Coluna semanal: A teoria se aplica na prática
Coordenador: Thiago Minagé
Ao longo dos anos, é possível observar uma crescente tendência ao recrudescimento penal, a qual pode, dentre os vários fatores que capazes de ensejá-la, ser consequência do alargamento paulatino da criminalidade nacional. A resposta penal mais gravosa é apresentada como o remédio perfeito para obstar tal cenário, de modo a aquietar os anseios sociais, que clamam pela solução da sensação de perigo.
O clamor popular como agente central para promover a intensificação da intervenção punitiva gera forte influência motora ao Poder Legislativo, o qual passa a apresentar e discutir projetos de novas leis e/ou emendas à Constituição. Em que pese o processo de formação de leis ter como característica cerne a isenção de ideologias, com o fito de sempre promover o melhor regramento à toda a população, é notável que cada vez mais são trazidas à baila questões enviesadas pelas vontades de parcelas da população, as quais representam tão somente a vontade desse fragmento social.
Supostamente pautado nos frágeis argumentos do fortalecimento da justiça e da equidade, permitir a prisão de cidadãos por determinados crimes de forma automática acaba violando o princípio constitucional da presunção de inocência.
Isso porque há em nossa República – por uma escolha política de cunho internacional - o estado de inocência, o que significa que que todo cidadão nasce inocente e só perde essa proteção de direitos humanos com uma decisão condenatória transitada em julgado. Na verdade, o constituinte em 1988, no artigo 5º, inciso LVII, apenas reproduziu o entendimento existente mundialmente desde 1789 no artigo 9º da declaração dos direitos do homem e do cidadão.
A adoção da presunção de inocência se deu para permitir um julgamento justo, na medida em que a lógica da presunção de culpa, sobre a qual se construiu o “sistema inquisitivo romano-canônico”, tornava dificílima a absolvição.[1]
Não obstante toda luta e garantias conquistadas no passado, o que se presencia atualmente, e pode se pressupor cada vez mais no futuro, é que caminhamos paulatinamente para o retrocesso: como resposta aos anseios da população que se diz imune a prática de qualquer infração penal, são propostos agravamentos a legislação criminal.
Primeiro, permitiu-se – ainda que por curto período - a prisão antecipada por órgão colegiado sem o trânsito em julgado; já no ano de 2019, foi prevista a prisão antecipada por decisão do Tribunal do Júri com pena superior a 15 (quinze) anos[2] em respeito a soberania dos vereditos e, mais recentemente, o projeto de lei 714/2023, em trâmite na Câmara dos Deputados, apensados aos PL´s 991/2024, 1328/2024 e 2988/2024, que pretende modificar o artigo 310 do Código de Processo Penal para tornar obrigatório a decisão denegatório do pedido de liberdade provisória nos casos de crimes hediondos, de roubo e de associação criminosa qualificada.
Até que ponto a busca por segurança pública justifica o sacrifício de garantias individuais e o desrespeito a princípios constitucionais? Essa é a questão principal acerca do perigoso Projeto de Lei 714/2023 e seus 03 apensos.
O primeiro e claro retrocesso proposto é para ampliar o prazo para realização da audiência de custódia de 24 (vinte e quatro) horas para 72 (setenta e duas) horas, em clara violação a resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça.[3]
A audiência de custódia, tardiamente introduzida no Brasil no ano de 2015, representa um instrumento fundamental para garantir os direitos dos presos objetivado avaliar a legalidade, necessidade e a adequação da continuidade da prisão, além de servir para comunicar os excessos eventualmente cometidos durante a prisão.
Nas palavras do professor Thiago Minagé, “o controle judicial imediato de uma prisão cautelar acaba por se tornar uma verdadeira medida tendente a evitar arbitrariedade ou ilegalidade das respectivas prisões (...)”.[4]
Caminhando a passos largos para o passado, o PL 714/2023 impõe a prisão preventiva como regra e sem a devida análise da necessidade e da proporcionalidade da medida, com a seguinte redação para o parágrafo 2º do artigo 310 do CPP:
§ 2° Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, ou nos casos em que o agente for acusado de cometimento de crimes hediondos, roubo ou associação criminosa qualificada, a liberdade provisória deverá ser denegada, com ou sem medidas cautelares.
