agir conforme a opinião do órgão consultivo atento às questões de legalidade e validade, ou seja, o parecer não perde seu caráter opinativo.

O parecer vinculante significa uma espécie de parecer obrigatório em que a administração está obrigada a solicitá-los e age ou deixa de agir conforme o parecer (CHAPUS, René. Droit administratif general. T. I. 15. éd. Paris: Montchrestien, 2001, p. 1113-1115). Trata-se de instituto típico do direito francês, sem correspondência no direito brasileiro. Nesse caso a lei francesa estabelece a obrigatoriedade de decidir à luz de parecer vinculante (décider sur avis conforme).  O administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir. Como bem coloca Maria Syvia Zanella di Pietro tal parecer vinculante inexiste no direito brasileiro: “dizer que a autoridade pede um parecer e é obrigada a curvar-se àquele parecer, eu confesso que não conheço exemplos aqui no Direito brasileiro.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.  Responsabilidade dos procuradores e assessores jurídicos da administração pública. In: Boletim de Direito Administrativo. Vol. 24, n.º 1. São Paulo: NDJ, p. 6, janeiro de 2008). 

Conclui Diogo de Figueiredo Moreira Neto que os agentes públicos no direito brasileiro, em princípio, não estão obrigados à observância dos pareceres jurídicos, podendo dispor de maneira diversa, embora sob sua inteira e integral responsabilidade: “os agentes administrativos, em princípio, não estão obrigados à observância de pareceres jurídicos, embora suas decisões, se os contrariar, devem apresentar motivação consistente para afastar os argumentos neles deduzidos”(MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Independência técnico-funcional da Advocacia de Estado. In: TAVARES, Lúcia Léa Guimarães. (org.) Revista de Direito da APERJ. Vol. XVI – Advocacia Pública. Rio de Janeiro, Renovar, 2006, pp. 3 a 23, aqui, p. 17).

No Brasil, duas decisões relevantes foram debatidas no Supremo Tribunal Federal envolvendo pareceres de advocacia consultiva da Administração Pública que têm importantes contribuições ao presente caso. A primeira decisão relevante do Supremo Tribunal Federal em tema de advocacia consultiva pública é a que foi emanada no Mandado de segurança n°. 24.073-3 – Distrito Federal, cujo julgamento ocorreu em 06 de novembro de 2002, sendo o Ministro Carlos Velloso o relator. No caso, o Tribunal de Contas da União, mediante sua Primeira Secretaria de Controle Externo, motivada por notícias publicadas no do Jornal do Brasil, realizou uma auditoria na Petrobras e detectou ilegalidade na contratação direta, sem licitação, da empresa de consultoria Arthur D. Litlle – ADL.

Diante disso, o Tribunal de Contas da União pretendeu responsabilizar, de forma pessoal e solidária os diretores da empresa e os advogados da Petrobras que emitiram parecer favorável a contratação direta da ADL. No mandado de segurança foi sustentada a inconstitucionalidade do controle do Tribunal de Contas para examinar a atuação dos impetrantes, pois estes não haveriam atuado como administradores, mas como advogados.

A responsabilização violaria, ainda, a isenção da técnica da atuação profissional dos advogados; além disso, as opiniões legais haveriam sido escritas com base nas informações fornecidas, aos consultores, pelas diferentes unidades da Petrobras. Já o Tribunal de Contas alegou que os pareceres jurídicos “constituem a fundamentação jurídica e integram a motivação das decisões dos ordenadores de despesas”; e a essência da responsabilização estaria na “conduta dos pareceristas em não averiguar com o devido rigor nas situações concretas, inclusive com base na doutrina e jurisprudência pertinentes, a observância dos requisitos básicos para atendimento as exigências impostas pela Lei de Licitações (...).”

O Supremo Tribunal Federal discordou do Tribunal de Contas da União. No voto do relator, apoiado por unanimidade, argumentou-se que pareceres não são atos administrativos, porém, são “opinião emitida pelo operador do Direito, opinião técnico-jurídica.”

O ato administrativo seria o que lhe seguiria, não a opinião jurídica em si. E afirmou: “Posta assim a questão, é forçoso concluir que o autor do parecer, que emitiu opinião não vinculante, opinião a qual não está o administrador vinculado, não pode ser responsabilizado solidariamente com o administrador, ressalvado, entretanto, o parecer emitido com evidente má-fé, oferecido, por exemplo, perante administrador inapto.”

