Coluna Direito Civil em Pauta / Coordenadores Daniel Andrade, David Hosni, Henry Colombi e Lucas Oliveira.
De acordo com um levantamento recente, 70% das mulheres brasileiras já sofreram algum tipo de importunação sexual nos meios de transporte coletivo[1]. Diante desse cenário alarmante, para além das providências tomadas contra o assediador, algumas das vítimas têm ajuizado ações de reparação por danos morais em face das empresas concessionárias. O Poder Judiciário, no entanto, ainda não possui um entendimento uniforme sobre a viabilidade de demandas dessa natureza. Afinal, a companhia transportadora deve ou não deve ser responsabilizada civilmente pelos assédios sexuais cometidos por terceiros no âmbito do serviço de transporte público?
Há no art. 393 do Código Civil uma regra geral da responsabilidade civil contratual segundo a qual o caso fortuito, nele incluído o fato de terceiro, exclui o nexo causal necessário à imputação de responsabilidade civil[2]. No entanto, no caso do contrato de transporte, por expressa previsão legal constante do art. 735 do Código Civil, essa regra geral é afastada, dispondo o referido artigo que a culpa de terceiro não é fato suficiente a obstar a responsabilização da transportadora[3]. Nota-se que referida norma excepcional deriva da antiga Súmula nº 187 do STF[4], a qual, atenta aos riscos envolvidos no contrato de transporte, lança sobre ele um regime contratual, estatuindo uma "cláusula de incolumidade" em favor do passageiro. Essa tradição remonta ao regime especial do transporte ferroviário, regulado pelo Decreto nº 2.681/1912, em que se previa a presunção de culpa do transportador por acidentes ocorridos no contexto do transporte[5]. Em que pese o caso se submeter, atualmente, às normas do Código de Defesa do Consumidor, o qual, a rigor, excluiria a responsabilidade do fornecedor por fato de terceiro[6], o Código Civil revela-se mais protetivo ao passageiro, razão pela qual, em diálogo das fontes, é a norma a ser aplicada. O art. 735 do Código Civil é, no entanto, interpretado de forma restritiva pelo STJ, o qual compreende que, por ter a lei elegido o vocábulo culpa, tal exceção não abrangeria situações de dolo[7]. Por essa razão, o tribunal tem afastado a responsabilização da transportadora quando o dano é intencionalmente causado por terceiro, considerando-o um caso fortuito.
Entretanto, em julgados recentes, a Terceira Turma do STJ, apesar de não divergir do entendimento acima exposto para os casos de transporte coletivo em geral, tem se afastado dessa linha quando a questão envolve assédio sexual. A Terceira Turma, por maioria, tem entendido que tal situação caracterizaria fortuito interno, gerando o dever de indenizar por parte da transportadora. A Ministra Nancy Andrighi, relatora dos votos vencedores que direcionam o entendimento da Turma, fundamenta que o assédio sexual em transportes coletivos, na atual situação de prestação desses serviços nos grandes centros urbanos do Brasil, não pode ser caracterizado como simples situação circunstancial alheia ao risco do empreendimento. A grande aglomeração de pessoas aliada à baixa qualidade do serviço prestado, em razão da pequena quantidade de vagões ou ônibus colocados à disposição dos usuários, propiciaria as circunstâncias ideais para a ocorrência desses eventos de assédio e caracterizaria, assim, fortuito interno, insuficiente, portanto, para afastar a responsabilização[8]. A Quarta Turma, por outro lado, mantém-se fiel à jurisprudência da Corte, sustentando que o assédio sexual, por tratar-se de conduta dolosa de terceiro, é causa suficiente para afastar a responsabilidade da transportadora, configurando caso fortuito propriamente dito, ou "fortuito externo", que, a teor do art. 393 do Código Civil, é apto a interromper o nexo de causalidade e afastar a responsabilidade civil por estar fora do controle da transportadora. Há, no entanto, na linha de argumentação de ambas as Turmas, inconsistências que não podem ser desconsideradas.
A primeira das inconsistências diz respeito à fragilidade do argumento adotado pela Quarta Turma e pelos votos vencidos da Terceira Turma. O simples fato de se tratar de ato de terceiro que constitua ilícito doloso não serve como regra geral, na jurisprudência, para caracterizar o ato de terceiro como fortuito externo. Em relação a outras atividades empresariais que não a de transporte coletivo, como no setor bancário, consideram-se alguns ilícitos dolosos como fortuitos internos, a teor da Súmula nº 479 do STJ, que dispõe que "as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias"[9].
