A Reforma Trabalhista e a Litigância de Má-Fé

11/02/2020

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

A liberdade humana é ampla e, por isso mesmo, pode ser concretizada para fins nobres – e quase sempre o é. Outras vezes, o seu exercício é concretizado para objetivos não tão altaneiros. Bem por isso, o Direito busca regular a atuação das pessoas conforme padrões socialmente exigidos, para o fim de determinar que ajam segundo a boa-fé e, nessa esteira, pune aqueles que incorrem em má-fé. Em razão disso, os estudos sobre esse instituto (ou princípio, ou valor – sua caracterização é extensa) tem sido profícua, especialmente com o influxo provocado pelo Código Civil de 2002.

Não se pretende apresentar de forma mais dogmática a boa-fé, pois isso se afastaria da proposta da coluna e, ademais, exigiria um espaço imensamente maior. Pretende-se apenas trazer alguns elementos sobre a incidência do reverso da boa-fé, a má-fé, no processo do trabalho, especialmente tendo em vista o regramento conferido pela Lei nº 13.467/2017, que provocou diversas e intensas alterações no plano das relações trabalhistas.

Um processo judicial, além de todo o seu conteúdo técnico e finalístico, consiste em um ambiente no qual a atuação das pessoas é, quase sempre, marcada pela existência de interesses antagônicos, o que exige uma atuação segundo determinados parâmetros de eticidade, sob pena de se admitir a violação da esfera jurídica da outra parte; além disso, há um interesse público a resguardar-lhe a higidez. Assim, no processo exige-se uma atuação em conformidade com a boa-fé, punindo-se condutas que sejam violadoras de determinados parâmetros; enfim, busca-se increpar a litigância de má-fé.

Desta forma, é correto afirmar que as regras sobre a lealdade processual decorrem não apenas de uma necessidade humana, mas correspondem à compreensão de que o processo não deve ser um espaço de vale tudo.

Tradicionalmente, quando se discutia a litigância de má-fé no processo do trabalho, juízes e advogados recorriam ao processo comum para aferir as hipóteses, critérios e consequências da atuação das partes.

Todavia, a Lei nº 13.467/2017, que realizou uma intensa reforma trabalhista, trouxe para o âmbito do processo do trabalho as mesmas regras fixadas no processo civil, salvo duas exceções, como se vê no art. 793-A da CLT: a) nos processos em que o valor da causa seja irrisório ou inestimável, a multa no processo civil será de 10 (dez) salários mínimos, ao passo que no processo do trabalho será o equivalente a 2 (duas) vezes o valor do teto da previdência social, o que afasta a pecha de inconstitucional a previsão do CPC; b) no processo do trabalho podem cometer litigância de má-fé não apenas as partes (como o é no processo civil), mas também as testemunhas e, como pensamos, os informantes.

Um dos aspectos para os quais se pretende chamar a atenção diz respeito à fixação de novos limites para a chamada “integração normativa”, técnica que consiste em recorrer, nos casos de falta de normas que regulem uma dada situação fática, as normas destinadas a regular outra situação fática, desde que haja uma relação de semelhança essencial. Essa integração se dá por meio da técnica da analogia.

Assim, no processo do trabalho, por bastante tempo recorreu-se à analogia para punir a litigância de má-fé tendo em vista a falta, neste ramo do direito, de normas que regulassem tal tema, situação que deixa de existir tendo em vista a regulação expressa realizada pela CLT.

Dessa premissa decorrem algumas consequências no plano dos recursos trabalhistas.

Com efeito, o novo texto da CLT estabelece que é litigante de má-fé aquele que “interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório”. Os recursos que são qualificados como “protelatórios” têm como objetivo não a busca da juridicidade ou adequação da decisão tomada, mas sim o atraso na marcha processual, o ganhar tempo com recurso sem razão (inclusive, a hipótese de submissão ao mesmo julgador para a reapreciação do tema, o que é expressamente vedado pelo ordenamento jurídico – por isso, a possibilidade punição àqueles que, em tese, têm interesse em uma tramitação processual mais célere). Daí a correta opção legal pela punição desses recursos.

Deste modo, uma vez que a CLT, por meio da reforma proporcionada pela Lei nº 13.467/2017, passou a contar com disciplinamento expresso no tocante à interposição de qualquer recurso que seja qualificado como protelatório, aplicar-se-ão essas normas estabelecidas na legislação processual trabalhista. Não há, portanto, mais espaço para que se possa recorrer à analogia como forma de realizar a integração normativa.

