A prova indiciária e a formação do convencimento do juiz no processo penal - Por Afrânio Silva Jardim

03/01/2017

Pela leitura do disposto no artigo 239 do Código de Processo Penal, constata-se que indício é o fato provado nos autos do processo que, pela sua relação lógica e empírica com outro fato, nos leva a concluir sobre a existência deste outro, embora este outro fato não esteja demonstrado, através dos meios de prova diretos.

Aqui, a expressão “indício” tem um significado específico, um significado próprio. Para nós, neste momento, indício não significa prova fraca, leve, superficial, não cabal, etc, como se pode depreender de vários outros dispositivos do nosso Código de Processo Penal, como, por exemplo: artigos 126, 134, 312, 408 e 409.

Assim, fica claro que vamos estudar o indício referido apenas no art. 239, que tem, verdadeiramente, um sentido mais técnico.

Andou bem o nosso atual Código de Processo Penal em não atribuir ou negar, previamente, qualquer valor probatório ao chamado indício, trazido aos autos do processo. Como é sabido, no sistema do livre convencimento motivado, não deve o legislador preestabelecer como o juiz, no futuro, deverá valorar este ou aquele fato, ou seja, dizer da eficácia deste ou daquele meio de prova.

Na verdade, embora o conceito de indício esteja inserido entre os vários meios de prova elencados no referido código, julgo que o indício não é, tecnicamente, um meio de prova. Julgo mesmo que o artigo em comento poderia nem existir e nada mudaria em nosso sistema processual.

Rigorosamente, o artigo 239 não exterioriza uma regra jurídica, mas é a explicitação de uma forma de raciocínio, autorizada ou desejada, a ser desenvolvida pelo magistrado, quando da sua análise do conjunto probatório. Vale dizer, o legislador optou por formular um conceito, explicitando a autorização para a utilização, pelos sujeitos processuais, daquilo que foi conceituado.

Embora dispensável, como acima se afirmou, o dispositivo legal em apreciação em nada prejudica o intérprete ou aplicador do Direito. Aqui, o que é demais não prejudica.  Achamos até que afasta algumas dúvidas sobre o que efetivamente é o objeto de prova no processo penal e como o magistrado pode formar a sua convicção.

Entendo que este artigo ficaria melhor acomodado na parte do Código de Processo Penal que cuida da prova em geral, vale dizer, dentro do primeiro capítulo das “Disposições Gerais”, deste título VII, tudo em busca de maior rigor sistemático.

Grande parte da doutrina nacional critica a expressão “por indução”, constante do dispositivo legal ora comentado. Até bem pouco tempo, muito influenciado pelos textos do grande e saudoso professor Hélio Tornaghi, (“Instituições de Processo Penal”, S.P., Saraiva, 2ª.ed., vo.4, p.158/165), nós também concordávamos com estes autores, julgando tratar-se de um “procedimento” lógico de dedução e não de indução.  Essa controvérsia também se encontra na melhor doutrina estrangeira, de longa data.

A primeira corrente doutrinária supra mencionada entende que o indício – fato conhecido e provado – deve funcionar como uma “premissa menor” dentro de um silogismo de lógica formal que pode ser adotado pelo juiz. A premissa menor seria uma regra da experiência, um princípio da razão ou um conhecimento científico consolidado. Desta forma, do confronto da premissa maior com a premissa menor, se deduz, se presume algo sobre o “fato probando”, sobre o fato que não é trazido à apreciação judicial por meio direto de prova.

Para melhor compreender o que dissemos acima, apresentamos um exemplo: se está provado que, no dia e hora do crime, o réu estava em outro local distinto daquele narrado na denúncia (premissa menor), fica claramente demonstrado que não foi ele o autor daquele delito, pois ninguém pode estar, ao mesmo tempo, em lugares diferentes (premissa maior, decorrente da razão humana).

O mencionado professor Hélio Tornaghi fornece um outro exemplo didático, onde a premissa maior decorre de regras da experiência, vale dizer, do que ordinariamente acontece:  o juiz estaria autorizado a condenar uma pessoa encontrada ao lado de um homem, que acabou de morrer esfaqueado, dentro de sua residência, que teve a porta arrombada, sendo que esta pessoa é também surpreendida com a faca ensanguentada e bens do morto. Com a prova destas circunstâncias do crime (indícios), seria mais do que razoável presumir a autoria deste latrocínio (alteramos um pouco o exemplo, criando mais fatos indicativos).