O segundo ponto a se destacar nos debates de ambas as Turmas acerca do assédio sexual em transporte coletivo é o critério do controle e minoração do risco da ocorrência de danos associados à definição do que seja fortuito interno e externo. Na Quarta Turma, o Relator, Min. Marco Buzzi, afirmou que “[a] culpa de terceiro rompe o nexo causal entre o dano e a conduta do transportador quando o modo de agir daquele (terceiro) puder ser equiparado a caso fortuito, isto é, quando for imprevisível e autônomo, sem origem ou relação com o comportamento da própria empresa"[10]. No mesmo julgado, a Min. Maria Isabel Gallotti votou de acordo com o Relator, acrescentando que “não teria a concessionária como prever as intenções de cada passageiro para se prevenir da possibilidade que ocorressem tais incidentes por tudo lamentáveis”. Na Terceira Turma o debate assume, em determinados momentos, o mesmo tom. No voto vencido do Min. Marco Aurélio Belizze, ele afirma que “o dever de vigilância e de segurança imputável ao transportador não significa exigir que ele tenha total controle sobre as ações de terceiros das quais não possui nenhuma ingerência, isto é, o transporte não foi a causa do evento danoso, mas sim a sua ocasião, afastando a conexidade entre a prestação do serviço público de transporte e o assédio sexual suportado pela passageira”[11]. Sua afirmação deu-se em resposta à ponderação feita pela Relatora, Min. Nancy Andrighi, que indicou que "há uma plêiade de soluções que podem talvez não evitar, mas ao menos reduzir a ocorrência deste evento ultrajante"[12].
Esses argumentos relativos ao possível controle, previsibilidade ou prevenção dos danos não possuem, ou não devem possuir, qualquer relação com a avaliação de se determinado caso fortuito, especialmente aquele decorrente de fato de terceiro, possui conexidade ou não com o risco do negócio, ou seja, se é ele interno ou externo. Quando se fala em riscos em termos de responsabilização objetiva, está-se falando, principalmente, daqueles riscos que, apesar de inerentes à atividade tal qual concretamente desenvolvida, fogem ao controle do agente, uma vez que a teoria se presta justamente a justificar a responsabilidade por danos que não decorrem de sua negligência. Não é essa, no entanto, a abordagem que vem sendo adotada pela jurisprudência do STJ, a qual, muitas vezes, tem configurado a contraposição entre fortuito interno e externo com base na ideia de previsibilidade e evitabilidade do dano. No REsp 1.269.691/PB, julgado em 2013, a própria Quarta Turma entendeu por bem responsabilizar um shopping center por lesão causada a consumidor em tentativa de roubo em seu estacionamento utilizando argumentos de possibilidade de evitar o risco por parte do fornecedor[13]. Adotou-se, portanto, baseado no mesmo fundamento, um entendimento diametralmente oposto para o caso do estacionamento do shopping center em contraposição aos casos de assédio em transporte coletivo.
Qual é, afinal, a diferença desses dois cenários? Seria essa diferença aquela referente aos custos necessários para se estabelecer segurança adequada em um shopping center em contraposição às centenas de ônibus que compõem a frota de uma empresa? Se a diferença for esta, a teoria não só se afasta da responsabilidade objetiva pelo risco, que é tida como a aplicável a casos como esses, como se confunde com a teoria da responsabilidade subjetiva fundada em uma análise utilitarista, em que se imputa a responsabilidade pelos danos decorrentes de uma conduta ineficiente para a prevenção de danos, estabelecida pela “fórmula de Hand”[14], ou mesmo em que impõe-se a obrigação de reparar o dano ao agente que poderia evitá-lo pelo menor custo possível (cheapest cost avoider)[15].
