A reforma agrária é decisiva no caminho democrático

25/03/2023

Coluna Por Supuesto

Ao tratar dos mais variados temas constitucionais, não só no Brasil como em qualquer canto da América Latina, e em particular ao abordar a reforma agrária, há implícita uma caracterização da propriedade. Isso porque o sistema no qual se desenvolve a eficácia e a efetividade dos direitos parte, precisamente, da consagração histórica desse instituto, que está ligado diretamente à renda e à concentração do poder.

Por isso, e como destaca Mészáros, autores como Marx em “O Capital” quando focam no surgimento da renda, explicam e ressaltam a importância não só de um excedente suficientemente amplo de força de trabalho, mas também da necessidade da produtividade natural da terra. [1]Entretanto, e eis aqui a questão que mais deve interessar dentro do campo estrito da dogmática, essas duas condições de possibilidade não criam renda: a renda somente ocorre pela coerção, que faz da possibilidade uma realidade. E logo Marx parte para uma avaliação sobre como a tradição e o costume, dentro do metabolismo social, originam a lei, que é onde reside a coerção. Em resumo, a questão da propriedade sobre a terra passou (e passa) pela coerção patente, um exercício de força que se revela num domínio espacial e logo se transforma, nas diversas formações histórico sociais, em coerção legalizada.

Destarte, no campo normativo legalizar - e, desde logo, constitucionalizar - a propriedade sobre a terra é um imperativo para quem exerce esse domínio, o que permite, em contrapartida, afirmar a posse e deter o direito de expulsar ao outro. Sob tais premissas fáticas de dominação a propriedade é o descanso do sistema reproduzido e para o Direito, o motor no qual se edificou praticamente todo o articulado civil (bens, contratos, obrigações, família e sucessões) de Planiol, Ripert e Josserand, dentre outros clássicos.

Vale registrar que não fosse pela luta política, econômica, ideológica e jurídica, que originou dentro dos marcos do constitucionalismo de começos do século passado a formulação da função social da propriedade, estaríamos ainda na propriedade absoluta como concebida durante o tempo da Revolução Industrial ou pelos revolucionários liberais franceses.

De fato, em algum momento a terra, é dizer, aquilo de onde o homem surge, se enraíza, vive, convive, e produz, se tornou propriedade, e não só propriedade, senão propriedade legalizada.  Como aconteceu no Brasil com a Lei de terras de 1850, quando foram registradas legalmente e, portanto, protegidas pelo Direito construído na época, todas as antigas ocupações de terras oriundas da velha administração da Capitanias hereditárias. O resultado é que, num país dividido entre homens e mulheres livres e homens e mulheres escravizados, logo povoado por migrantes trabalhadores e com um lastro histórico de indígenas submetidos violentamente a imposições coloniais, a estrutura fundiária brasileira, legalizada e logo constitucionalizada a partir da garantia da propriedade, tem desde então como característica a concentração da propriedade sobre a terra. O processo foi perverso, colocando o Direito a serviço dessa concentração que já existia desde antes do Brasil independente.

Por isso, não é de estranhar que o IBGE, na 2ª edição do Atlas do Espaço Rural brasileiro, publicada no 2020, com dados concretos que incorporam resultados do Censo Agropecuário 2017 e de outras pesquisas, como Regiões de Influência das Cidades - Regic, Pesquisa da Pecuária Municipal - PPM e Produção Agrícola Municipal - PAM, às quais foram agregados outros dados provenientes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra e da Fundação Nacional do Índio – Funai – (reconhecendo que não tem a pretensão de abarcar todos os aspectos e questões envolvidos na complexa realidade rural brasileira, mas captando o movimento histórico e contextualizando o agrário no Brasil contemporâneo) mostre claramente o aumento da concentração da propriedade da terra.  [2]

Pela leitura do Atlas, quase metade da área agrícola é ocupada por 1% das propriedades. O Brasil tem 5. 073.324 estabelecimentos, dos quais 51.203 tem mais de mil hectares. Se trata de 47.6% das terras usadas para a produção agropecuária. Os pequenos proprietários, que possuem até 10 hectares, tem só 2.3% do total. O paralelo entre o censo de 2006 e o censo de 2017 revela que no primeiro se demonstrava a concentração em 45% das terras, e logo que houve um aumento neste último de 2,7 %. Há ainda, outra questão que demonstra o relatório: a queda da agricultura familiar no período em 9,5% desde o censo de 2006. Enquanto o agronegócio reporta um aumento de 702 mil postos de trabalho, a agricultura familiar perdeu 2,2 milhões de trabalhadores.

Mas, caminhando para a Constituição Federal de 1988, para quem observa dentro do conjunto de constituições latino-americanas, o que primeiro chama a atenção é que, quando se trata da propriedade urbana, no artigo 182 e seus parágrafos, o constituinte começa propondo o traçado de uma “política de desenvolvimento urbano” a ser executada pelo Poder Público municipal; logo se refere ao plano diretor, a ser aprovado pela Câmara Municipal, e só depois aborda a função social e a desapropriação até concluir com a desapropriação sanção.