O projeto apresenta sérias preocupações em relação ao sistema de justiça criminal brasileiro e aos direitos fundamentais dos cidadãos. A violação ao princípio da presunção de inocência, um pilar fundamental do nosso sistema legal e consagrado na Constituição Federal, é sem dúvidas a mais preocupante.
Em um cenário que torne obrigatória a prisão preventiva em casos específicos, como crimes hediondos e reincidência, há completa afronta à essa garantia fundamental. Na prática, inverte-se o ônus da prova, tratando o acusado como culpado até que prove sua inocência, o que resultará em prisões injustas e desnecessárias, ferindo o direito à liberdade de indivíduos.
Outro ponto crítico é o agravamento da superlotação carcerária. O sistema prisional brasileiro já se encontra em uma situação alarmante, com presídios superlotados, operando muito além de sua capacidade, em condições degradantes e insalubres. Dessarte, o aumentar do número de prisões preventivas ocasiona direta contribuição para a piora dessa realidade.
O projeto representa um evidente aumento do poder punitivo do Estado em detrimento das garantias individuais. Ao restringir o direito à liberdade e tornar obrigatória a decretação da prisão preventiva, o projeto abre espaço para abusos e excessos. Em um sistema em que a prisão se torna a regra e não a exceção, aumenta-se o risco de pessoas serem presas injustamente até o trânsito em julgado quando, então, dificilmente serão absolvidas.
É imperativo reconhecer que a aplicação da prisão preventiva deve ser reservada a casos excepcionais, nos quais haja risco concreto à ordem pública, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal, conforme preconiza o Código de Processo Penal. A gravidade do crime, por si só, não justifica a privação da liberdade de um indivíduo antes do devido processo legal e do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. O PL 714/2023, ao tornar obrigatório a decretação da prisão preventiva, inverte essa lógica, transformando-a em regra a prisão.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, evidenciando que a lógica do encarceramento em massa não tem se mostrado eficaz na redução da criminalidade. É necessário atuar na prevenção do crime, na educação, na inclusão social e na garantia de direitos básicos à população. É mister combater as causas da criminalidade, e não apenas seus efeitos, por meio de ações que promovam a cidadania, o desenvolvimento social e a justiça social. A construção de uma sociedade mais justa e segura depende do compromisso com a efetivação de direitos humanos e da garantia de um sistema de justiça criminal que priorize a reintegração social e a ressocialização do indivíduo, em detrimento da punição exacerbada e da estigmatização social.
Avanços importantes conquistados no sistema de justiça criminal brasileiro, como a audiência de custódia e as medidas cautelares alternativas à prisão foram resultado de anos buscando lapidar um sistema que busca punir a qualquer custo. Ao priorizar o encarceramento em massa, a medida reforça ainda mais a lógica punitiva que tem se mostrado ineficaz no combate à criminalidade.
O projeto representa um perigoso retrocesso para o sistema de justiça criminal brasileiro. Ao ferir o princípio da presunção de inocência, agravar a superlotação carcerária, desrespeitar tratados internacionais de direitos humanos e ignorar a complexidade do problema da criminalidade, a proposta demonstra uma visão meramente punitiva e ineficaz.
A medida aposta no encarceramento em massa como solução simplista para um problema complexo. É preciso resistir a essa ideologia e defender um sistema de justiça que garanta a liberdade, a dignidade e os direitos e garantias fundamentais. Urge reafirmar o compromisso com um sistema de justiça criminal mais justo, humano e eficaz para que a busca por segurança não se faça às custas da liberdade e da justiça.
Não podemos deixar ficar tarde para nos preocuparmos como as mudanças propostas pela Câmara dos Deputados para atender os anseios popular. Devemos agir, como alerta o poema “é preciso agir” de Bertold Brecht.[5]
Notas e referências:
[1] De Moraes, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência no processo penal Brasileiro: análise da estrutura normativa para elaboração legislativa e para a decisão judicial. Ed. Lumen Juris:2010. Rio de Janeiro. p.60
[2] Artigo 492, I, “e” do Código de processo penal.
[3] Art. 1° Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.
[4] Minagé, Thiago M. Prisões e Medidas Cautelares à luz da constituição. 6 ª Ed – São Paulo: Tirant lo blanch, 2024. P. 261.
[5] Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo
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