A problemática da constelação familiar em face dos direitos de crianças e adolescentes

16/04/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

O Código de Processo Civil de 2015 apresenta, em seu art. 3º e parágrafos, a possibilidade de utilização da arbitragem, da conciliação e da mediação como métodos de alternativos de resolução de conflitos. A este respeito, cabe mencionar tanto que tais meios buscam diminuir a pressão sobre o viés judicial como único caminho possível, como também não se esgotam naquelas mencionadas espécies, tendo em vista que a lei processual fala em “outros métodos de solução consensual” as quais o Estado pode aderir.

Neste ponto, Neto (2015) explica que, para além de instituir ou direcionar a aplicação de tais técnicas, passou a existir, de forma mais contundente, o anseio na efetiva resolução das disputas entre os jurisdicionados, tendo em vista a mudança de concepção acerca do papel dos métodos autocompositivos no processo.        

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dispôs na Resolução n. 125/2010 sobre a política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses relativos ao Judiciário. Nela, tratou sobre os mecanismos consensuais de solução de litígios como meios de acesso à justiça e eficiência na atuação judicial, enfatizando o emprego da mediação e conciliação neste panorama.

Embora não tenha falado expressamente sobre a aplicação da técnica de constelação familiar, a forma com que abordou o assunto na normativa abriu portas para o seu emprego. No entanto, em 2023, foi noticiado que diversos Tribunais de Justiça estariam usando-a junto às conciliações, bem como investindo em cursos de constelação para juízes e servidores.

A constatação gerou reação, primeiramente, por parte de diversos pesquisadores junto ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e, posteriormente, pelo Conselho Federal de Psicologia[1] quanto à discordância da prática.

O ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida, solicitou, então, ao Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional de Direitos Humanos e aos Ministérios da Mulher e da Saúde que a prática tivesse sua aplicação limitada no âmbito do Judiciário[2] e fosse discutida a pedido da comunidade acadêmica e científica.[3]

Atualmente, o tema encontra-se em análise no CNJ devido a um pedido de providências de autoria da Associação Brasileira de Constelações Sistêmicas, iniciado em 2019, com o fito de regulamentar a prática na esfera do Judiciário.

A partir deste panorama inicial e em sede de direitos da criança e do adolescente, especialmente naqueles processados nas Varas de Família, situa-se este debate atual e que ainda encontra-se inconcluso.

A constelação familiar surgiu a partir da teoria desenvolvida por Bert Hellinger (1925-2019) a qual explica o núcleo familiar a partir da regência de três leis denominadas de ordens do amor: a da ordem, a do pertencimento e a do equilíbrio.

A primeira explica que as gerações mais antigas da família possuem preferência sobre as mais atuais. A segunda, que, independentemente de se encontrarem vivos ou não, todos estão ligados e possuem o direito de pertencer a uma família. A terceira expõe que, mesmo diante de algum fator de perturbação do sistema familiar, os indivíduos agem de tal forma a recuperá-lo, instigados pelo próprio sistema.

Os problemas de ordem emocional e relacional existentes no sistema familiar decorreriam do desequilíbrio entre as regras mencionadas, fazendo com que um determinado padrão comportamental se instalasse e se repetisse inconscientemente por gerações.

Com isto, a realização da constelação teria como objetivo a transformação do problema compartilhado por membros da família a partir da dramatização de determinada situação existente em seu interior. A vivência consciente permitiria, então, o alinhamento das ordens do amor e, portanto, o encaminhamento à resolução buscada.

Porém, na prática, há diversos óbices ao seu manejo e, antes, à sua aceitação conforme dito anteriormente decorrentes destes mesmos fundamentos.

O primeiro deles se refere à adoção da noção de família a partir de um viés patriarcal e unicamente sob o modelo tradicional de pai, mãe e filhos. Neste sentido, cada indivíduo teria uma função a desempenhar no núcleo familiar. Contudo, ao empregar este tipo de perspectiva, reforçaria a desigualdade e os papéis de gênero, contribuindo para a sua manutenção no interior da família e da sociedade.