Entretanto, quando o constituinte avança na “política agrícola e fundiária e da reforma agrária”, ele já começa, no primeiro artigo que trata do tema - artigo 184 – tratando, de forma direta, sem ambages nem dúvidas: “Compete á União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (...)”. O que impressiona é que, como uma manifestação dos níveis de dificuldades a enfrentar em um e outro tema, a questão da reforma agraria sabidamente atinge um bloco de poder social dominante para o qual a força normativa da Constituição vai ser quase que permanentemente submetida a teste.   

Leio, há dois dias, em um portal de notícias que no Estado da Bahia “fazendeiros montam células para enfrentar “Abril Vermelho” do MST. A notícia segue, informando que existe uma planilha chamada “Invasão zero” onde constam 800 fazendeiros listados dos 417 municípios baianos, e segundo um dos organizadores, que expressa veemente que ninguém está armado e que derrotarão aos invasores na base da pressão numérica, é dizer, por cada membro do MST eles colocaram 5, “o dia 1º de abril é chave. O MST chama de Abril Vermelho porque gostam de deflagrar invasões. Faremos vigília. No governo passado, eles pararam porque o governo não deixava. Então, estamos nos organizando e esse movimento está ganhando corpo e dimensão nunca antes vista. É uma bomba pronta para explodir porque pode haver conflito na hora de retirar os invasores”.

A questão é preocupante. Nos últimos 6 anos houve um aumento expressivo da violência contra os trabalhadores do campo. A publicação “Caderno de Conflitos no campo 2020” da Pastoral da Terra demonstra que a violência se incrementou e é a maior em 35 anos. No total foram registrados 1.576 conflitos por terra em 2020, com 171. 625 famílias afetadas.

Dentro dos marcos do Direito, da sua filosofia, do Constitucionalismo e das – como sempre é bom ressaltar – intenções constitucionais de 1988, que servem de parâmetros interpretativos, entre discursos protofascistas, liberais de araque e confusões críticas, o fato relatado é bastante relevador do Brasil ao qual assistimos. 

Chamam a atenção algumas declarações do organizador da planilha, dentre elas que resulta inimaginável não pensar na possibilidade de conflito armado. Até porque , nas palavras do organizador: “É uma bomba pronta para explodir” e porque, “ pode haver conflito na hora de retirar os invasores”.  

Por outro lado, não se escutava por parte dos fazendeiros no governo anterior, que eu me lembre, nenhuma exigência para que o Ministério que deve tratar da questão agrária fosse reorganizado ou tivesse algum posicionamento sobre o tema da reforma. Na verdade, fazendo um pouco de história, o Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA – foi criado no ano 2000 e extinto no 2016 durante o governo Temer, quando passou a ser apenas uma Secretaria Especial dentro do Ministério de Desenvolvimento Social, revelando o pouco interesse em enfrentar os temas como a agricultura familiar e especialmente a falta de atenção com as dinâmicas e interesses em confronto dentro do campo brasileiro.  Agora, quando este ano, desde o mês de janeiro, se organiza novamente o Ministério sob o nome de Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar a questão reverte em que fazendeiros parecem entender o fato como uma espécie de ameaça ou pelo menos, como um governo que lhes é hostil e toma partido.  

Preocupa que, como demonstram os dados do IBGE, exista uma reprodução, constante, dos níveis de concentração da propriedade da terra que está de alguma forma atrelada a formas de violência antagónicas a constituições e leis dentro não só do Brasil, mas da América Latina. Especialmente porque nas condições atuais, a reforma agrária, a produção agrícola, o combate à pobreza e à fome, a efetividade dos direitos fundamentais dos trabalhadores do campo e o cuidado do meio ambiente, estão ligados constitucionalmente, tendo em vista a interdependência de direitos, que deve ser, no caso, o norte no momento da interpretação e aplicação do texto normativo constitucional pelo Poder Público.

Não faz falta ser um estudioso do tema no Brasil para entender que algo anda mal num país no qual a insegurança alimentar atinge diretamente mais de 30 milhões de pessoas e o agronegócio apresenta índices elevadíssimos de produção e lucros. Há que inverter a equação. Fortalecer a agricultura familiar, que está demonstrado reduz a pobreza rural e a fome nos campos; aumentar a produção de alimentos, fornecendo créditos e mercado seguro para os trabalhadores rurais são imprescindíveis para superar a estagnação e o atraso destrutivo dos últimos anos. Uma política agrícola planejada conforme as diretrizes constitucionais, inclusive com pesquisa e assistência aos trabalhadores, passa pela democratização da propriedade sobre a terra, que é também, por supuesto, parte da democracia em construção.   

 

Notas e referências

[1] Estrutura Social e Formas de Consciência. II. São Paulo: Boitempo. 2011. P. 92.

[2] Ver: https://www.ibge.gov.br/geociencias/atlas/tematicos/16362-atlas-do-espaco-rural-brasileiro.html?edicao=29531&t=acesso-ao-produto.

 

 

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