A prisão de caráter perpétuo ante a proporcionalidade da pena

12/05/2018

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes apresentou na última terça-feira (8) projeto de segurança pública ao Congresso Nacional, no qual inclui uma proposta para aumentar de 30 (tinta) para 40 (quarenta) anos o tempo máximo para cumprimento de pena no país.

O ministro Alexandre de Moraes, que já foi Secretário de Segurança Pública de São Paulo e Ministro da Justiça de Temer, afirmou que o aumento de tempo máximo de prisão de 30 para 40 anos é uma adequação necessária. Para o ministro do STF, a expectativa de vida das pessoas aumentou muito, desde a vigência do Código Penal de 1940. Se o cidadão vive mais, logo pode passar mais tempo na prisão, argumenta o ministro.

Atualmente, segundo o Código Penal (CP) “o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos” (art. 75 do CP). Ainda, de acordo com o parágrafo primeiro do artigo 75 do CP, “quando o agente for condenado a pena privativa de liberdade cuja soma seja superior ao início do cumprimento da pena a 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo”.

Necessário destacar que a fixação do limite já extremamente elevado de 30 (trinta) anos é uma decorrência do princípio da humanidade. Já salientou Rui Barbosa que a prisão por trinta anos é eufemismo da pena de morte.

O princípio da humanidade trata-se de um verdadeiro coroamento dos demais princípios fundamentais e constitucionais penais. A Constituição da República, ao instituir um Estado Democrático de Direito tendo como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III), bem como a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, inc. II), além de vedar a cominação de pena de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis (art. 5º, inc. XLVII), consagrou o princípio da humanidade ou da “proscrição da crueldade”.

No que diz respeito especificamente a vedação de pena de “caráter perpétuo” (art. 5º, inc. XLVII, al b da CR) deveria impedir - em razão de evidente inconstitucionalidade - no âmbito do Congresso Nacional, a proposição de projetos de lei que visassem aumentar a pena para além do patamar máximo de trinta anos, previsto no Código Penal.[1] Aliás, conforme a idade do condenado, considerando a expectativa de vida – que na prisão é bem inferior – a prisão por vinte ou trinta anos constitui verdadeira prisão perpétua.

Referindo-se a execução da pena privativa de liberdade e a medida de segurança, Paulo Queiroz é categórico ao afirmar que as execuções de ambas (inclusive da prisão cautelar) em “condições degradantes em presídios que não ofereçam as condições mínimas de higiene, salubridade etc. são francamente ofensivas do princípio em causa, podendo dar ensejo à concessão de habeas corpus ou para que se cumpra a lei em prazo razoável (transferência de presídio, por exemplo), ou para progredir de regime ou para ser posto o paciente em liberdade (...)”[2]

Cesare Beccaria, em sua pequena grande obra “Dos Delitos e das Penas[3] (escrito em 1763 e publicado em 1764) referia-se à limitação do poder punitivo do Estado e a necessidade de humanizar as penas. Beccaria já no século XVIII sustentava a necessidade de haver uma proporção entre os delitos e as penas. Deste modo, o castigo (a pena) deveria, sempre, guardar uma proporcionalidade com o mal (dano) causado pelo delito.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 estabelece que “A lei não deve estabelecer mais do que penas estritamente e evidentemente necessárias” (art. 8º).

Numa concepção garantista, Luigi Ferrajoli sustenta que a pena de prisão perpétua e as penas pecuniárias, pelas suas naturezas, são contrárias ao princípio da proporcionalidade e da igualdade das penas. A primeira, porque é desumana e não graduável equitativamente pelo juiz. A segunda revela-se desproporcional por inexistir qualquer proibição penal informada pelo princípio de economia ou de necessidade. [4]