Esses argumentos não são coerentes com a própria construção da teoria do fortuito interno/externo. Conforme observa Anderson Schreiber, a dicotomia fortuito interno/fortuito externo é uma forma de relativizar o potencial das tradicionais causas de interrupção da causalidade na medida em que submete sua aplicação a um juízo de pertencimento à esfera dos riscos empresariais da atividade econômica desempenhada[16]. Essa dicotomia, importada da doutrina francesa, teve ampla divulgação no Brasil a partir dos estudos de Agostinho Alvim[17]. Nas palavras de Fernando Noronha, a configuração de um fato excludente da causalidade exige, para além dos atributos da imprevisibilidade e da irresistibilidade, a característica da “externalidade”[18]. Nessa linha, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica ao compreender que somente o fortuito externo estaria apto a romper o nexo de causalidade, afastando a responsabilidade civil. Nos casos relativos ao fortuito interno, por se incorporarem ao risco contratual assumido, não afastariam o nexo causal. A análise passa a ser, portanto, única e exclusivamente acerca dos riscos que estão, ou não, envolvidos no contrato de transporte, deixando de ser relevante uma análise baseada na ideia de causalidade naturalística. Esse tipo de análise normativa só pode ser realizada em uma abordagem casuística, a partir do “romance em cadeia” estabelecido pelos tribunais nessa matéria, de acordo com uma análise contextual da relação social e econômica subjacente ao litígio[19].
Abstraindo todo o véu dogmática, percebe-se, no fim das contas, que a real divergência entre as duas Turmas da Segunda Seção do STJ refere-se à ponderação, baseada em uma noção um tanto quanto imprecisa de justiça distributiva, acerca de se o dano deverá ser suportado por quem, por azar, o sofreu, ou se, por outro lado, deverá ser ele redistribuído entre os envolvidos na comunidade de risco. Considerando que o assédio sexual é um risco inerente ao transporte coletivo em uma sociedade ainda assolada pela cultura do estupro, o dano resultante dessa violação deve ser inteiramente suportado pela vítima aleatória ou a companhia deve absorver parte do dano, pagando as respectivas indenizações e diluindo a despesa no preço da passagem? A questão, é claro, mostra-se dúbia, ou mesmo voluntarista. Isso porque não se tem por bem assentadas as concepções de justiça distributiva que animam as opiniões para um lado e para o outro. Nesse contexto, é pertinente um chamado à reflexão sobre os fundamentos, as visões de mundo, as ideologias subjacentes a cada uma das visões. Apenas por uma exposição honesta dos pressupostos jurídico-políticos subjacentes às concepções dos limites da repartição dos riscos do convívio social que se poderá compreender claramente o sistema de responsabilidade civil, possibilitando a formação de uma dogmática sólida, confiável e que dê a devida segurança e previsibilidade necessária aos agentes sociais a ela submetidos.
Notas e Referências
[1] INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO; INSTITUTO LOCOMOTIVA. Segurança das mulheres no transporte. 2019. Disponível em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencia-sexual/97-das-mulheres-disseram-ja-ter-sido-vitimas-de-assedio-em-meios-de-transporte/. Acesso em: 27 maio 2020.
[2] CÓDIGO CIVIL. Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
[3] CÓDIGO CIVIL. Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.
[4] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula 187. A responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva. Julgado em 13/12/1963, Imprensa Nacional, 1964, p. 96.
[5] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 13a ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 406.
[6] CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. [...] § 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: [...] III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
[7] Nesse sentido, confira-se a síntese no REsp 1.748.295. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.748.295/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ acórdão Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 13/12/2018, DJe de 13/02/2019.
[8] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1662551/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/05/2018, DJe 25/06/2018; SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1747637/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 01/07/2019; SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no AREsp 1349061/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/10/2019, DJe 18/10/2019.
[9] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 479, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 27/06/2012, DJe 01/08/2012.
[10] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1748295/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 13/12/2018, DJe 13/02/2019.
[11] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1662551/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/05/2018, DJe 25/06/2018.
[12] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1662551/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/05/2018, DJe 25/06/2018.
[13] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1269691/PB, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/11/2013, DJe 05/03/2014.
[14] SCHÄFER, Hans-Bernd; MÜLLER-LANGER, Frank. Strict liability versus negligence. In: FAURE, Michael. Tort Law and Economics. Cheltenham: Edward Elgar, 2009. p. 6.
[15] SCHÄFER, Hans-Bernd; MÜLLER-LANGER, Frank. Strict liability versus negligence. In: FAURE, Michael. Tort Law and Economics. Cheltenham: Edward Elgar, 2009. p. 16.
[16] SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 68.
[17] ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas conseqüências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 314.
[18] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva: 2013. parte II, tópico 8.4.2.
[19] DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jeferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 275-279.
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