A questão da gratuidade no divórcio extrajudicial frente ao CPC/15 – Por Gilberto Carlos Maistro Junior

07/10/2016

Coordenador: Gilberto Bruschi

Eis as questões a serem enfrentadas nesse pequeno estudo: mesmo com a inexistência de regra nos moldes do §3º do art. 1.124-A do já revogado CPC/73, o sistema inaugurado pelo CPC/15 permite que se chegue à conclusão de que, mediante declaração, as pessoas que declarem pobreza, no sentido jurídico da palavra, possuem o direito à gratuidade para o divórcio extrajudicial? Ou será que a quase repetição do texto do art. 1.124-A, caput e §§1º e 2º, do CPC/1973 no texto do art. 733, caput e §§1º e 2º, com a falta de repetição do teor do §3º do dispositivo revogado conduz à conclusão de que se tem “silêncio eloquente”, no sentido de que o propósito do legislador foi, exatamente, retirar a referida gratuidade dos procedimentos extrajudiciais para mantê-la, apenas, na via judicial, ex vi dos arts. 98 e 99 do CPC, atendendo, assim, de todo modo, ao disposto na CF, art. 5º, LXXIV, verbis: o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”?

Vale destacar que a Resolução nº 35 do CNJ (anterior ao CPC/15), nos arts. 6º e 7º, alude à gratuidade nos referidos procedimentos notariais – estende, aliás, ao inventário e à partilha -, mediante simples declaração dos interessados[1].

Sobre o tema, contudo, encontra-se relevante posição no entendimento de Débora Fayad Misquiatti[2] no sentido do perecimento de qualquer fundamento jurídico para sustentar a gratuidade em questão, a partir da entrada em vigor do CPC/15.

Afirma Misquiatti que a porção tributária dos emolumentos, no que se refere à escritura e demais atos notariais na separação e no divórcio extrajudiciais, tem natureza jurídica de isenção. Antes, afirma que se tem isenção quando, apesar de existir competência, uma norma infraconstitucional impede o nascimento da obrigação tributária.

Deixando de vigorar a referida norma (art. 1.124-A, §3º, do CPC/1973), não haveria mais fundamento para sustentar o direito à gratuidade em questão.

De outro lado, Flávio Tartuce sustenta a manutenção do direito à gratuidade e aponta até uma certa contradição entre a “retirada da norma de benefício aos pobres e o espírito da nova codificação processual, que adota a agilização e a desjudicialização como motes principiológicos”, além de se distanciar da tutela dos vulneráveis econômicos “em prol da função social dos institutos jurídicos[3].

Flávio Tartuce pontua que, mesmo diante da revogação do CPC/1973, seria viável sustentar a permanência da vigência do art. 1.124-A, §3º, em razão do disposto no CPC, art. 1.046, §2º.

Afirma que, pelo art. 1.124-A, §3º ter sido introduzido no CPC/1973 pela Lei nº 11.441/2007 (lei especial), seria possível cogitar a permanência da sua vigência com fulcro no que traz o supratranscrito dispositivo no CPC.

Em que pese o respeito à posição de Flávio Tartuce, parece-nos que o disposto no art. 1.046, §2º do CPC tem outro alcance, qual seja, o de fixar que permanecem em vigor os procedimentos especiais regrados em leis processuais extravagantes. No caso em tela, a Lei nº 11.441/2007 introduziu o referido art. no CPC/1973. Logo, o dispositivo passou a integrar o CPC anteriormente vigente, de modo que a sua revogação alcançou irremediavelmente o art. 1.124-A. Nesse sentido, vale destacar a posição de Vitor Frederico Kümpel de não aceitar a manutenção da vigência do dito dispositivo do Código anterior, embora sustente a manutenção da gratuidade, por vislumbrar no art. 98, §1º, IX, regra que extrapola os simples atos decorrentes de determinação judicial[4].

Não se pode olvidar o disposto no art. 8º do CPC.

E, nesse ponto, novos obstáculos surgem para a interpretação do sistema na busca da melhor solução à questão posta neste estudo.