No plano lógico e, por que não, também jurídico, o nível de convencimento dos indícios estaria ligado a dois aspectos: a) a certeza do(s) fato(s) indicativo(s), vale dizer, dos indícios:  b) a natureza da “premissa maior”. É de fácil compreensão que mais convicção nos fornece a premissa maior que decorra da razão ou do conhecimento científico. As regras da experiência são mais vulneráveis, não nos outorgam tanta certeza.

O reparo, que hoje fazemos à forma supra de abordar este interessante tema, se refere apenas ao aspecto lógico. Na verdade, o indício (fato conhecido e provado) não nos leva a presumir o factum probandum, mas sim pode nos levar à certeza de sua existência. Em outras palavras, partindo do exemplo do latrocínio acima fornecido: a prova de todos aqueles fatos indicativos podem dar ao juiz a certeza de que aquele homem encontrado ao lado do cadáver foi efetivamente o autor do crime. O juiz não julgaria presumindo a autoria do latrocínio, mas sim convicto dela.

Evidentemente, que pode o magistrado estar errado. Pode ele valorar equivocadamente a prova dos indícios e pode operar com uma “premissa maior” não absoluta. Entretanto, o juiz pode errar, da mesma forma, ao valorar os fatos trazidos aos autos pela “prova direta”, vale dizer, avaliando equivocadamente o resultado da produção direta das provas. As testemunhas podem estar mentindo, os documentos podem ser falsos, as perícias podem estar erradas, etc., etc.

Destarte, parece-me que o legislador acertou ao usar a expressão “indução” e não “dedução”.  Aqui, o juiz vai partir do particular – fato indicativo – para INFERIR aquele fato que resta demonstrado nos autos do processo, independente de um outro meio direto de prova. Repito: o juiz não julga por presunção, mas sim com a convicção que os indícios lhe outorgaram. Também neste sentido, vale a pena consultar a monografia da professora Maria Thereza de Assis Moura, intitulada “A prova por indícios no processo penal”. Rio, Lumen Iuris, 2009.

À toda evidência, não estou falando de “verdade” absoluta. Se esta pode realmente ser alcançada, em toda a sua plenitude, jamais se saberá, pois nem a filosofia e nem a ciência vão dar fim a este interessante debate. No processo penal, não se tem a ingênua pretensão de alcançar a verdade absoluta dos fatos, mas sim o desejo de que o juiz forme a sua convicção através dos meios de prova lícitos que são colocados à disposição dos sujeitos processuais.

Pelo que acima acaba de ser dito, de há muito, nós vimos sugerindo substituir a expressão “princípio da verdade real” pela expressão “princípio da busca da convicção do juiz”. Na dúvida, deve o magistrado absolver o réu. Nada obstante, em havendo meios de prova disponíveis, devem ser eles utilizados para afastar tal dúvida, para convencer o juiz da veracidade deste ou daquele fato relevante para o julgamento. O juiz julga acreditando na veracidade dos fatos que valorou. Agora, se eles são efetiva e absolutamente verdadeiros, ninguém saberá. Talvez nem as pessoas envolvidas na prática criminosa saibam exatamente como foi a dinâmica do evento delituoso ...

Ousamos criticar o disposto no artigo 383 do atual Código de Processo Penal Militar, quando exige nexo de causalidade entre o fato indicativo e o fato inferido, não demonstrados pelos meios diretos de prova. Acredito que aqui não há uma relação de causalidade, uma relação física ou mecânica de causa e efeito entre o fato indicativo e o fato indicado. A relação, nesta hipótese, fica apenas no plano subjetivo, no plano do raciocínio lógico do juiz.

Por derradeiro, entendemos ser relevante acentuar que o(s) indício(s), por mais fortes e contundentes que sejam, não são hábeis a provar a própria “existência” do crime – que alguns chamam de materialidade. Nem a confissão, neste particular, supre o exame de corpo de delito (direto ou indireto). Caso os vestígios do crime tenham desaparecido, a prova testemunhal poderá suprir a inexistência da perícia. Isto se depreende da parte final do nosso artigo 239, que se refere à demonstração de “existência de outra ou outras CIRCUNSTÂNCIAS”.  Circunstância não é o fato principal, mas fatos que o cercam ... Outras regras do Código de Processo Penal autorizam esta interpretação sistemática, como se pode depreender dos artigos 158 e 167.

Embora extensa, deixo de fornecer a bibliografia relativa ao tema tratado, tendo em vista que apenas os dois livros citados no texto foram efetivamente consultados. Levando-se em consideração a vastidão de leitura específica que realizamos nestes trinta e sete anos de magistério, fica quase impossível atribuir “paternidade” a esta ou àquela ideia, a este ou aquele conceito aqui apresentados.  Trata-se de uma questão de honestidade intelectual.

 

Rio de Janeiro, dezembro de 2016..


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