A publicidade do conteúdo de interceptações telefônicas e a falsa judicialização da política na Operação Lava - Jato

31/03/2016

Por Adriano Valente - 31/03/2016

Ninguém discute a importância das interceptações telefônicas para a solução de investigações penais. Porém, não se pode perder de vista que, assim como toda e qualquer medida cautelar, trata-se de ato excepcional e limitador de uma série de direitos fundamentais dos indivíduos envolvidos. Exatamente por essa razão, sabendo-se que a quebra do sigilo telefônico sempre causa consequências negativas ao interceptado e seus interlocutores (grave-se bem este último ponto), o próprio legislador constituinte cuidou de apontar no art. 5º, XII, de forma expressa, a necessidade da criação de uma legislação que regulasse o tema.

Para tanto, oito anos após a promulgação da Constituição de 1988, foi criada a Lei n. 9.296/1996, e que continua em vigor. Chama-se a atenção, de forma especial, para seus Arts. 8º e 9º. O primeiro dispõe que será sempre preservado o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas. Não há qualquer exceção, o texto é taxativo e expresso.

Já o segundo dos dois artigos supracitados, não menos importante, dispõe que toda a gravação que não interessar à prova será inutilizada. A razão principal para tanto parece óbvia: tratando-se a interceptação telefônica de medida cautelar relativizadora do direito – também constitucional – à intimidade, esta tão somente pode ser justificada quando ofereça alguma contribuição para investigações policiais e processos criminais. Se a gravação de determinadas conversas em nada colabora com o deslinde do caso em apuração, respeitando-se a preservação da cadeia de custódia da prova (PRADO, 2014), não há por que se conservar seu conteúdo. Aliás, frise-se que, se nem ao processo penal tais conversas interessam, que dirá para a sociedade.

Dito de forma mais simples, a legislação ordinária que cuida do tema serve justamente para que os operadores do Direito tenham o conhecimento do que se pode e o que não se pode fazer no âmbito das interceptações telefônicas. Há de se consignar, porém, que a Lei 9.296/1996 não distingue figuras públicas de figuras não-públicas, apenas dispondo que o conteúdo das interceptações é sempre sigiloso. Não há, portanto, contorcionismos ou engenhosidades hermenêuticas: seja qual for o grau político, público e profissional do indivíduo, suas conversas gravadas por força de interceptações telefônicas serão sempre confidenciais.

Se, por quaisquer razões, passar-se a acreditar algum dia que as interceptações de figuras públicas nunca devem ser sigilosas e que esta diferenciação – aparentemente absurda e inconstitucional – se mostra necessária, será preciso socorrer-se ao processo legislativo e modificar o Art. 8º da Lei 9.296/1996, inserindo tal exceção. Caso contrário, é imprescindível que se continue observando de forma rigorosa o conteúdo legal vigente sobre o tema; assim funciona a dinâmica democrática republicana.

Não obstante, ainda que se sustente a importância das interceptações telefônicas para o sucesso de determinadas persecuções penais, fato aparentemente incontestável, não há razões para se afirmar a existência de qualquer interesse público na divulgação de conversas íntimas de nenhum investigado, processado ou condenado, independentemente de seu conteúdo. Há interesse para a Polícia, para o Ministério Público, para o Juiz, para o Réu e para a Defesa. Quando se trata de conversas que em nada colaboram para a apuração do crime investigado, a divulgação, na verdade, se torna ainda mais absurda e reprovável.

Diálogos como o realizado entre o ex-Presidente Lula e o Prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, em claro tom jocoso, é uma intimidade que jamais deveria ser exposta de forma irresponsável nos meios de comunicação. Se algum indivíduo o vazasse para agências de notícias, movido por inclinações duvidosas, seria também, sem a menor dúvida, um fato a ser lamentado, em que pese a obtenção de material sigiloso pela imprensa seja um acontecimento bastante comum ao cotidiano brasileiro, tratado, inclusive, com uma naturalidade bastante questionável. Contudo, quando o próprio magistrado que defere a autorização para a medida cautelar é o responsável pela divulgação deste conteúdo, certamente faltam palavras a qualquer jurista atento ao tema para descrever tal situação. Não há precedentes; é simplesmente absurdo e incompreensível.

E, ainda que se queira concluir que o réu criminal não é sujeito de direitos, mas apenas objeto de uma relação processual penal – pensamento inclusive já ultrapassado desde as épocas mais inquisitoriais (LOPES JR., 2008, p. 61) –, não se pode ignorar que a interceptação telefônica não é uma relativização apenas das garantias do investigado, mas também de seus interlocutores. Isto porque a intimidade de todas as pessoas que ligam para o indivíduo monitorado também resta completamente abalada, tornando ainda mais grave e absurda a divulgação das conversas gravadas.