Não se pode ignorar que a primeira parte do art. 8º do CPC/15, no mesmo sentido já antes conhecido a partir da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art. 5º, fixa que o juiz deve aplicar o ordenamento jurídico – e, portanto, também a lei – de modo a atender aos fins sociais a que se destina. Portanto, a interpretação da lei processual deve ser teleológica, a tornar extremamente relevante a investigação da finalidade de cada regra e de cada instituto previsto e disciplinado no CPC.

Ora, se o legislador praticamente repetiu os textos do caput e dos §§1º e 2º do art. 1.124-A do CPC/1973 no art. 733 do CPC/15, por qual motivo teria silenciado quanto ao §3º do artigo integrante do texto revogado? Simples esquecimento ou “silêncio eloquente” no sentido da supressão do direito à gratuidade, relegando-o apenas à solução na via judicial?

De outro lado, a parte final do mesmo art. 8º deixa claro que, na mesma atividade de aplicação do ordenamento jurídico, deve o juiz resguardar e promover a dignidade da pessoa humana.

Sabe-se que a duração razoável do processo é garantia fundamental estendida a toda e qualquer pessoa (CF, art. 5º, LXXVIII; CPC, art. 4º). Nesse diapasão, Flávio Tartuce sustenta que “a gratuidade de justiça para os atos extrajudiciais tem fundamento na tutela da pessoa humana (art.1º, inciso III, da CF/1988) e na solidariedade social que deve imperar nas relações jurídicas (art.3º, inciso I, da CF/1988)”, fundamento último este que afasta alguns dos principais argumentos dos defensores da impossibilidade de concessão simples da gratuidade para atos notariais.

Cite-se, por exemplo, Fabiano Silveira, mencionado por Débora Misquiatti[5], para quem o recebimento dos emolumentos pelo notário se mostra imprescindível, quer como contraprestação do serviço público que o Estado presta ao particular (argumento que, ao que entendemos, cede facilmente frente ao disposto no já destacado inciso LXXIV do art. 5º da CF), quer como fonte de recursos para o custeio da serventia e até para a sua própria remuneração, frente ao exercício da delegação que lhe foi outorgada.

Ora, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, de fato, é objetivo do Estado brasileiro (CF, art. 3º, I) e, por isso, não pode ser ignorado na fixação da base normativa de sustentação da vida no seio dessa mesma sociedade. No dimensionamento do valor dos emolumentos em geral, dentre outros fatores, não pode ser ignorado o dever do notário de proceder à lavratura da escritura e aos demais atos notariais para fim de permitir à pessoa humana vulnerável econômica e financeiramente o acesso a meios extrajudiciais de extinção do casamento, caminho mais breve e leve, afinal, já se trata de momento no qual marido e mulher, mesmo concordes quanto ao fim da união, não deixam de carregar os traços da frustração pela falta de sucesso ou pela falência da experiência matrimonial.

Não se pode permitir que a falta de condições financeiras para arcar com os emolumentos, por exemplo, emerja como fator legitimador suficiente da retirada de tal opção das ditas pessoas, lançando-as à via judicial em clara afronta ao movimento democratizante proporcionado pelo acesso do caminho extrajudicial com a concessão dos benefícios da gratuidade[6].

Ademais, não se pode ignorar que essa solução conduz à sobrecarga desnecessária de trabalho no Poder Judiciário, com reflexos negativos à toda a sociedade fruto da inafastável e até natural maximização dos atos a serem praticados pelo juiz e pelos auxiliares da justiça, tornando mais morosa ainda a solução das controvérsias trazidas ao Estado para fim de solução heterocompositiva.

Inexplicável, assim, que a solução extrajudicial, sendo possível e, por isso, até mesmo adequada aos anseios do atual tempo, de claro incentivo aos métodos tendentes à desjudicialização, reste obstaculizada pela impossibilidade de concessão de um benefício (a gratuidade) que, até no processo judicial, é garantido a todos aqueles que dele dependam.

Não se olvide, ainda, que se trata de delegação entregue ao Tabelião de Notas, ou seja, que não se afasta por completo das próprias atividades do Estado, embora entregues ao particular.

