Tema mais do que atual, sempre importante, polêmico e demasiadamente complexo, de novo, repercute na sociedade brasileira o intento de reforma do modelo previdenciário nacional sob os mais variados argumentos, dentre eles e com furor midiático a frágil situação fiscal do país que encontra no equilíbrio previdenciário a solução para todos os males.
Inevitavelmente ela virá, surgirá através do debate parlamentar, ainda que superficial e distante do necessário envolvimento com os atores sociais, a revelia das vozes da sociedade e da comunidade jurídica especializada, sequer convocada para a formação de suas bases.
Não se pode esquecer que como toda política pública de promoção e integração social, evidente que o trato previdenciário merece ajustes, aperfeiçoamento, atualização e robustas mudanças, para bem amoldar as circunstâncias contingenciais dessa geração, como, por exemplo, o envelhecimento da população, dentre outros fenômenos sociais, econômicos e culturais.
De outro lado, há quem defenda que sua arrecadação deficitária ano a ano abala sistemicamente as demais contas financeiras da gestão pública e compromete o exercício estatal, com riscos futuros das garantias de manutenção da proteção previdenciária, fazendo com que a reforma seja algo primordial e que deva ocorrer, de imediato, custe o que custar.
Certamente que a previdência nacional merece e aguarda uma reforma, uma atualização de suas bases e o necessário aprimoramento das regras para o aperfeiçoamento da proteção.
Aqui o ponto, que desejamos e esperamos.
É que não se vê a divulgação de metas reformadoras que impliquem no fomento de uma educação previdenciária, ou ainda, que narrem os direitos e deveres daqueles menos assistidos, convidando-os a proteção e a uma cobertura estatal há muito pensada, especialmente a partir do paradigma de 1988.
Infelizmente, o que se tem visto são tratativas de redução da proteção, com o desaparecimento de direitos, endurecimento de regras, inversão de valores e outras formas de relativizar esse autêntico e importante direito social, por excelência, tudo para obter equilíbrio financeiro e atuarial, como se fossem esses os centrais alvos da estrutura previdenciária tupiniquim.
Em vozes há muito cadenciadas na sociedade brasileira, busca-se, na verdade, a diminuição da proteção e o aumento sistêmico da arrecadação previdenciária, enfraquecendo assim o modelo de previdência pública e o seu alcance, na contramão do que assentou o texto constitucional com referência a “universalização da cobertura e do atendimento”.
Também, que vetores máximos do texto constitucional como a dignidade humana, o valor social e o primado do trabalho, dentre outros são habitualmente esquecidos e aviltados quando a reforma da previdência ganha notoriedade coletiva a partir de uma perspectiva unicamente econômica.
De outro lado, a preocupação financeira e atuarial sabidamente perfaz o núcleo estruturante da previdência brasileira, tal qual preconizado em seu artigo 201, dando direcionamento ao gestor e informando toda a sociedade que as bases econômicas conferem vida futura entre as gerações no que pertine a política previdenciária.
Acontece que usualmente essa premissa ganha papel de destaque e se coloca como o ponto central do debate, afastando a natureza social que perfaz qualquer modelo previdenciário dos mais variados países que escolheram o constitucionalismo do bem-estar como diretriz fundante.
Não se nega que a higidez financeira seja irrelevante ou ainda diminuída no interior desse debate, aliás, esse também é o dizer constitucional para a existência do sistema, porém, de outro lado existe o ideário político de integração social, protetivo e que deve tutelar aquele filiado acometido de certas necessidades, cuja filiação autoriza a intervenção estatal em seu favor.
Neste sentido, estruturas outras para combater a informalidade poderiam fazer parte de qualquer pacote de reforma da previdência, trazendo a proteção estatal e conferindo dignidade aos menos assistidos que ante a dificuldade de alocação do mercado de trabalho e as burocracias do sistema, preferem o sustento por outros meios, com grandes repercussões jurídicas dentro do contexto coletivo quando ativos em um sistema protetivo inativo.
A bem da verdade pouco se fala a respeito, bastando que as tratativas de inserção a programas sociais de inclusão previdenciária fossem ampliadas, estruturadas e fortemente divulgadas.
Outro aspecto estruturante e que elevaria e muito a cidadania previdenciária, se refere a disseminação da política de educação previdenciária, com informes pedagógicos sobre a definição de suas bases, a forma e o conteúdo da proteção e ainda os modos de inserção a esse programa constitucionalmente pensado, cuja proteção, por exemplo, pode ocorrer ao estudante a partir de seus 16 anos.
Em termos de confiabilidade, merece a reforma também trilhar para esse alvo, vale dizer, dar segurança a seus partícipes.
