A REPERCUSSÃO GERAL E O SOBRESTAMENTO DE PROCESSOS À LUZ DO ARTIGO 1.030, III, DO CPC  

28/07/2021

Ao mesmo tempo em que o Código de Processo Civil (CPC) permite aos Tribunais Superiores definirem uma tese repetitiva com a devida suspensão do trâmite dos processos que versem sobre a questão (art. 1.037, inc. II), a repercussão geral – instrumento processual que possibilita ao Supremo Tribunal Federal (STF) selecionar os Recursos Extraordinários (REs) que irá analisar, de acordo com critérios de relevância jurídica, política, social ou econômica – também pode paralisar o Judiciário (art. 1.035, § 5º).

A propósito, o Plenário do STF, ao julgar uma Questão de Ordem no RE 966.177/RS, decidiu que este poder conferido ao relator do processo-paradigma é discricionário, ou seja, não é automático e tampouco se trata de uma imposição legal ao relator do apelo extremo: “a suspensão de processamento prevista no § 5º do art. 1.035 do CPC não consiste em consequência automática e necessária do reconhecimento da repercussão geral realizada com fulcro no caput do mesmo dispositivo, sendo da discricionariedade do relator do recurso extraordinário paradigma determiná-la ou modulá-la”.

Lado outro, também encontramos no CPC a regra do art. 1.030, inc. III, que autoriza o responsável pelo primeiro juízo de admissibilidade do recurso extraordinário a sobrestar o processo. Confira-se:

“Art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá:  (...) III – sobrestar o recurso que versar sobre controvérsia de caráter repetitivo ainda não decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se trate de matéria constitucional ou infraconstitucional;”

Sem delongas, questiono: a expressão “caráter repetitivo” engloba o instituto da “repercussão geral reconhecida”? Melhor dizendo: poderia algum Tribunal de segunda instância determinar, à luz do art. 1.030, inc. III, do CPC, o sobrestamento de recurso extraordinário que lhe é submetido e que lhe traga controvérsia semelhante ao paradigma em que se reconheceu a existência de repercussão geral sem que o STF tenha determinado a suspensão de processos em âmbito nacional?

O art. 928 do CPC dispõe que são considerados “casos repetitivos” os incidentes de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os recursos especiais e extraordinários repetitivos, deixando de fora aqueles com repercussão geral.

Além disso, o art. 927 do CPC nada diz ser a repercussão geral uma tese de observância obrigatória, até porque esta função exercida pelo STF parece antes de jurisdição administrativa do que de jurisdição contenciosa; não resolve nenhuma questão de direito, mas só uma questão de fato: a existência, ou não, de repercussão geral, cuja particularidade de sua eficácia erga omnes conteria apenas um juízo de admissibilidade do recurso extraordinário.

Caso o legislador quisesse dar esta interpretação (de inclusão da “repercussão geral reconhecida” como um dos casos de “caráter repetitivo”), não teria ele dado à algum dos dispositivos citados o mesmo tratamento entregue à redação do inc. II do § 5º do art. 988 do CPC que dispõe expressamente ser inadmissível reclamação proposta para garantir a observância de “acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida”?

A doutrina, infelizmente, é silente neste aspecto. Os especialistas em suas obras comentadas sobre o dispositivo em foco (CPC, art. 1.030, inc. III) discursam apenas o evidente, isto é, de que “o presidente ou o vice, deve ainda sobrestar o processamento de recurso que versar sobre tese que já esteja afetada em regime de recurso repetitivo, recurso especial ou recurso extraordinário, para que se lhe dê o destino apropriado, depois que o paradigma for decidido (“retratação” ou considerar-se prejudicado o recurso – art. 1.030, III)” [1]. Nada dizem sobre a viabilidade de sobrestar o processamento de recurso que versar sobre tese de repercussão geral ainda não definida pelo STF.

Inobstante isso, a premissa no sentido de que a norma somente aproveita os processos repetitivos não parece ser a melhor exegese. Ao menos, este é o pensamento do ministro Dias Toffoli quanto a vexata quaestio.