Aqui, novamente, deve ser considerado o disposto no art. 5º, LXXIV, da CF, que fixa como garantia fundamental a assistência jurídica e gratuita do Estado a todas as pessoas que dela necessitem e não possam custeá-la. Por isso que Mário Luiz Delgado Régis afirma que o CPC/2015, “apesar de não mais se referir expressamente à gratuidade, não suprimiu o benefício, que tem assento constitucional (CF, art. 5º, LXXIV)[7].

Há de se acrescer, outrossim, que mesmo sobre as atividades eminentemente privadas, recai a sombra da função social da empresa que, somada à também inegável função social dos institutos jurídicos[8], conduz ao afastamento do argumento de que não se possa aceitar a gratuidade em razão das despesas para a prática do ato e para a própria manutenção da serventia extrajudicial, ou mesmo o direito de remuneração do particular a quem entregue a delegação.

Some-se a gratuidade no casamento para os que, sob as penas da lei, se declarem pobres (Código Civil, art. 1.512, parágrafo único) que, por lógica, exige a disciplina legal no sentido de atrair o mesmo benefício por ocasião do desfazimento dessa relação contratual, se exigido pela lei forma especial para tanto.

Por fim, não se ignore que a concessão de tal ordem de direito às pessoas humanas, pela fixação da gratuidade para a lavratura da escritura e os demais atos notariais visando separação e divórcio extrajudiciais no texto do §3º do art. 1.124-A do revogado CPC/1973, acaba por afastar qualquer obstáculo do exercício da liberdade, garantida a todos no art. 5º, caput, da CF: liberdade para ser feliz e para fazer feliz aquele ou aquela com quem se convive. A criação de obstáculos de tal ordem faz com que as pessoas mais pobres ou busquem o Judiciário para fins nos quais se mostre desnecessária à intervenção do ente dotado de jurisdição – com todas as consequências prejudiciais aos interesses sociais e da própria coletividade acima indicadas – ou restem condenadas à separação de fato, às amarras para a reconstrução de uma nova fase da vida e, com isso, a um quadro no qual naturalmente restem fomentadas as agruras e as discussões e ofensas, fruto da manutenção de laços formais que não mais se justificam pela ruptura do afeto, centro no qual se sustenta e deve se sustentar a família, colocando em risco um outro valor extremamente importante e até então, ao menos em parte, preservado: o respeito.

Portanto, a supressão da gratuidade antes garantida no art. 1.124-A, §3º, do CPC/1973, representa retrocesso social[9], vedado principiologicamente pela CF e, com isso, não pode ser aceita.

Até que se estabeleça outra ordem de regramento, inclusive com eventual custeio pelo próprio Estado, as escrituras e demais atos notariais devem ser permitidos aos desprovidos de condições econômicas e financeiras para tanto, para fim de divórcio ou separação, pois conquistas sociais se agregam ao patrimônio jurídico das pessoas humanas e somente podem ser alteradas com a outorga de outros direitos que mantenham o status anterior ou propiciem melhores condições de vida.

Esse, o nosso entendimento, aqui registrado certo de que a posição em contrário também encontra bons fundamentos dogmáticos de sustentação, motivo pelo qual conta com o nosso respeito, mas não com a nossa concordância.

Não se olvide que o art. 5º, LXXVI, da CF estabelece como direito fundamental a gratuidade no registro civil de nascimento e na certidão de óbito para os reconhecidamente pobres.

Diante disso, Alexandre Freire Pimentel conclui que, como não se encontra enumerado no dito dispositivo constitucional o serviço pertinente à lavratura da escritura e demais atos notariais necessários ao divórcio extrajudicial, “o NCPC abriu uma inexplicável possibilidade de as serventias do extrajudicial poderem recusar a prestação de serviços delegados do poder público aos pobres”[10], realidade que não se pode negar.

Alexandre Freire, porém, lembra do entendimento fixado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça no julgamento do RMS nº 29.429-RS[11], no qual restou firmado que a garantia constitucional prevista no art. 5º, LXXVI da CF, embora textualmente dirigida a atos do registro civil, deve estender-se aos “serviços notariais”.

