Dentre as normas fundamentais constantes do CPC-15 está o denominado Princípio da Primazia do Julgamento do Mérito, norma que se extrai do texto do seu art. 4º (dentre vários outros dispositivos existentes ao longo do diploma processual), que assevera que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.
É de se perceber, que referido princípio não tem lugar apenas no primeiro módulo do processo de conhecimento (da propositura da demanda até a prolatação da sentença), mas sim em todas as fases do processo, notadamente na fase recursal, porquanto o mérito do recurso deve ser julgado superando-se eventuais vícios formais, seja efetuando correções, seja, inclusive, desprezando os vícios existentes, sempre na busca da resolução do mérito recursal.
É que, como se vê pela leitura do art. 4º, “as partes têm o direito de obter [a] solução integral do mérito”. O processo é um método de resolução do caso concreto, e não um mecanismo destinado a impedir que o caso concreto seja solucionado. Assim, deve-se privilegiar, sempre, a resolução do mérito da causa. Extinguir o processo sem resolução do mérito (assim como decretar a nulidade de um ato processual ou não conhecer de um recurso) é algo que só pode ser admitido quando se estiver diante de vício que não se consiga sanar, ou por ser por natureza insanável, ou por se ter aberto a oportunidade para que o mesmo fosse sanado e isso não tenha acontecido.[1]
A percepção de que tal princípio tem lugar em todas as fases do processo é importantíssima, inclusive para se superar a dicotomia antes existente entre a instância ordinária e a excepcional, quando se afirmava que naquela os vícios processuais deveriam ser sanados, enquanto nesta não havia mais possibilidade da correção de vícios. Parece que essa distinção não mais encontra lugar no atual sistema processual, não se se levar a sério o que o novo diploma processual tem como fundamental à sua interpretação e aplicação.
É manifesto que o atual Código de Processo Civil propugna a primazia do julgamento do mérito em qualquer fase do processo, máxime, na fase recursal, bastando consultar o que inserto nos arts. 938, § 1º, art. 932, parágrafo único e, como uma grande novidade do diploma atual, no art. 1.029, § 3º, que possibilita a sanação ou o desprezo de vícios processuais, ainda que formais, em sede Recurso Especial e Recurso Extraordinário, instância excepcional, portanto.
A despeito de ser evidente que o princípio da primazia do julgamento de mérito é da essência do modelo comparticipativo de processo e de que o novo diploma o tem como norma fundamental do processo civil, recentemente o Superior Tribunal de Justiça, sem enfrentar detidamente seus precedentes anteriores, tampouco interpretar o novo diploma processual à luz da Constituição Federal – como determina, inclusive, o art. 1º do CPC-15 – passou a decidir que a comprovação do feriado local somente pode ser feita no ato da interposição do recurso, sendo insanável esse vício mediante a interposição de agravo regimental (interno).
A 1ª Turma do STJ, por maioria de votos, negou provimento a um agravo interno (AResp 1004793/MS), que pretendia fazer valer a regra de que, uma vez ausente a comprovação de feriado local na peça de interposição do recurso, poderia o recorrente corrigir o defeito, com base no disposto no art. 932, parágrafo único, do CPC/2015.
Decidiu aquela turma que, com a previsão expressa do § 6º do art. 1.003 do CPC/15, ficou superada a jurisprudência do STJ, firmada ainda sob a égide do CPC/73, que admitia a comprovação da tempestividade do recurso, em se tratando de contagem de tempo com feriado local, por meio de agravo interno contra a decisão monocrática que tivesse decidido pela intempestividade do recurso.
O relator, Min. Gurgel de Faria, destacou que, em tal hipótese, não se aplica a regra do art. 932, parágrafo único, do CPC/15, na medida em que o legislador, de forma expressa, vetou a possibilidade de correção posterior do vício relativo à intempestividade do recurso quando da existência de feriado local no transcurso do prazo.