É que as oscilações existentes, como por exemplo, defasagem salarial, a falta de equivalência econômica, as constantes mudanças da política cambiária, a discrepância dos critérios de reajustes, a complexidade do sistema de cálculos e outros fatores, não conferem credibilidade da previdência pública, fragilizando assim sua existência e extensão em solo pátrio, ainda que o pensamento constitucional firmado em 1988 apregoe o oposto, vale dizer, dar amplitude e universalização na cobertura e atendimento.
Também, nesta seara, sob o mesmo argumento da higidez financeira, a sua ausência, ou, de outro modo, a falta de clareza das informações a respeito.
Neste aspecto, duvidosa a gestão previdenciária que não apresenta números e contas claras acerca do famoso déficit e ao mesmo tempo, além de criar habitualmente diversas renúncias previdenciárias, abre mão de crédito líquido e certo quando não faz planejamento de combate aos grandes fraudadores nacionais.
Aliás, em sentido oposto, robustas e fundamentadas são as vozes de que esse déficit previdenciário não existe e que serve, exclusivamente, como argumento midiático para o controle e uso discricionário das receitas da Seguridade Social, cujo sistema engloba as contribuições previdenciárias e sua escondida rentabilidade serve a outras destinações.
A economista Denise Gentil, em sua tese de Doutoramento em Economia defendida em 2006 pela UFRJ, apresentou uma análise financeira da Seguridade Social no período de 1990 a 2005 e concluiu que:
As informações conduzem a uma conclusão óbvia: o sistema de seguridade social apresenta receitas que têm bases amplas e diversificadas e é financeiramente sustentável, apresentando grande potencial para a expansão de gastos sociais.[1]
Também, a ANFIP – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil habitualmente demonstra o superávit previdenciário, como pode ser destacado do seguinte parecer de 2006:
Apesar de integrar um orçamento constantemente superavitário, o discurso daqueles que buscam desconstruir as justas conquistas dos trabalhadores brasileiros é o de que a Previdência Social é altamente deficitária.[2]
Assim, se verifica que mesmo o midiático déficit é cientificamente não demonstrado, inexistindo motivo para perseguir uma reforma somente por este prisma.
De outro lado, o controle e a gestão do popular benefício de prestação continuada, o BPC/LOAS que não é previdenciário e se vale da estrutura autárquica de modo atípico para existir, quando na verdade deveria ser gerido por outros setores da administração pública e deixar a previdência com suas típicas atividades constitucionalmente previstas.
Como aqui sinteticamente demonstrado, não basta endurecer as regras de acesso ou ainda excluir direitos para que as bases da previdência permaneçam hígidas com o tempo.
De novo, em outro exemplo, importante destacar a possibilidade de ações de cobrança e ações regressivas diversas para recuperação de crédito previdenciário, realizando um papel educativo, preventivo, fiscalizador, como o que acontece diariamente nas situações em que a contribuição previdenciária descontada do empregado são apropriadas pelo empregador e essa esperada cobrança nunca ocorre, seja pelo caminho administrativo, ou pelo viés judicial, preferindo a autarquia transferir tal encargo ao beneficiário, sabidamente hipossuficiente, que deverá comprovar o salário-de-contribuição e assim revisar a renda mensal de seu benefício.
Deveria a proposta de reforma primar pela qualidade, pela disseminação das informações de acesso, da educação e da política previdenciária, a fim de conferir cidadania e impactar a sociedade de maneira substancial com uma cultura que ao mesmo tempo confira direitos, igualmente promova sensibilidade e solidariedade quanto aos deveres.
Sobre a necessidade de ampliação e fomento dessa cultura previdenciária Gustavo Krause assim escreveu:
A cultura previdenciária vai além da cultura financeira. Passa pela proteção pessoal e das famílias. É um movimento cultural que leva décadas, e que deveria começar ainda na escola. Na Europa, por exemplo, a previdência é compulsória. Finalmente, olhar em direção ao futuro significa compreender que as nações progridem porque trabalham muito, estudam muito, poupam e investem muito; significa reconhecer, na expressão de Eduardo Giannetti, o valor do amanhã que é superar o dilema de "por mais vida nos nossos anos ou mais anos nas nossas vidas”.[3]
E aqui se estará realizando a verdadeira e genuína reforma, de qualidade, inclusiva, integrativa, justa, equilibrada e universalizada, a que precisamos e esperamos, tal qual desenhou o legislador maior.
Notas e Referências
[1] GENTIL, Denise Lobato. A Política Fiscal e a Falsa Crise da Seguridade Social Brasileira – Análise financeira do período 1990-2005. 2006. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro – Instituto de Economia, Rio de Janeiro.
[3] Jornal Valor Econômico ( 29 de julho de 2013).
Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice - Frankfurt Version // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações
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