A recuperação de crédito no Brasil não é uma tarefa fácil. De igual forma a recuperação da empresa pelo processo judicial ou extrajudicial demanda sacrifícios e elevados custos de transação, não apenas aos devedores, mas também aos credores no percurso entre a entrada e a saída de um túnel sinuoso, com muitas barreiras, no qual se busca uma saída tênue e menos traumática, com o objetivo de resgatar a mútua confiança e permanecer no mercado.
O sucesso na recuperação do crédito e na recuperação da empresa está na dependência dos seus atores, destacando-se aí, as partes, os advogados, o conciliador, o mediador e o juiz. Quanto mais a balança pender para a comparticipação e cooperação em um sistema de compartilhamento de perdas, e quanto mais disposição no entendimento do que realmente é uma pauta “ganha-ganha” nessas relações, mais exitoso haverá de ser o resultado.
Isso tudo passa pelo contexto do processo decisório, seja do empresário, do consumidor/parte, do advogado e do juiz. Tem-se arguido que a comparticipação é mais efetiva quando se coloca em prática o encontro de algumas ciências que repercutem no comportamento.
Luciano TIMM ao tratar sobre políticas públicas para o consumidor em tempos de Covid-19, destaca a repercussão positiva da avaliação do caso concreto a partir da interdisciplinaridade entre o direito e a economia, a ciência política, a psicologia e a neurociência. O ponto focal de TIMM enquanto protagonista da Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), não apenas neste momento pandêmico, está relacionado a uma visão sistêmica que envolve a eficiência na relação de consumo em uma dinâmica dialógica e de recíproca colaboração. Ao traçar um paralelo entre o direito do consumidor de exigir a devolução do crédito alocado em um determinado pacote turístico (passagens aéreas, estadas hoteleiras etc) não concretizado em razão da pandemia (caso fortuito), e a empresa de suspendê-lo pelo sistema de recuperação judicial, avaliando os riscos e os custos de transação de parte a parte, aponta para o caminho da mediação, como sendo a ferramenta mais adequada para a solução de disputas, propondo e incentivando políticas públicas para o uso deste método no âmbito do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e dos Tribunais Estaduais[i].
Percebe-se que o sistema de recuperação de crédito e o sistema de recuperação da empresa caminham juntos.
Segundo pesquisa de endividamento e inadimplência do consumidor divulgada em 14/04/2020 pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o percentual de famílias com dívidas, em atraso ou não, chegou ao patamar de 66,6%, sendo que 77,6% têm origem no cartão de crédito. Já o nível de inadimplência aproxima-se de 26% (medida de março/abril de 2020)[ii].
Segundo levantamento do Serasa Experian, o número de pedidos de recuperação judicial entre as Companhias Brasileiras cresceu 46% no mês de abril em relação ao mês de março deste ano. O setor de serviços foi o mais afetado e representa 76%[iii]. Lembre-se que a crise econômica iniciada no ano de 2014 repercutiu em forte recuo do PIB nos anos de 2015 e 2016 (7%), ocasionado um aumento exponencial dos pedidos de recuperação judicial, a exemplo do mês de abril de 2016 que registrou um aumento histórico de 94,8%[iv].
O processo “ganha-ganha” na recuperação de crédito permite ao devedor (pessoa física ou jurídica, consumidor ou fornecedor) renegociar suas dívidas com vantagens (descontos, carência e parcelamento), sem retirá-lo do mercado de consumo, mantendo-se, portanto o relacionamento entre cliente e fornecedor. O processo de exclusão não contribui para o resgate da confiança e para a atração de investimentos no País.
É fato que o Brasil não tem uma boa imagem no quesito — recuperação de crédito —. Por outro lado, as principais justificativas não se apresentam com a mesma força dada à impontualidade, e decorrem das elevadas taxas de juros que submete o brasileiro, principalmente as do cartão de crédito.
De igual forma, o processo “ganha-ganha” nos pedidos de recuperação judicial permitem, de fato, a reorganização da empresa recuperanda e ao mesmo tempo, um prejuízo menor aos credores, com o resgate parcial da dívida em um menor tempo. O problema é colocar uma inteligência estratégica que todos comunguem, no âmbito, principalmente das disputas pelos créditos, considerando-se o saldo dos ativos, que invariavelmente não cobrem os passivos gerados.
Estando a frente da coordenação de um grupo de trabalho instituído pelo CNJ, o Ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, tem contribuído sobremaneira para o amadurecimento do processo de recuperação judicial no âmbito do Poder Judiciário. Em recente “Live” do Valor Econômico, destacou a necessidade de melhora do rankeamento do Brasil nos critérios de recuperação de créditos e a importância da mediação em várias fases do processo de recuperação judicial, inclusive nas Assembleias Geral de Credores (AGC), como medida eficaz e fundamental para a equalização dos interesses. Acrescentou que vê com otimismo o resultado do texto do projeto de lei em via de ser aprovado, especialmente porque dá mais fôlego às empresas em recuperação[v].