E o relator continuou: “Ora, o Direito não é uma ciência exata. São comuns as interpretações divergentes de certo texto de lei, o que acontece, invariavelmente, nos Tribunais.” Isto é, significa dizer que é parte da constituição do Direito a heterogeneidade de ideias, sendo esta de valor constitucional comprovadamente útil à produção e obtenção dos melhores resultados possível ao Direito e, por conseguinte, à sociedade.

E ele segue: “Por isso, para que se torne lícita a responsabilização do advogado que emitiu parecer sobre determinada questão de direito é necessário demonstrar que laborou o profissional com culpa, sentido, largo, ou que cometeu erro grave inescusável”.

O que não ocorreu na presente hipótese, pois se tratava de discordância quanto à melhor interpretação jurídica, e por isso inexistiria o ilícito na atuação dos advogados, cuja eventual responsabilização deveria ser em sede própria da OAB, não do Tribunal de Contas.

Nos outros votos, dentre os quais o do Ministro Sepúlveda Pertence, observou que, se a responsabilização pela emissão de uma opinião em parecer jurídico tornar-se uma prática recorrente, o Ministério Público, emissor de centenas de pareceres diários, terminaria tendo que responsabilizar-se por “todas as culpas que tem e não tem”.

A segunda decisão relevante do Supremo Tribunal Federal em tema de advocacia consultiva pública é relacionada ao Mandado de Segurança nº. 24.631-6 – Distrito Federal, julgado em 09 de agosto de 2007, tendo como relator o Ministro Joaquim Barbosa. A hipótese versava sobre imputação do Tribunal de Contas da União em desfavor de procurador do DNER que proferiu parecer que admitia celebração de acordo judicial para pagamento de dívida da autarquia. O valor foi pago via acordo extrajudicial, quando já havia sido emitido precatório. Assim, o Tribunal de Contas da União alegou quebra na ordem cronológica do precatório e violação à legalidade, impessoalidade, razoabilidade, moralidade e isonomia. Na defesa, o procurador argumentou a extrapolação das atribuições do Tribunal de Contas da União e o malferimento a dispositivos constitucionais concernentes à advocacia pública.

O Ministro Relator, trazendo a doutrina de René Chapus sobre pareceres facultativos, obrigatórios e vinculantes, discorreu que o parecer era facultativo, e que a atribuição de responsabilidade do TCU ao parecerista era arbitrária, porque este havia opinado a favor da transação judicial, e o acordo supostamente lesivo tratava de transação extrajudicial. O Tribunal de Contas da União pretenderia responsabilizar quem “potencialmente” tinha dado ensejo à irregularidade, mesmo quando inexistissem provas da participação do procurador.

Todos os demais ministros concordaram com o relator, mas houve divergência em relação à correta configuração da ideia de “parecer obrigatório” (ou “vinculante”), pois, para Carlos Britto e Marco Aurélio, a atuação do advogado no processo administrativo não o transformaria, obrigatoriamente, em administrador em sentido técnico (Marco Aurélio chegou a afirmar: “Senhor presidente, é acaciano: parecer, enquanto parecer, é parecer.”).

Sintetizando a ratio decidendi do STF na matéria assim se expressou o Procurador do Estado e Professor da Faculdade de Direito da UERJ, José Vicente dos Santos Mendonça:

Não existe, no Brasil, parecer vinculante, ao menos na forma como o ministro Joaquim Barbosa definiu: hipótese legal que obrigue o administrador a “decidir” conforme o parecer ou, então, a nada decidir. Em todos os casos, mesmo naqueles em que a manifestação das assessorias jurídicas é obrigatória, a autoridade sempre poderá refazer/modificar sua proposta de ação, e, assim, submeter novamente a questão à análise jurídica. Simplesmente não faz sentido uma situação em que a lei obrigue o administrador a “decidir” conforme o parecer (as aspas se justificam porque, em termos lógicos, inexistiria qualquer decisão) ou nada decidir.