Esta gravidade do ocorrido e os já citados danos à imagem e honra das pessoas envolvidas se mostra, aliás, bastante evidente quando se analisa o já citado diálogo entre o ex-Presidente Lula e o Prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes.  Frise-se, inclusive, que este último não é sequer criminalmente investigado, embora tenha sido obrigado a passar por uma série de embaraços decorrentes da divulgação das interceptações. Mas, afinal, pergunta-se: qual de nós também não passaria por semelhantes constrangimentos caso fosse publicamente divulgado, em escalas nacionais, tudo aquilo que conversamos diariamente com nossos pares?

Alguns certamente perderiam o marido, mulher, amigos, empregos, e o pior: tudo isto mesmo que sequer tivessem cometido qualquer ato criminoso ou estivessem envolvidos em investigações penais. Se não se quer, portanto, lutar pelos direitos dos investigados e dos réus, lute-se ao menos pelos direitos de todos os cidadãos, até porque, conforme ora se vê, não depende apenas de ser ou não ser criminoso a possibilidade de ouvirem tudo aquilo o que se pensa e conversa sobre os mais variados assuntos, inclusive íntimos.

Afora a flagrante ilegalidade e inconstitucionalidade da divulgação praticada pelo juiz federal Sérgio Moro, a notícia de que advogados foram grampeados é, de tudo, certamente o maior dos absurdos. Sabemos que a população, a qual por obviedade também se incluem os membros dos três Poderes brasileiros, de forma geral nunca nutriu grandes sentimentos de empatia pelos criminalmente processados; os indivíduos costumam acreditar que jamais ocuparão o banco dos réus. É inadmissível, porém, a criminalização da advocacia. O direito à defesa é uma conquista constitucionalmente prevista, e que jamais existirá de forma efetiva se forem monitorados os profissionais que exercem um múnus tão complexo e indispensável à construção democrática (SODRÉ, 1975).

A medida, aliás, ignora e contraria a proibição expressa contida no art. 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994), significando um alarmante sinal de que não amadurecemos ainda as ideias e ideais de construção de um regime verdadeiramente democrático, predominando em alguns indivíduos o aparente – e inexplicável – desejo em devolver a República brasileira aos tempos sombrios de regimes policialescos autoritários.

Contudo, esta figura dos heróis impotentes, encarnados em juízes, promotores e policiais amarrados por uma suposta legislação branda e ineficiente, a crença em inimigos ou males avassaladores, nada disso tem algo de novo. Nos momentos de graves crises econômicas e turbulências políticas, o abrandamento das garantias e o recrudescimento das legislações punitivas quase sempre aparecem como soluções aparentemente simples e eficientes para os problemas nacionais. Sempre foi assim.

Porém, não se pode jamais perder de vista que as garantias fundamentais dos indivíduos não são apenas uma dura resposta aos tempos de regimes repressivos e autoritários recentemente vividos pela história brasileira. Os direitos previstos pela Carta Magna de 1988 são, na verdade, uma verdadeira lição, um aprendizado de que a instituição de Estados policialescos e autoritários quase sempre descamba em lamentáveis tragédias.

Por fim, importante deixar claro que o pedido de desculpas oferecido ao Supremo Tribunal Federal pelo magistrado responsável pelo levantamento do sigilo de gravações não retira a gravidade do ocorrido. Aliás, ao contrário, oferece uma nova oportunidade de ser repensada a perigosíssima relação – e confusão – entre (i) Política, (ii) Poder Judiciário e (iii) temas criminais inseridos na agenda principal dos meios de comunicação.

A judicialização da política é de fato um fenômeno natural e, de certa forma, até mesmo quase inevitável. Não se confunde, porém, com a transferência de querelas e birras políticas pessoais para as searas penais, transformando processos criminais em verdadeiros instrumentos de expiações políticas. Ao que parece, ainda não se sabe se após este lamentável episódio a corrupção e impunidade serão resolvidas, mas a democracia brasileira já é possível perceber que sairá dele bastante machucada.


Notas e Referências:

PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controle epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

SODRÉ, Ruy de Azevedo. Ética profissional e Estatuto do Advogado. São Paulo: LTr, 1975.


Adriano Valente. Adriano Valente é Advogado Criminalista, Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Pós-graduado em Ciências Penais pela UCAM e Pós-Graduando em Processo Penal e Garantias Fundamentais pela ABDConst-Rio. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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