A prova emprestada e o respeito ao princípio do contraditório no Código de Processo Civil de 2015 - Por Ricardo Pires

31/10/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

 

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo abordará uma novidade legislativa trazida pelo novel Código Processual Civil brasileiro; a prova emprestada. 

Trata-se, como dito, de previsão inédita no processo civil brasileiro (art. 372 do CPC/2015), pois não havia correspondência do sobredito artigo no antigo Código (1973), sendo, anteriormente, admitida a prova emprestada como prova atípica[1]. 

À obviedade, a admissão da prova emprestada homenageia o princípio da eficiência, já consagrado pela Constituição Federal da República de 1988 e agora também pelo novo Código de Processo Civil, pugnando, mormente, pela economia de tempo e dinheiro, evitando a reprodução de atos probatórios que foram produzidos licitamente em outros litígios. 

Ocorre que, ao admitir a utilização de prova produzida em outro processo, estar-se-ia, supostamente, ferindo outras regras e princípios, como o do contraditório, do devido processo legal, do juiz natural, da oralidade, da imediação, dentre outros. 

2. A PROVA EMPRESTADA NO CÓDIGO DE 1973 

O Código de Processo Civil de 1973 não fazia menção quanto à prova emprestada, sendo tal modalidade, portanto, considerada como atípica pela doutrina e jurisprudência da época, muito embora fosse admitida quase que na totalidade dos casos concretos durante a sua vigência. 

A referida omissão legislativa era superada pela interpretação do art. 332 do Código revogado, que dizia que “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”, abrindo espaço para a admissão da prova emprestada e outras provas atípicas, como a perícia extrajudicial, declarações de terceiros, dentre outras. 

3. A PROVA EMPRESTADA NO CÓDIGO DE 2015 

Segundo a definição do ilustre professor Eduardo Talamini, livre-docente em Direito Processual na USP, “a prova emprestada consiste no transporte de produção probatória de um processo para outro. É o aproveitamento da atividade probatória anteriormente desenvolvida, através do traslado dos elementos que a documentaram”[2]. 

Em linhas gerais, a prova emprestada nada mais é do que a “importação” de prova produzida em outra demanda, para que seja reaproveitada e assim se evite despender tempo e dinheiro para que seja reproduzida. 

Não há como se imaginar o instituto da prova emprestada sem relacioná-lo com o princípio da eficiência, citado alhures. 

Referida inovação do Código de Processo Civil de 2015 veio para sacramentar a prática forense, sendo que o art. 372 tratou de afastar a peche de “prova atípica” da prova emprestada, permitindo ao juiz admiti-la desde que observado o contraditório, assunto central deste artigo. 

Qualquer meio de prova pode ser tomado de empréstimo: depoimento, exame pericial, confissão e inspeção judicial. Não há sentido na importação da prova documental, pois bastará a juntada da cópia do documento[3]. 

Não obstante, consigna-se ainda ser possível trasladar prova produzida em processos de outras naturezas, como trabalhista, penal, administrativo etc. 

4. ATRIBUIÇÃO DE VALOR À PROVA EMPRESTADA 

Concernente ao seu valor probante, após a prova ser trasladada de outro processo, dependerá de análise do juiz, que não possui a obrigação de atribuir valor idêntico a que teve no processo originário. 

Por conta de não estar vinculado ao valor que outro Magistrado atribuiu à prova nos autos de origem, podemos afirmar que a questão da valoração da prova emprestada é bastante controvertida, pois traz uma carga de subjetividade muito alta. 

Segundo preceitua o distinto jurista Fredie Didier Jr. em seu Curso de Direito Processual Civil (vol. 2), a doutrina identifica alguns critérios para a valoração da prova emprestada pelo juiz: 

A)                 A prova emprestada guarda a eficácia do processo em que foi colhida, na conformidade do poder de convencimento que trouxer consigo: se se toma de empréstimo uma perícia, a eficácia da prova emprestada será a de uma perícia etc. 