O princípio da proporcionalidade pode ser concebido sobre três aspectos: 1º) proporcionalidade abstrata (ou legislativa); 2º) proporcionalidade concreta ou judicial (ou individualização) e o 3º) proporcionalidade executória. A proporcionalidade abstrata dar-se a quando o legislador define as sanções (penas e medidas de segurança) mais apropriadas (seleção qualitativa) e quando estabelece a graduação (mínima e máxima) das penas cominadas aos crimes (seleção quantitativa). A proporcionalidade concreta (individualização judicial), conforme a nomenclatura, é aquela feita pelo julgador no momento da aplicação da pena. Por fim, a proporcionalidade executória que ocorre durante o cumprimento da pena, na fase da execução penal. Assim, no dizer de Paulo Queiroz, têm o princípio da proporcionalidade três destinatários: o legislador, o juiz e os responsáveis pela execução penal. [5]

Em relação à proporcionalidade abstrata[6], é necessário destacar que o legislador não está livre ou, melhor, desvinculado dos princípios limitadores do poder de punir, bem como dos princípios constitucionais e garantistas, para ao seu bel prazer estabelecer a pena que lhe convier. Quando da cominação da pena o legislador deve verificar e ponderar a relação entre a gravidade da ofensa ao bem jurídico e a pena que deverá ser imposta ao infrator. Como salientou Beccaria, não se pode punir do mesmo modo aquele que mata um homem e aquele que mata um faisão. Lembrando, ainda, que uma das consequências do princípio da lesividade é a proibição de incriminação de condutas que não afeta qualquer bem jurídico. Não pode, assevera Alberto Silva Franco, “o legislador penal determinar, de modo desproporcionado e desequilibrado, a medida da pena.” [7] Assim sendo, no dizer de Juarez Tavares[8]o arbítrio do legislador em fixar limites de penas em completa desatenção ao dano social que as respectivas condutas acarretam, adotando critérios divergentes para fatos iguais e critérios mais rigorosos para fatos menos graves e vice-versa” deve ser limitado em face dos princípios da proporcionalidade e da necessidade da pena[9].

A primeira dificuldade decorrente da escolha feita pelo legislador, in abstracto, da pena em relação à gravidade do delito corresponde, justamente, à noção de “gravidade” do delito. [10] Existindo, segundo Ferrajoli, duas orientações: uma “objetivista”, que mede a gravidade do delito e, consecutivamente, a da pena pelo dano causado; outra “subjetivista”, que mede pelo grau da culpabilidade. A despeito do sistema garantista (SG), abarcar ambos os princípios (ofensividade e culpabilidade) e de que na fixação dos limites da pena deva ser considerado tanto o dano como a culpa, o problema reside, segundo Ferrajoli, no peso que se atribui a cada um dos dois critérios em relação ao outro. [11]

Contudo, Ferrajoli assevera que a maior dificuldade se encontra na fixação dos limites máximo e mínimo da pena determináveis conforme os dois critérios mencionados. “Se a pena é quantificável, não é quantificável o delito”.

Em relação à pena mínima cominada, melhor seria se a lei não estabelecesse um mínimo legal[12] ou que a pena mínima prevista para cada tipo penal, por questão de segurança jurídica e para vincular o juiz, fosse cominada no menor grau possível (um ano, por exemplo) ou que ficasse determinado, expressamente, que o julgador atendendo a culpabilidade do agente pudesse fixar a pena abaixo do mínimo legal, isto, independente do reconhecimento de causa de diminuição da pena ou de atenuante. O mínimo previsto em lei deveria ser acatado apenas como um norte, uma referência para o julgador, posto que em alguns casos a reprovabilidade decorrente da culpabilidade, que se atribui à conduta do agente (considerando a ofensa ao bem jurídico), é inferior àquela atribuída, ainda que mínima, pela lei.

No que diz respeito à pena máxima cominada, Ferrajoli sustenta que a mesma, qualquer que seja o crime, não deveria ultrapassar de dez anos. De acordo com Ferrajoliuma redução deste gênero suporia uma atenuação não só quantitativa, senão também qualitativa da pena, dado que a ideia de retornar à liberdade depois de um breve e não após um longo ou um interminável período tornaria sem dúvida mais tolerável e menos alienante a reclusão”.[13]

Segundo Roxin[14] a exigência de que a pena não pode ser em nenhum caso superior a culpabilidade do autor, é reconhecida na Alemanha de forma absolutamente majoritária.  De acordo com o penalista alemão, uma pena que ultrapassa a medida da culpabilidade atenta contra a dignidade do homem.