O processo comum convive com a regra geral de increpar os recursos protelatórios (CPC, art. 80, VII). Mas estabelece hipóteses nas quais determinados recursos, por razões distintas, contam com um tratamento distinto e específico: a) há previsão de multa de até 2% do valor da causa para a interposição de embargos de declaração “manifestamente protelatórios” (CPC, art. 1026, § 2º); b) a interposição de agravo interno “manifestamente inadmissível ou rejeitado em votação unânime” enseja multa de 5% do valor da causa.

Se antes da Lei nº 13.467/2017 havia espaço para a aplicação dessas regras para esses recursos tendo em vista a omissão da CLT. Após a reforma trabalhista essa situação deixou de existir, o que exige a aplicação da regra expressa contida no processo do trabalho. Nesse particular, podem ser extraídas algumas consequências quanto à aplicação da sanção processual: uma primeira, (a) no tocante aos embargos de declaração, (a.1) exige-se tão-somente que eles sejam reputados como “protelatórios”, não mais se cogitando de uma conduta “manifestamente”, como no processo comum, além do que (a.2) a punição por litigância de má-fé não mais será de 2%, mas sim em percentual superior a 1% e inferior a 10% do valor da causa, como estabelece o art. 793-C, “caput”, da CLT; da mesma forma, (b) no caso de agravo interno, (b.1) não se exige que ele seja “manifestamente inadmissível” ou rejeitado à unanimidade, mas sim que apresente um caráter protelatório, ao passo que a (b.2) segunda alteração importante neste particular consiste no percentual da multa, não mais de 5%, mas superior a 1% e inferior a 10%. 

Ou seja, nos termos da Lei nº 13.467/2017, a interposição de qualquer recurso que receba a qualificação de protelatório enseja a multa prevista no art. 793-C da CLT, não mais aquelas previstas no CPC.

Um outro aspecto que envolve o tema da litigância de má-fé diz respeito aos seus sujeitos ativos.

Novidade expressa (art. 793-D, CLT) consiste na aplicação da multa por litigância de má-fé à testemunha que intencionalmente alterar a verdade dos fatos ou omitir fatos essenciais, o que exige o caráter subjetivo (intenção) e circunstancial (fatos essenciais) dessa conduta. Ainda que se trate de uma tentativa de moralização processual, na prática é mais uma tentativa de dificultar o acesso ao Judiciário por parte dos trabalhadores, pois, sabidamente, a prova testemunhal é o principal, quando não o único meio de prova de que dispõem, ao passo que o empregador detém outros meios de controle da atividade do empregado. Bom se registre que a inovação legal não exclui o crime de falso testemunho (art. 342, CP), sujeitando-se a testemunha às duas censuras.

É possível indagar se o informante pode ser punido com a multa prevista no art. 793-D da CLT. O informante é uma pessoa que vem a juízo prestar informações sobre fatos relativos ao objeto litigioso. Não se lhe autoriza, portanto, a mentira. Ainda que não configure crime de falso testemunho, a omissão de informações essenciais ou a alteração da verdade pelo informante viola a dignidade da Justiça, atraindo a increpação legalmente fixada, uma vez que o art. 77 do Código de Processo Civil estabelece que “são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo: I - expor os fatos em juízo conforme a verdade”. Ou seja, impõe-se um dever processual também ao informante cujo depoimento seja admitido no processo, qual seja, o dever de dizer a verdade, cuja inobservância atrai o instituto do “contempt of court”.

Não pode o juiz impor à testemunha e ao informe as cominações por litigância de má-fé sem lhes oportunizar a manifestação. Não se veda a imposição de ofício, e isto a própria lei assim prevê; o que não se admite é uma decisão surpresa, pois contrariaria os artigos 9º e 10 do CPC. Assim, vislumbrando a incursão em alguma daquelas condutas vedadas, o juiz concederá prazo para que a parte possa manifestar-se sobre possibilidade de eventual increpação, indicando-lhe especificamente qual a conduta da parte subsume àquelas tipificadas como má-fé. Essa imposição decorre da concepção do contraditório substantivo ou material, em razão da qual a parte deve participar efetivamente, com poder de influência real, na construção do ato decisório, de forma que os seus argumentos devem ser apreciados, até mesmo como forma de legitimar a decisão à qual o julgador chegou.

9. Para que possa ser aplicada a multa prevista no art. 793-D, é necessário que se instaure procedimento em face da testemunha ou do informante, cabendo ao julgador oportunizar-lhe defesa. Entendemos que deve ser de 5 (cinco) dias o prazo para defesa por se tratar daquele, em regra, fixado no âmbito processual trabalhista. Além disso, caberá ao juiz indicar quais os fatos que caracterizariam a alteração ou omissão dolosa para que tenham condições de manifestar-se de forma efetiva, novamente, com fulcro no contraditório substancial.

 

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