Neste período pandêmico, o referido Ministro do STJ, esclareceu que o Grupo de Trabalho/Comissão no qual participa apresentou e foi aprovado pelo plenário do CNJ, as seguintes medidas a serem adotadas nos processos de recuperação judicial de empresas, a saber: “a) suspensão de prazos; b) adiamento de Assembleia Geral de Credores (AGC) ou a sua realização por meio de videoconferência; c) possibilidade de prorrogação do prazo de suspensão das ações e execuções movidas pelos credores contra a devedora em recuperação judicial (stay period); e d) a utilização da força maior para determinar a renegociação dos planos já aprovados pelos credores, abrandando os efeitos do descumprimento de obrigações assumidas pela devedora”[vi].
De fato, a recuperação judicial[vii], enquanto não ocorrerem alterações mais significativas à Lei n. 11.101/2005, não tem respondido com eficiência ao problema, diante dos elevados índices de convolação da recuperação judicial em falência e a efetiva dificuldade de reorganização empresarial em meio a um cenário de disputas com visões “ganha-perde”, excetuados casos pontuais e de pleno êxito conduzidos com maestria por juízos especializados.
A manutenção da “confiança” mesmo em um estado de impontualidade (inadimplência) é fundamental para a preservação da empresa e de suas atividades econômicas. Socorrer-se do processo de recuperação judicial ou mesmo da recuperação extrajudicial, diante das formalidades exigidas e da submissão do plano à homologação judicial impacta em custos de transação elevados. De qualquer forma, para comentar, o plano de recuperação extrajudicial excepcionará os créditos de natureza tributária, de natureza trabalhista ou de acidente decorrente do trabalho, além dos decorrentes de contrato de alienação fiduciária dentre outros (Lei n. 11.101/2005, art. 161, parágrafo 1º.).
Considerando-se que a mediação e a conciliação são métodos eficientes a serem utilizados tanto para a recuperação de crédito como para a reorganização da empresa, a solução de controvérsias entre credores e devedores não se submete obrigatoriamente a nenhum dos processos formais antes dimensionados.
Tem-se observado, com muita frequência, a formação de inteligências para o processo “ganha-ganha” pelos escritórios de advocacia, que investem sistematicamente na capacitação de profissionais com o perfil de conciliador e mediador, que passa pela compreensão dos processos decisórios a partir da interação entre o direito e a economia, a ciência política, a psicologia e a neurociência, como antes ficou assentado.
Os escritórios devem funcionar como antessala de solução, e isso tem sido cada vez mais frequente e desejado. É importante que os profissionais do direito, que laboram no dia a dia da advocacia, assumam essa postura, e compreendam sobre as questões comportamentais que envolvem a tomada de decisão no mundo corporativo.
Deste modo, a gestão jurídica transparente e responsável do passivo apresenta-se como uma boa alternativa à recuperação judicial, extrajudicial ou a falência, a que se submente o empresário e a sociedade empresária. Todavia, o funcionamento adequado desta ferramenta envolve a criação de uma política de controle comportamental capaz de espraiar efeitos em todas as pontas dessas relações jurídicas, a partir de uma criteriosa análise dos sujeitos ou players, para adotar a teoria dos jogos, cuja dinâmica é muito útil, cabendo muito bem no contexto desta análise.
Ressalva-se que essa forma de gestão jurídica nada excepciona, todavia e por óbvio, a classe de credores e as dificuldades da negociação implicarão na eleição de prioridades e no acompanhamento preciso dos passos de cada um dos sujeitos. O passivo trabalhista também pode ser negociado, especialmente em razão da reforma trabalhista ocorrida pela Lei 13.467/2017, onde prepondera o negociado sobre o legislado, sempre com prudência e observação das exceções legais.
Considerando-se a necessidade de adoção do princípio da cooperação e das modernas técnicas de mediação e negociação, o acompanhamento diário do plano de gestão e a troca de informações entre o empresário devedor e o escritório jurídico gestor são fundamentais para o pleno êxito da solução pacífica dos conflitos decorrentes da impontualidade, até porque, toda a estrutura criada de forma compartilhada entre o advogado, o empresário e os prepostos da empresa, foi pensada a partir das consequências jurídicas desta ou daquela ação/conduta.
São inúmeros os exemplos, diários e cotidianos, da eficiência da mediação e da negociação, em um ambiente de confiança pautado na boa fé empresarial, oportunidade em que surgem boas parcerias entre o empresário devedor e o empresário credor, inclusive de refinanciamento e novos investimentos de lado a lado.
Obviamente que o plano individual criado para cada credor estará conectado a uma estratégia maior de relação e dependência com o negócio, que, por sua natureza, tem como principal e potencial efeito, a produção de receitas. O fluxo de caixa e o fluxo de pagamento estarão interligados e disciplinados por metas mensais, trimestrais e semestrais de resultado para fazer frente aos pagamentos renegociados.
É evidente que não interessa ao fornecedor parar de fornecer, nem ao credor de qualquer outra classe a extinção ou a falência da empresa, pois a liquidação de ativos (quando existentes), invariavelmente, não fará frente à liquidação dos créditos.
O importante para a empresa devedora e para o credor é não sair fazendo, pois, o empresário pautado em informações assimétricas, de um lado submete todo o ativo e seus recebíveis a um ou outro credor, inclusive, atrelando patrimônio pessoal em garantia, e de outro toma atitudes precipitadas na gestão do seu crédito, cujos efeitos de ambas as condutas são danosos e fatais para a continuidade das atividades empresariais.
Deste modo, avançar em uma negociação sensível à empresa em razão dos impactos sentidos pela impontualidade exige o planejamento do todo, com a criação de um fluxo para cada credor e o entendimento sobre as intercorrências, ressalvando-se que tal caminho não impede ou suspende a ações judiciais em curso, mas permite exercer certo controle sobre elas. Sabidamente, os credores com interesse de satisfazer o seu crédito levarão em conta não apenas o elemento “confiança” que a empresa devedora continuará espraiando ao mercado em razão da transparência no seu trato negocial, mas também os efeitos do estado pandêmico e a viabilidade de invocação, pela devedora, de motivos de força maior para o efeito de justificar o descumprimento de obrigações.
É bom chamar a atenção para o fato de que a gestão responsável do passivo não implica na fuga do devedor em relação aos credores, mas na procura deles e na eleição de prioridades, pois, antes de tudo, a empresa tem compromisso com a atividade econômica que desenvolve, pois, como diz Campinho, a empresa “é, reconhecidamente, fonte produtora de bens, serviços, empregos e tributos que garantem o desenvolvimento econômico e social de um país. A sua manutenção consiste em conservar o ‘ativo social’ por ela gerado”[viii].
Nada impede que se utilizem meios de recuperação judicial sem a instauração do procedimento, ou seja, no âmbito da gestão jurídica do passivo, por exemplo: a busca por condições especiais de pagamento e descontos, a cisão, incorporação, fusão ou transformação da sociedade, cessão de quotas ou ações, substituição dos administradores, trespasse, arrendamento, dação em pagamento, redução salarial e compensação de jornadas, usufruto da empresa ou de parte de um ativo, venda parcial da operação, parcerias, entre outras estratégias (Lei n. 11.101/2005, art. 50).
A exposição do devedor no mercado e respostas duras serão frequentes, mas é preciso relevar e aprender a conviver com elas, diante de um objetivo maior, alcançável mediante a utilização, na sua máxima potência, do princípio da cooperação, e das ferramentas da mediação e da conciliação, conforme revelou o contexto acima. Cabe, portanto, levar em consideração, nessa ordem, os três cenários comentados: 1) a gestão jurídica especializada dos ativos/passivos; 2) a recuperação extrajudicial e 3) a recuperação judicial. Não há uma relação de dependência entre cada um dos cenários, mas o monitoramento deles. O avanço de um para o outro dependerá do comportamento dos agentes econômicos, das políticas públicas, da nova lei de recuperação e das normas editadas no período pandêmico.
Fica aqui o registro de uma mensagem otimista e de incentivo ao empresário devedor e ao empresário credor, no sentido de que é possível superar momentos difíceis, mesmo que agravados pela situação pandêmica e pelo estado de calamidade pública. O uso de soluções criativas pautadas na boa fé e na confiança, a ponto de reinventar, reposicionar e tornar a crescer é fundamental para dar eficácia ao princípio da preservação da empresa, cujas atividades econômicas repercutem sobejamente no desenvolvimento socioeconômico do país.
Notas e Referências
[i] TIMM, Luciano Benetti. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/politicas-publicas-para-o-consumidor-em-tempos-de-covid-19/.>Acesso em: 15 junho 2020.
[ii] Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/covid-19-endividamento-das-familias-atinge-recorde-em-abril-diz-cnc.>Acesso em: 15 junho 2020.
[iii] Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/05/26/pedidos-de-recuperacao-judicial-crescem-46-em-abril-veja-como-funciona.>Acesso em: 15 junho 2020.
[iv] SALOMÃO, Luis Felipe. https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/coronavirus-e-a-recuperacao-de-empresas.shtml.>Acesso em: 15 junho 2020.
[v] Disponível em: <https://valor.globo.com/live/noticia/2020/06/10/live-do-valor-luis-felipe-salomao-ministro-do-stj-fala-sobre-recuperacao-judicial-nesta-quinta-as-11h-sembarreira.ghtml.>Acesso em: 15 junho 2020.
[vi] SALOMÃO, Luis Felipe. https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/coronavirus-e-a-recuperacao-de-empresas.shtml.>Acesso em: 15 junho 2020.
[vii] Lei 11.101/2005, art. 47. “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.
[viii] CAMPINHO, Sérgio. Curso de direito comercial: sociedade anônima. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 130.
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