B)                 A eficácia e a aproveitabilidade da prova emprestada estão na razão inversa da possibilidade de sua reprodução: se a prova pode ser reproduzida, sem maiores custos, a prova emprestada tem diminuído o seu valor probante[4]. 

Tão importante quanto ao valor que se atribuirá à prova, é o respeito ao contraditório, sendo sua observância fundamental para garantir que a utilização da prova emprestada não ferirá de morte o devido processo legal. Vamos avançar a esse ponto. 

5. NECESSIDADE DE SE OBSERVAR O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO 

Sem embargo do quanto alinhavado até o momento, entendemos este como ponto nevrálgico da questão; - o que se entende por “observância ao princípio do contraditório” no caso das provas emprestadas? 

O art. 372 do CPC/2015 não deixa claro do que se trata o contraditório a ser observado nesse caso, ou seja, se o contraditório deve ter sido respeitado no processo de origem, se deve ser respeitado apenas no processo em que se importou a prova, se em ambos etc. 

Segundo Fábio Victor da Fonte Monnerat, em seu livro Introdução ao Estudo do Direito Processual Civil (2ª edição, 2017), o princípio do contraditório é uma garantia constitucional assegurada a todos os litigantes em processo judicial ou administrativo (art. 5º, LV da Constituição Federal), sendo o mesmo essencial ao próprio conceito de processo. 

Segundo o referido professor, a doutrina processual sempre tratou o contraditório como sendo uma garantia das partes de terem conhecimento do processo, somada a possibilidade de as partes poderem reagir aos atos que lhes sejam desfavoráveis, o que recebeu o nome de binômio “informação/reação”. 

Hodiernamente com a vigência do Novo CPC, os doutrinadores passaram a entender o contraditório como tendo outro elemento, tão importante quanto os demais: a cooperação entre as partes. 

Nesse contexto, Cassio Scarpinella Bueno afirma “que o contraditório, no contexto dos ‘direitos fundamentais’, deve ser entendido como direito de influir, de influenciar na formação da convicção do magistrado ao longo de todo o processo”, e, mais adiante, arremata que “o contraditório deve ser entendido como diálogo, como cooperação”. (BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil, v. 1, p. 108). 

O excelso jurista Nelson Nery Jr., apoiado em doutrina alemã, ensina que o contraditório implica paridade de armas, significando que devem ser dadas as mesmas oportunidades para as partes (Chancengleichheit) e os mesmos instrumentos processuais (Waffengleichheit) “para que possam valer seus direitos e pretensões, ajuizando ação, deduzindo resposta, requerendo e realizando provas, recorrendo das decisões judiciais, etc”. (NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal, 8. Ed., p. 188). 

Outro doutrinador da mais alta escol jurídica, o ilustre jurista Cândido Rangel Dinamarco, destaca a dupla destinação da garantia do contraditório imposta pela Constituição, pois, em um primeiro momento o legislador precisa criar os meios pelos quais as partes irão se manifestar e por sua vez o juiz precisa garantir que esse direito será franqueado. 

Com isso, nas palavras do já citado professor Fábio Victor da Fonte Monnerat: em respeito ao princípio constitucional do contraditório, o legislador deve estabelecer, no sistema processual infraconstitucional, ferramentas e instrumentos processuais capazes de permitirem às partes e a todos aqueles que, de algum modo, participem do processo o direito de terem ciência, de participarem, de reagirem e, mais amplamente, cooperarem com ele em todas as fases do procedimento. (MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Introdução ao estudo do direito processual civil – 2. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2017). 

O contraditório está previsto na Constituição Federal da República no inciso LV do art. 5º, que diz: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com meios e recursos a ela inerentes”. 

O Código de 2015 tem o notório condão de reforçar ainda mais a necessidade dos operadores do Direito de observar as regras constitucionais e assim o fez em diversos de seus dispositivos, principalmente nas chamadas “Normas Fundamentais”, previstas do seu art. 1º ao art. 12. 