Esta aplicação já se apresenta como verdadeira violência contra a mulher, observando-se que a intransigência referente ao estereótipo de gênero se constitui como uma das causas de ocorrência da violência doméstica.[4] Tal colocação merece destaque no presente contexto, relembrando o fato de que violências e efeitos da desigualdade sofridos pelas mulheres mães invariavelmente afetam, no campo emocional e/ou material, seus filhos.[5]  

O dano que tal ação geraria em relação às crianças e adolescentes não se restringe a isto: deve-se mencionar o disciplinamento ao que é esperado do seu gênero, incidindo em uma homofobia implícita (ou não), e, igualmente, uma prática associada ao adultocentrismo que entende a criança como um ser inferior e que só deve obedecer, atingindo a sua integridade psíquica e moral e o desenvolvimento da sua autonomia.

Além disso, enfatiza como única configuração familiar possível àquela composta por pai, mãe e filhos, desprezando outros modelos de família existentes, contribuindo para sua invisibilização, discriminação e, mesmo, um retrocesso às conquistas relativas ao reconhecimento da diversidade familiar.

Tal concepção, inclusive, expressa um posicionamento contrário ao da própria Constituição Federal de 1988, no que tange aos princípios da igualdade, da não discriminação, da pluralidade familiar e da função social da família. Da intervenção analisada no núcleo familiar, portanto, pode-se afirmar que também prejudica o direito da criança e do adolescente à participação na vida familiar.  

Um segundo ponto problemático trata da naturalização de violências outras que não a de gênero, mas como o abuso sexual cuja contextualização pode revelar-se como manutenção ou restauração de um papel, fugindo ao aspecto de violação de direito. Sobre isto, necessário dizer que a constelação familiar pode acarretar em revitimização frente ao Judiciário.

Em uma terceira colocação e, talvez, o principal argumento contrário à constelação familiar há a ausência de emprego do método científico em sua validação. Embora haja alguns estudos a respeito dos efeitos da adoção da constelação familiar, o grupo amostral utilizado é pequeno para permitir afirmações de caráter ampliado.[6]

Apesar de amparar-se em diferentes áreas do saber, como a Psicologia e a Física Quântica, não apresenta evidências de qualidade de suas premissas e nem uso de métodos confiáveis de verificação, razão pela qual as vozes favoráveis ao seu distanciamento dos casos judiciais a denominam como pseudociência (GUAGLIARIELLO; FRANÇA, 2021).

Reforça-se que, ao entender incompatível com o exercício da Psicologia, o conselho da classe atribui à prática a carência de determinados pressupostos éticos e instrumentais existentes naquela ciência.

Assim, verifica-se com preocupação tal posição tomada por parte do Judiciário. A uma, pela aceitação de uma proposta sem o conhecimento profundo de suas bases a título de obedecer ao preceito legal, ausente qualquer rigor no critério de adoção. A duas, porque, dada a proposta de cura oferecida pela constelação, aparenta existir uma solução que foge à alçada do julgador, qual seja a superação ou entendimento de existência de danos emocionais e/ou psicológicos. A três, pois, ainda que não se possa negar a influência do viés psicológico no encaminhamento de situações diversas das vidas das pessoas, sobretudo nas Varas de Família, o remédio não pode passar desatrelado dos cenários social, racial, de classe, de gênero, entre inúmeros outros que compõem e afetam de modos diferentes essas mesmas vidas.[7] A quatro, porque tende a corroborar diversas desigualdades que atravessam a realidade material dos sujeitos, fazendo com que problemas estruturais sejam assumidos como questões meramente pessoais ou familiares, como o feminicídio, o casamento infantil, o aborto legal e a violência doméstica.

Por fim, conclui-se que a aplicação da constelação familiar é potencialmente nociva aos direitos humanos, destacando-se o de mulheres e crianças[8].

 

Notas e referências

BAILAS, GABRIELA. Física e afins. Constelação familiar: uma prática perigosa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OYOWWAPjpmE&t=1825s. Acesso em: 04 abr. 2024.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Nota técnica n. 1/2023. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2023/03/Nota-Tecnica_Constelacao-familiar-03-03-23.pdf. Acesso em: 04 abr. 2024.

CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Nota pública do CONANDA sobre o uso da constelação familiar no âmbito do Judiciário. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/blob/baixar/32448.Acesso em: 04. Abr. 2024.

GOUVEIA, Juliana; BERNARDI, Karol. Agência Pública. Tribunais de Justiça no Brasil gastaram R$ 2,6 milhões com constelação familiar. 25/09/2023. Disponível em: https://apublica.org/2023/09/tribunais-de-justica-no-brasil-gastaram-r-26-milhoes-com-constelacao-familiar/. Acesso em: 04 abr. 2024.