A prosperar os argumentos do ministro Alexandre de Moraes, cada vez que a perspectiva de vida aumentar o limite de cumprimento da pena deveria aumentar. Em hipótese fictícia, mas apenas por amor ao debate e no campo filosófico, caso os homens se tornassem imortais[15] a pena, pelo argumento do ministro, se perpetuaria.

Necessário salientar que a expectativa de vida do preso, por inúmeros fatores, é bem menor do que daqueles que se encontram em liberdade. É comum uma pessoa presa com idade fisiológica de 50 anos, aparentar uma idade bem mais avançada. A dura realidade que antecedeu sua chegada à prisão e a vida dentro do cárcere levam a uma velhice precoce.[16]

A proposta defendida pelo ex-ministro da Justiça e atual ministro do STF afronta a Constituição da República, notadamente os princípios da proteção da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade da pena, além de não encontrar amparo, nem mesmo, nas teorias que buscam justificar a pena. Como bem já salientou Tobias Barreto, “Quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra”.

Por tudo, principalmente por seu caráter inconstitucional, a indecorosa proposta do ministro Alexandre de Moraes e do grupo de “juristas” por ele coordenado, com o aval do deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, deve ser recusada pelo Congresso Nacional em nome do próprio Estado Democrático de Direito.

Notas e Referências

[1] ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: primeiro volume – Teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 233.

[2] QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 32.

[3] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 323.

[5] QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 36.

[6] Para HASSEMER os limites do marco penal determinados legalmente nada têm a ver com o princípio da proporcionalidade. Estes limites, segundo ele, são contrários ao conceito de ressocialização. Não se dão em interesse do condenado, mas em interesse da comunidade. “Es en el marco penal y, especialmente em los limites mínimos de ese marco, donde se puede ver el valor que el legislador penal concede al bien jurídico.” (HASSEMER, Winfried. Fundamentos del derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde. Madrid: Bosch, 1984, p. 361).

[7] SILVA FRANCO, Alberto. A reforma da parte especial do Código Penal: propostas preliminares. RBCCrim n. 3, São Paulo, p. 73.

[8] TAVARES, Juarez. Critérios de seleção de crimes e cominação de penas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, dez. 1992, (Edição especial de lançamento), p. 84.

[9] De acordo com TAVARES “mais do que um critério adicional da culpabilidade, a exigência da necessidade da pena passou a ser, contudo, um princípio geral de Direito Penal, que obriga o legislador” (ob.cit. p.81). JUAREZ TAVARES apresenta, ainda, vários exemplos nos códigos penais de inúmeras cominações que se afastam da relação de proporcionalidade que deve haver entre o crime e a pena.  (cf. ob. cit. P. 84).

[10] FERRAJOLI, ob. cit., p. 321.

[11] Idem, ibidem.

[12] Neste sentido FERRAJOLI, ob. cit., p. 321. Também Paulo Queiroz para quem “o grande compromisso do juiz garantista não é, portanto, com a pena mínima, mas com a pena justa”. Para Queiroz, se o juiz pode absolver o acusado, em razão da insignificância da ação, pode, também, aplicar pena aquém do mínimo legal. (Direito penal: parte geral.  ob. cit., p. 329).

[13] FERRAJOLI, ob. cit., p. 332.

[14] ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Trad. y notas Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y Garcia Conlledo y Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p 100.

[15] Na literatura encontramos exemplo de “imortalidade” no romance/ficção de SIMONE de BEAUVOIR “Todos os Homens são Mortais”, um personagem do século XIII, o conde Fosca, desafia o tempo e chega até os dias de hoje questionando tópicos inerentes à natureza humana, tais como a ambição, o poder, a imortalidade, o prazer, o destino e a transcendência.

[16] Disponível em:< https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/185174319/o-carcere-e-o-envelhecimento-do-preso

 

Imagem Ilustrativa do Post: Krisis // Foto de: Stefano Pollio // Sem alterações

Disponível em: https://unsplash.com/photos/ZC0EbdLC8G0

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura