A relação entre os poderes do Estado na abordagem midiática do afastamento de Renan Calheiros - Por Jefrei Almeida Rocha e João Marcelo Negreiros Fernandes

13/11/2017

INTRODUÇÃO 

O atual momento histórico brasileiro têm trazido ao grande público, tanto por meio das redes sociais quanto da grande imprensa, os debates e questionamentos acerca das ações e decisões relacionados ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário brasileiros.

No entanto, muito se discute sobre os fatos noticiados, ou divulgados, sem um cuidado necessário para evitar equívocos e más interpretações. Tal abordagem descuidada, contribuiu de sobremaneira para que a sociedade questionasse a forma como os três poderes se constituem, suas atribuições reais e suas responsabilidades em relação aos fatos e às consequências na trajetória histórica, econômica e política do nosso país.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece no Título I, Dos Direitos Fundamentais, no Art. 2º a divisão dos poderes do Estado brasileiro[1], além de reforçar a independência e a harmonia entre eles. Ao tratar da independência e da harmonia entre os poderes, Silva (2005) afirma: 

A independência dos poderes significa: (a) que a investidura e a permanência das pessoas num órgão do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais [...] A harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. (SILVA, 2005, p. 110). 

No Brasil, o poder estatal se manifesta pela distribuição das funções legislativa, executiva e judiciária entre órgãos não só independentes, mas também harmônicos e coordenados. Essa estrutura é cláusula pétrea da Constituição Federal, tendo em vista o que estabelece o seu artigo 60, § 4º: 

Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988, grifo nosso).               

A partir desse entendimento, concebe-se que a ação coordenada ou interação entre os  poderes resulta na consolidação do exercício efetivo do Governo. Vale destacar que, desde 2012, a imprensa nacional e internacional noticia reiteradamente uma “crise institucional” ao se referir a um clima de animosidade entre os poderes do Estado brasileiro, sendo uma ameaça à governabilidade da nação.

Por fim, ressalta-se que a Constituição Federal de 1988 dispõe ainda sobre a atuação de cada poder para fiscalizar os demais, como sistema de freios e contrapesos, cujo objetivo é o equilíbrio harmonioso para alcançar o bem da coletividade. Dessa forma, o Estado de Democrático de Direito é garantido, evita-se o desvio ou o mau exercício das funções e se mantém o equilíbrio entre os poderes estatais.

O Estado Democrático de Direito pode ser definido inicialmente como o Estado “juridicamente organizado e obediente a suas próprias leis” (MEIRELLES, 2007, p.62).  Nesse sentido, Dallari (2007, p. 30) afirma que o Estado de Direito é assim denominado quando “os poderes são rigorosamente disciplinados por regras jurídicas”. E Bonavides (2000, p.354) complementa ao afirma que o Estado de Direito, na moderna democracia ocidental, dar-se-á por meio da “prática e proteção das liberdades públicas por parte do Estado e da ordem jurídica”.

Para Dimoulis (2011, p. 276), o Estado de Direito é definido a partir de um sentido formal e de um sentido material. No formal, o Estado de Direito é um “tipo de organização dos Estados que exercem seu poder em concordância com normas jurídicas escritas e previamente estabelecidas”. Ou seja, o poder estatal sofre a limitação do Direito. Já no sentido material, essa organização dos Estados que “exercem seu poder em concordância com normas jurídicas que são escritas e previamente estabelecidas e satisfazem certas condições de adequação e justiça”.

Dessa forma, o Estado deixa de ser a manifestação de uma força bruta, um “monstro” como dizia Hobbes. Passa a exercer um poder limitado e regulamentado, permitindo que os indivíduos gozem de seus direitos de forma segura e estável. Em outras palavras, o Estado limitado pelo direito é um Estado garantidor dos direitos fundamentais, um Estado garantista. 

Essa doutrina clássica submete à lei o Poder Executivo e o Poder Judiciário. Cria-se, assim, o princípio da legalidade: as autoridades estatais só podem agir quando a lei previr e dentro dos limites por ela fixados. Aqui o Estado de direito toma a forma de um Estado legal (Gesetzesstaat; État légal). (DIMOULIS, 2011, p. 82) 

Em boa parte dos países que adotaram o Estado de Direito democrático, fizeram-no por meio de um Estado Constitucional, graças à confiança na garantia do exercício da justiça deste. Contudo, entende-se que o Estado de Direito não possui as propriedades necessárias para ser definido como o “Estado Justo”, mas “oferece um critério para avaliar a atuação das autoridades estatais, verificando se respeitam ou não os princípios da constitucionalidade e da legalidade.” (DIMOULIS, 2011, p. 84).

O presente trabalho tem como objetivo desenvolver uma análise acerca da abordagem da mídia sobre o afastamento do senador Renan Calheiros da presidência do Senado Federal em dezembro de 2016, à luz da revisão da literatura e dos conceitos consolidados pelos autores que serviram de embasamento teórico. De forma específica, objetivou-se esclarecer o conceito da Teoria de Separação de Poderes; descrever a organização dos poderes no Estado brasileiro; verificar as condições de garantia do Estado Democrático de Direito e analisar o tratamento que a mídia dedicou ao caso do senador Renan Calheiros, bem como à relação estabelecida entre os poderes estatais nesse episódio. 

METODOLOGIA 

Define-se esta pesquisa como qualitativa de cunho bibliográfico e documental. Bibliográfica pela capacidade de elaborar a postulação de hipóteses ou interpretações, mediante o entendimento acerca do problema analisado, que se efetivarão como ponto de partida para novas pesquisas e, assim, produzir conhecimento científico. (LIMA; MIOTO, 2007)

Nesse sentido, Gil (1994) complementa a partir da compreensão de que a pesquisa bibliográfica e documental detém a capacidade de alcançar um amplo escopo de informações, bem como promove a utilização de dados dispersos em inúmeras publicações e, auxiliando também na construção, ou na melhor definição do quadro conceitual que envolve o tema proposto neste trabalho.

Para Figueiredo (2007), a pesquisa documental vai além do conceito de documento impresso. Como fonte de pesquisa, ele pode ser escrito e não escrito - mídias visuais, mídias sonoras, fotografias ou pôsteres - que servem para munir o pesquisador com informações, indicações e esclarecimentos, elucidando alguns questionamentos e comprovando afirmações, de acordo com o interesse do pesquisador.

Oliveira (2007, p. 69) reforça essa diferença ao afirmar que pesquisa bibliográfica é um “estudo direto em fontes científicas, sem precisar recorrer diretamente aos fatos/fenômenos da realidade empírica”, mas chama a atenção para o fato de que “as fontes a serem pesquisadas” sejam “reconhecidamente do domínio científico”. Por outro lado, a autora trata a pesquisa documental como sendo caracterizada pela “busca de informações em documentos que não receberam nenhum tratamento científico, como relatórios, reportagens de jornais, revistas, cartas, filmes, gravações, fotografias, entre outras matérias de divulgação”.

A primeira etapa deste estudo se deu com a leitura de livros e artigos científicos da área jurídica com o foco em conceitos e definições acerca da separação dos Poderes no Estado Brasileiro e a importância dessa separação para a manutenção da democracia e da governabilidade do país. E na segunda etapa, realizou-se um levantamento de matérias publicadas nos canais de notícia UOL, O Globo, G1, Diário do Nordeste, O Povo, BBC Brasil, Portal IG, EBC Agência Brasil e Folha de São Paulo, entre os dias 05 e 09 de dezembro de 2016 abordando a temática do afastamento do senador Renan Calheiros da presidência do Senado Federal, bem como as decisões posteriores sobre esse processo, amplamente noticiado pela mídia.

Por fim, desenvolveu-se a análise do corpus da pesquisa mediante leitura crítica, imparcial e objetiva, para o melhor entendimento da sucessão de acontecimentos relacionados ao referido fato em análise. 

RESULTADOS E DISCUSSÃO 

O pedido de afastamento do presidente do Senado Federal, José Renan Vasconcelos Calheiros, foi realizado pelo partido REDE SUSTENTABILIDADE junto ao Supremo Tribunal Federal. O ministro Marco Aurélio de Melo deferiu liminar afastando Calheiros, mas com a ressalva de que afastou o parlamentar “não do exercício do mandato de senador, outorgado pelo povo alagoano, mas do cargo de presidente do Senado”.

A decisão do ministro Marco Aurélio se deveu ao fato de que Renan Calheiros havia se tornado réu e que o Supremo havia decidido em novembro do mesmo ano que um réu não poderia fazer parte da linha sucessória presidencial. De forma imediata, a decisão do ministro Marco Aurélio causou grande impacto em todos os setores da sociedade e a mídia passou a noticiar amplamente o caso.

Foram analisadas 42 notícias publicadas entre os dias 05 e 09 de dezembro de 2016 pelos veículos de comunicação UOL, O Globo, G1, Diário do Nordeste, O Povo, BBC Brasil, Portal IG, EBC Agência Brasil e Folha de São Paulo, como dito anteriormente. Entende-se que a mídia jornalística desempenha importante papel social, dentre suas funções está a de tornar compreensível, para o público em geral, as questões de maior complexidade, mas que  possuem relevância para a vida de todos.

Inicialmente, constatou-se que nenhuma das matérias esclareceu sobre as atribuições dos poderes envolvidos no caso. Nem sobre a harmonia ou a independência entre os três poderes, tampouco sobre o papel fiscalizador que desempenham.

O portal da BBC Brasil publicou a chamada “STF afasta Renan do comando do Senado: entenda motivos e possíveis implicações para governo Temer”. Percebe-se a clara referência aos três poderes, porém, no corpo da matéria a única referência sobre o princípio da separação dos poderes não apresenta nenhum esclarecimento sobre esse princípio, ou referência ao que determina o art. 2º da Constituição Federal sobre a harmonia e independência dos poderes estatais.