Com efeito, vejamos alguns trechos do voto de sua relatoria proferido no Agravo Regimental na Reclamação 25.069/MG, publicado em 03/04/2017:

“(...) Entretanto, as pretensões i) de que sejam cassadas as decisões no AREsp nº 457.675/MG e ii) de que o Processo nº 10701082276232003 seja sobrestado no STJ a fim de aguardar a solução do julgado nesta Suprema Corte no RE nº 976.566/PA não merecem ser acolhidas.

É que a pendência de solução nesta Suprema Corte de matéria submetida à repercussão geral tem o condão, por lei, de sobrestar, na origem, os recursos extraordinários que versarem sobre controvérsia idêntica à do processo representativo da controvérsia (no caso, o RE nº 976.566/PA), nos termos do art. 1.030, III, do CPC.

(...)

Mais uma vez, reforço que o efeito legal automático do reconhecimento da repercussão geral é o sobrestamento na origem do recurso extraordinário que verse sobre matéria idêntica.

No caso do Processo nº 10701082276232003 (2066692-97.2007.8.13.0701), em consulta ao sítio do TJMG na internet, tem-se que foi negado seguimento tanto ao recurso especial (que resultou na interposição do AREsp nº 457.675/MG) como ao recurso extraordinário interposto concomitantemente naqueles autos, havendo notícia de impugnação dessa decisão por meio de agravo em recurso extraordinário.

Dessa perspectiva, não é possível conhecer da presente reclamação, uma vez que

a) É o TJMG, não o Superior Tribunal de Justiça, o órgão de origem no qual, sendo idêntica à matéria constitucional controvertida, deverá ficar sobrestado recurso extraordinário com agravo interposto no Processo nº 10701082276232003 (2066692-97.2007.8.13.0701), a fim de aguardar o julgado no RE nº 976.566/PA.

(...)” – Destaquei.

Semelhante é análise promovida no requerimento de suspensão no Recurso Extraordinário 817.338/DF, monocrática publicada em 20/04/2018:

“DECISÃO:

Vistos.

Por meio da petição STF n.º 76.687/2017 (doc. eletrônico nº 121), a União Federal pleiteia a suspensão do processamento de todas as demandas judiciais pendentes, individuais ou coletivas, que versem sobre a questão tratada neste recurso extraordinário, em todo o território nacional, requerimento esse feito com supedâneo nos arts. 1.035, § 5º do CPC e 328, caput, do RISTF.

A requerente alega que a suspensão do processamento de todos os processos pendentes que versem sobre a mesma questão é medida necessária para que se previna a existência de decisões discrepantes daquilo que o STF vier a decidir, necessidade esse reforçada pelo expressivo número de demandas repetitivas propostas contra a União com vistas a discutir o tema de fundo em debate nestes autos. Chama a atenção, ainda, para o relevante impacto financeiro das anistias concedidas, as quais, a depender da decisão desta Suprema Corte, poderão ser revistas e anuladas.

É a síntese do necessário.

Não se desconhece a existência de decisões monocráticas nas quais os respectivos relatores, entendendo que o art. 1.035, § 5º do CPC tem aplicação automática, ante o reconhecimento da repercussão geral, determinaram a paralisação do trâmite de todos os feitos, em todas as instâncias e fases, que versassem sobre questões semelhantes àquelas em discussão.

Meu posicionamento, contudo, vai na linha de que o reconhecimento da repercussão geral não implica, necessariamente, em paralisação instantânea e inevitável de todas as ações a versarem sobre a mesma temática do processo piloto.

De fato, a situação prevista art. 1.030, inciso III, do CPC, é distinta daquela delineada no art. 1.035, § 5º, do mesmo Codex, posto que, nessa segunda hipótese, inexiste sobrestamento imediato decorrente automaticamente da lei.