Contudo, cabe esclarecer que esse comando dirigiu-se à gratuidade de atos determinados judicialmente, o que também pode ser considerado para afastá-lo da pretendida benesse quanto aos emolumentos para lavratura de escritura e demais atos notariais para fim do divórcio extrajudicial.

Além disso, o entendimento foi abarcado pelo CPC, no art. 98, §1º, IX e foi interpretado pelo Colégio Notarial do Brasil e pela Anoreg-SP[12] como sendo restritivo, em seu texto, das hipóteses de gratuidade para serviços notariais, a militar contra o nosso entendimento mas a favor da interpretação gramatical da norma e na trilha do que entendemos tende a ser objeto da insistência dos tabeliães de notas. Salutar, contudo, destacar a clara percepção externada por Kümpel:

“Aliás, o próprio tabelião deveria lutar pela manutenção da gratuidade, porque sabe que a acessibilidade notarial e registral é o que faz com que a atividade tenha que se manter privada por delegação do poder público4 (art. 236, CF/88), portanto, totalmente insuscetível de ser avocada pelo Estado como muitos desejam”.

Cabe esperar pelo pronunciamento das doutas Corregedorias, na trilha da fixação da jurisprudência na matéria, tudo precedido da evolução dos debates doutrinários, rumo à pacificação dos entendimentos em torno de mais essa relevante questão.


Notas e Referências:

[1] Art. 6º A gratuidade prevista na Lei no 11.441/07 compreende as escrituras de inventário, partilha, separação e divórcio consensuais.

Art. 7º Para a obtenção da gratuidade de que trata a Lei no 11.441/07, basta a simples declaração dos interessados de que não possuem condições de arcar com os emolumentos, ainda que as partes estejam assistidas por advogado constituído.

[2] À época do artigo, Tabeliã de Notas em Arealva/SP. Disponível em: http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NTUxNA==. Acesso em: 20.09.2016.

[3] O novo CPC e o Direito Civil: impactos, diálogos e interações. São Paulo: Método, 2015. p. 371-372.

[4] Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI241444,31047-A+gratuidade+de+escrituras+de+separacoes+e+divorcio.  Acesso em: 26.09.2016.

[5] Disponível em: http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NTUxNA==. Acesso em: 20.09.2016.

6 No mesmo sentido: Paulo Lôbo. Divórcio e separação consensuais extrajudiciais. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13313&Itemid=675. Acesso em: 21.09.2016.

[7] Divórcio no Novo CPC. Disponível em: http://www.lex.com.br/doutrina_27176540_DIVORCIO_NO_NOVO_CPC.aspx. Acesso em: 18.09.2016.

[8] Essa última também mencionada por Tartuce. O novo CPC cit. p.373.

[9] Sustenta Fernanda Tartuce, tratando do inventário extrajudicial, mas sob fundamentos que se reconhecem no aqui abordado, que: “A supressão das previsões sobre gratuidade no texto do Novo CPC não deve ter o condão de obstar a realização gratuita de inventário extrajudicial pelos necessitados. Embora discussões possam ser reavivadas ante a ausência da norma expressa (o que, aliás, gera instabilidade), sendo reconhecido o espaço para interpretações destoantes, fica assentada desde já a posição sobre o prevalecimento da garantia constitucional de assistência jurídica integral e gratuita e do princípio constitucional da vedação ao retrocesso” (Gratuidade em inventários extrajudiciais. Disponível em: http://www.lex.com.br/doutrina_27182690_GRATUIDADE_EM_INVENTARIOS_EXTRAJUDICIAIS.aspx. Acesso em: 19.09.2016).

[10] In: Teresa Arruda Alvim Wambier; Fredie Didier Jr.; Eduardo Talamini; Bruno Dantas. (Org.). Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 1ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.698.

[11] STJ, 2ª Turma, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j.04.11.2010, DJe 12.11.2010.

[12] Disponível em: https://www.anoregsp.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MzIyNA==. Acesso em: 22.09.2016.


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