Observados os conceitos dados por Dallari (2007), Bonavides (2000) e Dimoulis (2011) acerca do Estado Democrático de Direito, compreende-se que o Brasil deve ser assim definido e, por isso, suas instituições e poderes “exercem seu poder em concordância com normas jurídicas que são escritas e previamente estabelecidas” (DIMOULIS, 2011, p. 276). Mas para a mídia, o desacato à decisão judicial cometido por Renan Calheiros, ao permanecer na presidência do Senado, figura como uma disputa por poder ou pela manutenção dele. A página de notícias “Último segundo” do portal IG destaca a fala do ministro Marco Aurélio. 

O relator da ação e autor da polêmica decisão liminar, Marco Aurélio Mello, ironizou Renan ao iniciar sua fala. "Faço justiça que ele [Renan] não me chamou de juizeco", disse o ministro em alusão à uma frase disparada por Renan sobre ação contra a Polícia Legislativa do Senado. "Tempos estranhos vivenciados nesta sofrida República"[2]

Destaca-se a matéria da Folha de São Paulo do dia 05 e a do dia 07 de dezembro, onde dois fragmentos textuais foram tratados de forma indiferente pela mídia, mas que possuem um grande peso jurídico. O primeiro na fala de Marco Aurélio Mello, quando afirmou que a permanência do senador na cadeira da presidência do Senado significava comprometer a segurança jurídica do Estado. E o segundo, mais contundente, foi a fala do ministro Luís Roberto Barroso que considerou a decisão de Renan Calheiros um "crime de desobediência ou golpe de Estado". Novamente a imprensa não atentou para a seriedade do fato, e nem se preocupou em esclarecer os preceitos envolvidos.

Por fim destaca-se o texto  “Credibilidade em xeque”[3] do jornalista e colunista Merval Pereira, publicado no dia 09 de dezembro de 2016 na página do O Globo. Ele aborda o desacato de Renan como “uma demonstração de que há ainda no país quem esteja imune às penas a que os comuns dos mortais estão sujeitos”, indo de encontro ao que Dimoulis (2011, p.84) afirma sobre o Estado de Direito ter ferramentas para “avaliar a atuação das autoridades estatais, verificando se respeitam ou não os princípios da constitucionalidade e da legalidade”. Merval Pereira ainda escreve que “a maioria da opinião pública está convencida de que houve um acordo político para salvar Renan”. E completa: “em troca, ele tiraria da pauta, o que realmente aconteceu, o projeto sobre abuso de autoridade, e não mais mexeria nos supersalários do Judiciário”.

Tal afirmação de imensa gravidade e extremamente preocupante. Caso seja verdadeira, a relação entre os poderes que deveria se pautar pelo que rege a Constituição passou a ser regida por interesses de classe, corrompendo a harmonia dos poderes e do controle legal de suas ações. Por outro lado, caso não seja verdadeira, a mídia de forma leviana criou uma situação que ameaça a imagem das instituições públicas e dos poderes do Estado. Em ambos os casos, a simples suspeição das relações institucionais já significa uma preocupação para a manutenção do Estado de Direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estado de Direito e a separação dos Poderes vêm sendo amplamente discutidos na mídia nacional. Por vezes esse debate alcança a população que, por ter na mídia uma formadora de opinião, acaba por vezes em não questionar o que é noticiado.

De forma óbvia, entende-se que a mídia realiza um serviço de ordem social e essencial à sociedade. Também observando a abrangência de sua atuação é preciso analisar de que forma conceitos tão importantes para nossa democracia e para a manutenção do Estado de direito estão sendo abordados e analisados.

Julga-se que o esclarecimento de maneira tangível ao grande público torne a participação popular mais efetiva e fortaleça de sobremaneira nossas instituições democráticas. Por outro lado, a abordagem inadequado das temáticas pode passar uma sensação de insegurança jurídica, fazendo com que a nação caia na descrença dos princípios constitucionais de nosso país, cuidado que não foi tomado pelos meios de comunicação analisados no episódio do afastamento do senador Renan Calheiros

Dessa forma, considera-se que a abordagem de todo o episódio político-jurídico analisado neste estudo foi abordado de forma inadequada pela mídia, causando desconfortos, erros interpretativos e uma sensação de insegurança jurídica em nosso país. Acredita-se que os resultados encontrados nesta pesquisa fomentem outros estudos para dirimir ainda mais as dúvidas sobre o papel da mídia no cenário político, bem como sobre a imparcialidade da narrativa midiática. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 10ª ed, 2000.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. Saraiva, 2007, p. 31.

DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 4ª ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, SP. 2011.

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1994.

LIMA, T. C. S. de; MIOTO, R. C. T. Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 10, n. spe, p. 37-45. 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802007000300004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 20 de julho de 2017.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ª Edição. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. Malheiros Editores. São Paulo, 2007.

OLIVEIRA, M. M. Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis, Vozes, 2007.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros,       2005.

[1] BRASIL. Constituição Federal. Art. 2º - São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

[2] Portal IG. Disponível em <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2016-12-07/stf-renan-calheiros-afastamento .html>

[3] Pereira, Merval. Credibilidade em xeque. O Globo. Disponível em <http://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/credibilidade-em-xeque.html>

 

Imagem Ilustrativa do Post: Sen. Renan Calheiros // Foto de: PMDB Nacional // Sem alterações

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