A redação do dispositivo - “o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento” - sem sombra de dúvida faz transparecer uma forte recomendação; mas, ainda assim, uma recomendação, não uma obrigação. Caso se desejasse o contrário, bastaria à lei enunciar que o reconhecimento da repercussão geral levaria à paralisação do trâmite de todos os processos pendentes relativos à questão em todo o território nacional, ou, então, dispor que o Relator, obrigatoriamente, determinará a suspensão. Não o fez, contudo. E ao assim proceder, conferiu a esse último, em verdade, a competência para analisar a conveniência e a oportunidade de se implementar tal medida.

Ao que parece, o Tribunal inclina-se a adotar tal orientação, vez que no julgamento da QO no RE nº 966.177/RS-RG, entendeu que “a suspensão de processamento prevista no §5º do art. 1.035 do CPC não é consequência automática e necessária do reconhecimento da repercussão geral realizada com fulcro no caput do mesmo dispositivo, sendo da discricionariedade do relator do recurso extraordinário paradigma determiná-la ou modulá-la.” (j. em 7/6/2017)

Dessa maneira, o responsável pela relatoria do paradigma determinará, sim, o sobrestamento; não o fará, contudo, por obrigação decorrente de lei, mas de acordo com o seu juízo de necessidade e de adequação, observando os argumentos apresentados pelas partes do feito, tudo no contexto de sua competência jurisdicional. (...)” – Destaquei.

Portanto, antes que se diga que o vocábulo “caráter repetitivo” apenas abrange os processos repetitivos, mister se fez mencionar as razões externadas nas decisões acima, pois, além de corroborarem com o decidido na Questão de Ordem no RE 966.177/RS, deixam clara a ideia de que, enquanto a suspensão prevista no art. 1.035, § 5º, do CPC depende de decisão judicial, a outra suspensão estabelecida no art. 1.030, III, do CPC – cuja ordem envolve àquelas com a “repercussão geral reconhecida” – opera-se ex lege, não havendo o presidente ou vice-presidente do tribunal local poder discricionário em sua aplicação.

Como se vê, os referidos dispositivos tratam de providências a serem adotadas, respectivamente, pelo relator do processo no qual a repercussão geral foi reconhecida no STF e pelo presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido. Ora, se ao reconhecer a repercussão geral da matéria e o ministro relator no STF não cogitar a suspensão dos demais processos em curso sobre o tema, disso se extrai a evidente opção por não interromper a tramitação dos feitos até a fase de interposição de recursos excepcionais – instante em que passa a ser das presidências ou vice-presidências dos tribunais de segundo grau a competência para a determinação de sobrestamento dos extraordinários.

Não faz sentido, dentro desta lógica, afirmar que a “repercussão geral reconhecida” não está abarcada como “caráter repetitivo”. Estaríamos diante de uma dicotomia injustificável, máxime por que o sistema recursal de competência dos presidentes ou vice-presidentes dos tribunais locais deve ser visto como uno, sobretudo se visa trazer segurança jurídica e implementar coerência a esse sistema.

Nesse sentido, Fernando da Fonseca Gajardoni, Luiz Dellore, André Vasconcelos Roque e Zulmar Duarte de Oliveira Jr. fazem semelhante afirmação ao ponderarem que uma das finalidades da suspensão dos processos é a busca pela segurança jurídica, evitando que sejam proferidas decisões divergentes sobre a matéria [2].

Ademais, ainda que se aceite que os recursos extraordinários, com repercussão geral reconhecida, não têm efeito vinculante obrigatório, servem eles como uma forma de orientação para todos os demais tribunais, advindo daí a importância do sobrestamento do extraordinário no tribunal em restou protocolizado.

De aduzir-se, em conclusão, que não há impedimento de o presidente ou vice-presidente do tribunal inferior sobrestar recurso extraordinário que verse sobre questão constitucional submetida à sistemática da repercussão geral, até o pronunciamento final do STF sobre a matéria.

 

 

Notas e Referências

[1] WAMBIER, T. A. A.; et al. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

[2] GAJARDONI, F. F.; et al. Execução e recursos - comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2017, p. 1.206.

 

 

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