GUAGLIARIELLO, Marina Garcia; FRANÇA, Mateus Cavalcante de. Em busca de um fundamento científico: uma análise de justificativas do uso das constelações familiares por agentes do campo jurídico (se houver). In: Anais do III Encontro Virtual do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito. JUNIOR, Eloy Pereira Lemos; SILVA, Marcos Alves da; CARDIN, Valéria Silva Galdino (coords.). Florianópolis: CONPEDI, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3zjfung. Acesso em: 04 abr. 2024.

INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO. Dossiê “Violência contra as mulheres”. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-domestica-e-familiar-contra-as-mulheres/#dados-nacionais. Acesso em: 04 abr. 2024.


Lessa Neto, José Luiz
. O novo CPC adotou o modelo multiportas!!! E agora?!. Revista de Processo: RePro, São Paulo, v. 40, n. 244, p. 427-441, jun. 2015. Disponível em: https://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RPro_n.244.17.PDF. Acesso em: 04 abr. 2024.

RITNNER, Daniel. CNN Brasil. Ministro leva debate sobre supostos abusos em “constelação familiar” para Conselho de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ministro-leva-debate-sobre-supostos-abusos-em-constelacao-familiar-para-conselho-de-direitos-humanos/. Acesso em: 04 abr. 2024.

SANZ, Raphael. Fórum. Afinal, constelação familiar é ou não é uma pseudociência?. Disponível em: https://revistaforum.com.br/ciencia-e-tecnologia/2023/10/2/afinal-de-contas-constelao-familiar-ou-no-uma-pseudocincia-145113.html. Acesso em: 04 abr. 2024

SGARBI, Aline. CNN Brasil. Desigualdade de gênero gera sobrecarga materna e impacta desenvolvimento de crianças, dizem especialistas. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/maes-sobrecarregadas-infancias-negligenciadas/#:~:text=Desigualdade%20de%20g%C3%AAnero%20gera%20sobrecarga,crian%C3%A7as%2C%20dizem%20especialistas%20%7C%20CNN%20Brasil. Acesso em: 04 abr. 2024.

SENADO FEDERAL. Constelação familiar e cura sistêmica. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=22872. Acesso em: 04 abr. 2024.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE REUMATOLOGIA. CFM emite nota sobre inclusão de terapias alternativas pelo SUS. Disponível em: https://www.reumatologia.org.br/noticias/cfm-emite-nota-sobre-inclusao-de-terapias-alternativas-pelo-sus/. Acesso em: 04 abr. 2024.

[1] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Nota técnica n. 1/2023. Disponível em: https://site.cfp.org.br/em-nota-tecnica-sistema-conselhos-destaca-incompatibilidades-no-uso-da-constelacao-familiar-como-pratica-da-psicologia/

[2] O Ministério da Saúde, por meio da Portaria n. 702/2018, já havia autorizado a inclusão de um rol de terapias alternativas a serem disponibilizadas no Sistema Único de Saúde, dentre as quais a constelação familiar. Sobre isto, o Conselho Federal de Medicina já havia manifestado posição contrária em nota, disponível em: https://www.reumatologia.org.br/site/wp-content/uploads/2018/03/Nota-CRM-sobre-Terapias-Alternativas-pelo-SUS.jpg

[3] Acrescente-se que, em 2022, ocorreu audiência pública por iniciativa do senador Eduardo Girão sobre a validade da constelação familiar enquanto elemento de política pública que encontra-se disponível para visualização em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=22872

[4] Dossiê “Violência contra as mulheres” realizado pelo Instituto Patrícia Galvão. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-domestica-e-familiar-contra-as-mulheres/#dados-nacionais

[5] SGARBI, Aline. CNN Brasil. Desigualdade de gênero gera sobrecarga materna e impacta desenvolvimento de crianças, dizem especialistas. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/maes-sobrecarregadas-infancias-negligenciadas/#:~:text=Desigualdade%20de%20g%C3%AAnero%20gera%20sobrecarga,crian%C3%A7as%2C%20dizem%20especialistas%20%7C%20CNN%20Brasil

[6] Comentário feito pela física e pesquisadora Gabriela Bailas.

[7] Assim o é que, a título de exemplo, o Protocolo de Gênero do CNJ visa evidenciar a realidade das mulheres em termos de desigualdade e que deve ser levada em conta na condução e decisões dos julgadores.

[8] O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) também se posicionou, em 2023, pela não utilização da constelação familiar.

 

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