De resto, não é possível acreditar que o parecerista vire administrador, com todas as conseqüências práticas do conceito (prestação de contas ao tribunal de contas etc.), apenas porque a lei determina, em certos casos, a elaboração de opinião. Seguindo a linha acaciana do Min. Marco Aurélio, o administrador administra, e um parecer vai ser sempre um parecer: se é obrigatório ou não, isso não desnatura sua essência opinativa. Trata-se de construção doutrinária que não se encaixa ao nosso Direito. O parecer é obrigatório quanto à sua presença, mas não é, e jamais poderia ser, obrigatório quanto a seu acolhimento: mesmo no caso do art. 38, parágrafo único, da Lei de Licitações, há consenso, no Supremo Tribunal Federal e nos Tribunais de Contas, de que a autoridade administrativa pode deixar motivadamente de segui-lo, arcando, é claro, com os riscos (MENDONÇA, José Vicente Santos de. A responsabilidade pessoal do parecerista público em quatro standards. Revista Brasileira de Direito Público. Belo Horizonte, v. 7, n. 27, out./dez, 2009).

Portanto, pode-se concluir que quanto à vinculação entre a obrigatoriedade do parecer e a responsabilização do parecerista não existem exemplos, no Direito brasileiro, de pareceres vinculantes, isto é, daqueles em que o administrador está obrigado a adotar a tese jurídica nele defendida ou, então, a não agir. Essa tese não é verdadeira de modo algum: seja obrigatório ou facultativo o parecer, o que vai influir na responsabilização de seu autor é a presença de dolo ou erro evidente e inescusável, o fato de haver influído concretamente no curso da ação (nexo causal) e de que desta tenha decorrido algum prejuízo (dano).

Muito mais do que isso: o parecer público, além de não implicar na responsabilização do parecerista pela inexistência de pareceres públicos vinculantes no direito brasileiro, naquelas hipóteses em que é obrigatoriamente aprovado por ato subsequente (a aprovação do Procurador Geral do Estado, por exemplo), não subsiste como ato administrativo, o que subsiste é o ato de sua aprovação e sua conversão em opinião jurídica do órgão público consultivo (na hipótese do exemplo, a opinião jurídica da Procuradoria Geral do Estado).

Como fica cristalinamente claro no magistério do mestre Hely Lopes Meirelles:

“pareceres administrativos são manifestações de órgãos técnicos sobre assuntos submetidos à sua consideração. O parecer tem caráter meramente opinativo, não vinculando a Administração ou os particulares à sua motivação ou conclusão, salvo se aprovado por ato subsequente. Já, então, o que subsiste como ato administrativo não é o parecer. Mas, sim, o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade normativa, ordinária, negocial ou punitiva”( MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 176).

Assim sendo, tendo um parecer de um Procurador ou advogado público sido apreciado e aprovado pela autoridade máxima de sua instituição, ele não mais subsiste como ato administrativo. O que existe agora é a opinião jurídica dessa instituição jurídica encaminhada ao Chefe do Poder Executivo.

No caso de um Estado, é somente essa opinião jurídica do órgão central do sistema jurídico do Estado aquela apta em tese para haver influído no curso da ação (nexo causal) do Governador do Estado e de que desta ação possa decorrer algum prejuízo (dano).

Há interrupção de qualquer nexo de causalidade que porventura pudesse existir entre o primitivo parecer e a ação do Chefe do Poder Executivo porque uma concausa sucessiva (a aprovação do Procurador Geral do Estado e o encaminhamento da agora opinião jurídica da Procuradoria Geral do Estado ao Chefe do Poder Executivo) por si só produziu o resultado (a indução da ação do Governador) e, se dessa ação resultou prejuízo efetivo (dano) somente ao administrador, ou no máximo, ao prolator da aprovação (nos casos de dolo ou erro inescusável) se poderia atribuir qualquer culpabilidade.

Portanto, em conclusão, o STF, em sucessivas decisões, expostas nesse artigo, terminou por estabelecer que não é possível acreditar que o parecerista vire administrador, com todas as consequências práticas disso (prestação de contas ao tribunal de contas etc.), apenas porque a lei determina, em certos casos, a elaboração de opinião. Seguindo a linha acaciana do Ministro Marco Aurélio, o administrador administra, e um parecer vai ser sempre um parecer: se é obrigatório ou não, isso não desnatura sua essência opinativa.

Consoante tudo o que foi examinado, não há assim, como se negar, que, dentre as prerrogativas, responsabilidade civil e garantias dos pareceristas públicos na advocacia de Estado, está a não possibilidade de responsabilização do pareceristas público pela simples emissão de sua opinião jurídica, só se cogitando de responsabilidade na presença de dolo ou erro evidente e inescusável.


Imagem Ilustrativa do Post: Typing // Foto de: Jim Pennucci // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/pennuja/7181436325

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura