“Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar, E o mundo por ser redondo, tem por destino embolar... “ (Siba)
Foi de um dia para o outro. Dormi e despertei com um barulho estrondoso. O medo me fez encolher na cama, tremi. Tomei folego, levantei. Faltou coragem para abrir a cortina da janela no quarto. Medindo os passos, cheguei na sala. Tudo intacto, exceto uma grande rachadura na parede ao lado da porta, que abri, vagarosamente. Não acreditei no que vi.
Árvores, postes, carros, casas, toda a rua da frente havia desaparecido. O grasnar de uma ave desviou meu olhar para o céu. Retornei os olhos ao chão. Uma cratera imensa, um abismo, diante dos meus pés. Uma boca escancarada prestes a me engolir, se desse mais um passo.
Recuei. Bati a porta. Apoiei-me na parede. Fixei os olhos no relógio, eram seis horas. Caminhei como quem anda numa corda bamba. A luminosidade, vinda de fora, resplandecia sobre o piso a minha frente. Desnorteada, amparei-me na estante. Tudo girava.
Tentei me acalmar. Lembrei-me do dia anterior. Chegara em casa à noitinha. Ao entrar, notei na parede, ao lado da porta, um traço, uma pequena rachadura. Coisas que surgem com o tempo em qualquer moradia. Nada estranho. O mundo continuava sobre os trilhos.
...
Notei que a claridade, estampada no chão, sumira. Num piscar de olhos, o dia se transformara em noite. Ao meu redor, o lusco-fusco invadira a sala. Busquei o interruptor na parede. Não havia energia.
Precisava acostumar meus olhos à escuridão. Acerquei-me do relógio, estampava dezoito horas. Como podia ser? Pareciam ter passado apenas poucos minutos desde que acordara, no entanto, transcorreram doze horas. Não tive coragem de olhar pela janela, encarar o que restava do mundo lá fora. O pavor me fez duvidar da realidade.
Um ruído crescente chamou minha atenção. Na cozinha água transbordava da pia. Tentei fechar a torneira, girei, apertei o registro até sentir as mãos doloridas. Não consegui. Peguei uma vela na estante, acendi. O escorrer do líquido aumentava, minava das paredes, molhava meus tornozelos. Em pouco tempo, inundaria todos os cômodos. Precisava sair dali.
Na casa havia uma única porta de entrada e saída. Se aqui dentro crescia o mar, lá fora aguardava-me um abismo. Por onde escapar?
A água tomava espaços, alcançava minha cintura. Cobria o sofá, crescia rumo a janela. Livros e outros objetos flutuavam. A vela apagou. As paredes craquelavam sob pressão. Antevi a morte. Me deixaria submergir, mas o instinto de sobrevivência obrigava a resistir. Se abrisse a porta, seria jogada dentro da cratera. Se ali ficasse, me afogaria.
Pequenas luzes fosforescentes surgiram, rodopiando sobre minha cabeça. Devia estar delirando. Vi-me arrastada junto aos móveis em direção à porta que cedia. Com o restante das forças, agarrei a quina da entrada. Senti esvair-me.
...
Abri os olhos. Estava em frente da minha casa, como no dia anterior. Era noitinha. Ao entrar, notei na parede, ao lado da porta, um traço, uma pequena rachadura. Coisas que surgem com o tempo em qualquer moradia...
Notas e referências
[CdM1]Tirar o balão
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