O art. 10 do Novo Código, portanto, Norma Fundamental, consagra o princípio do contraditório quando diz que “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não tenha se dado as partes oportunidade de se manifestar, ainda que trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. 

Atinente à prova emprestada nos parece cristalino o entendimento de que há a necessidade de se observar e garantir o contraditório tanto no processo de onde se importa a prova, quanto no processo para onde a prova é importada. 

Ademais, há de se considerar que ao importar a prova, o juiz deve abrir prazo razoável à parte contrária (contra quem se utiliza a prova) para que se manifeste sobre a (i) legalidade da prova e (ii) sua validade e aplicação no caso concreto, sob pena de invalidação da importação. 

Como consectário desse entendimento, podemos citar o enunciado n. 52 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, que assim dispõe: 

52. (art. 372) Para utilização da prova emprestada, faz-se necessária a observância do contraditório no processo de origem, assim como no processo de destino, considerando-se que, neste último, a prova mantenha a sua natureza originária. (Grupo: Direito Probatório) 

Além de garantir o contraditório nos dois processos (no processo de origem e no processo destinatário da prova emprestada), o juiz deve manter a natureza originária da prova, ou seja, se a prova foi produzida como perícia no processo de origem, será trasladada como perícia para o processo importador na forma de documento. 

De mais a mais, podemos concluir que o traslado de uma prova somente será lícito se a parte contra quem for utilizada tiver sido parte do processo em que foi produzida. 

Outra hipótese em que é permitida a utilização da prova emprestada é a da importação da prova ter sido requerida por terceiros. 

Nesse caso, entende-se que como nenhuma das partes participou da formação da prova originalmente, qualquer uma delas pode requerer a importação, pois o contraditório seria garantido no processo para onde a prova foi trasladada.  

6. CONCLUSÃO

Em nosso entendimento, a inovação legislativa inserta no art. 372 do CPC/2015 afastou quaisquer dúvidas acerca da possibilidade de utilização da prova emprestada no direito processual civil. Entrementes, poderia o legislador ter definido de forma mais clara o que se entende por “dever de respeitar o contraditório” como previsto no artigo mencionado. 

De toda sorte, podemos considerar um importante avanço na legislação processual, mormente para um Código que anseia tornar o processo mais célere e evitar dispêndios desnecessários e evitáveis, seja de tempo ou dinheiro, como, por exemplo, a realização de audiência de conciliação ou de mediação por meio eletrônico (art. 334, § 7º), a permissão do advogado de realizar sustentação oral por meio de videoconferência (art. 937, §4º), dentre outras louváveis previsões legais. 

Nessa senda, homenagear os tão festejados princípios da eficiência, duração razoável do processo e economia processual é caminhar ao encontro da tão almejada justiça, porquanto esta só poderá ser alcançada de fato quando entregue a tempo à sociedade. 

Justiça demasiadamente tardia é meia justiça! 

Entendemos que a aplicação do instituto da prova emprestada, doravante a vigência do novo CPC, passará a ser mais utilizada no meio forense, dando máxima efetividade às atividades do processo, necessitando, contudo, de controle e observância ao poder instrutório do Magistrado que deverá atribuir justo valor à prova, além de ser definido pela prática jurídica o que se entende de fato por “respeito ao contraditório” – se a prova poderá ser utilizada se oportunizado à parte o direito de se manifestar acerca dela ou se é imprescindível que a parte contra a qual vai ser utilizada tal prova tenha sido parte no processo de origem.



[1] A aceitação da prova atípica, acolhida no Código de 1973, significa a admissibilidade de todos os meios de prova – previstos ou não na legislação – desde que moralmente legítimos.

[2] TALAMINI, Eduardo. “A prova emprestada no processo civil ou penal”. Revista de Processo. São Paulo : RT, 1998, n. 91, p. 93.

[3] DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela / Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira – 12. Ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016. V.2. p. 148.

[4] DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela / Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira – 12. Ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016. V.2. p. 149. 

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