Afirmou, ainda, que a segunda turma do STJ também possui julgado no mesmo sentido, como se percebe da transcrição abaixo:
IV. O CPC/2015 não possibilita a mitigação ao conhecimento de recurso intempestivo. De fato, nos casos em que a decisão agravada tenha sido publicada já na vigência do novo CPC, descaberia a aplicação da regra do art. 932, parágrafo único, do CPC/2015, para permitir a correção do vício, com a comprovação posterior da tempestividade do recurso. Isso porque o CPC/2015 acabou por excluí-la (intempestividade) do rol dos vícios sanáveis, conforme se extrai do seu art. 1.003, § 6º (“o recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso”), e do seu art. 1.029, § 3º (“o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça poderá desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave”). (AgInt no REsp 1638816/PE, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, DJe 06/04/2017)
Ambos os julgamentos, com o devido respeito, partem de premissas equivocadas e desprezam, sobremodo, a primazia do julgamento do mérito, bem como o modelo constitucional de processo. Afirma o trecho acima transcrito, que o CPC-15 excluiu a intempestividade do rol dos vícios sanáveis, para tanto busca fundamento no art. 1.003, § 6º e no art. 1.029, § 3º, tudo a afastar a aplicação da regra inserta no art. 932, parágrafo único do CPC-15.
Não parece, contudo, que o vício em questão seja de intempestividade, tampouco que haja regra expressa impondo que a comprovação do feriado local seja feita apenas e exclusivamente no ato da interposição do recurso. Não se extrai do art. 1.003, § 6º do CPC-15 que o recorrente somente poderá comprovar a existência do feriado local no ato da interposição do recurso, mas que ele comprovará a existência deste feriado quando da interposição do recurso.
Indaga-se: como se comprova a existência de feriado local no ato da interposição do recurso? No comum dos casos, para não se afirmar que em todos, essa comprovação é feita documentalmente, ou seja, a comprovação da existência de feriado local consiste na juntada de um documento à peça de interposição, documento este apto a comprovar a existência de feriado local.
Percebe-se, com essa constatação, que a ausência de comprovação de feriado local no ato da interposição do recurso consiste na ausência da juntada de um documento ao recurso interposto, vício de forma, perfeitamente sanável, inclusive na instância excepcional, bastando atender ao que preceituado no art. 932, parágrafo único do CPC-15, ou ainda, com mais especificidade, à regra inserta no art. 1.029, § 3º do diploma processual vigente.
É que o vício acerca da não comprovação do feriado local no ato da interposição do recurso embora possa parecer, não é de intempestividade, mas de forma. Trata-se, em verdade, da ausência de outro requisito de admissibilidade extrínseco do recurso, qual seja, a regularidade formal (juntada da comprovação da existência de feriado local) e não de um recurso extemporâneo.
Tanto o recurso é tempestivo que o que se busca com o agravo interno (regimental) é a comprovação da existência do feriado local (que se faz documentalmente) e não a superação de um vício de intempestividade. Em um primeiro momento, porque não comprovado o feriado local, o recurso pode até parecer intempestivo, mas com a comprovação do feriado, o que se constata é que o recurso foi interposto no prazo legal, não havendo o que se falar em intempestividade.
Repita-se, o recurso nunca foi intempestivo, ele foi interposto dentro do prazo legal, carecendo, apenas, da comprovação da existência de feriado local. Não se está defendendo a sanação de vício formal de recurso intempestivo, que ao fim seria inócua (se o recurso é intempestivo sua forma se torna irrelevante), mas sim a possibilidade de complementação da documentação exigível (CPC 932, parágrafo único), a exemplo do que ocorre com o agravo de instrumento e com a ausência de comprovação do preparo no ato da interposição do recurso. Correção de vício formal, portanto.
Ao que parece, como o CPC-15 teve o condão de superar várias das denominadas jurisprudências defensivas do STJ, outras estão sendo buscadas para obstar o julgamento do mérito dos recursos, em total desatenção ao modelo constitucional do processo e ao direito que as partes têm de ver o mérito da demanda efetivamente julgado. O direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva não comporta subterfúgios ou obstáculos para a concessão da tutela jurídica (para o autor ou para o réu), daí a necessidade da sanação dos vícios processuais na busca da tutela jurisdicional, alicerçado no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.
Nem mesmo um enfrentamento correto das várias decisões existentes no próprio Superior Tribunal de Justiça que propugnavam a possibilidade da comprovação do feriado local em sede de agravo interno (regimental) foi realizado. Se se pretende superar um entendimento pacífico do tribunal, decerto o diálogo com as decisões pretéritas tem que ser travado, não bastando a afirmação, inclusive equivocada, de que o atual diploma processual excluiu a comprovação posterior da existência de feriado local do rol dos vícios sanáveis.
Apesar do imbróglio já instaurado e da existência dos dois julgados noticiados, a questão está submetida à Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no Agravo em Recurso Especial 957821/MS (Rel. Min. Raul Araújo), em que se iniciou o julgamento, e logo após o voto do relator, houve pedido de vista da Min. Nancy Andrighi.
Entendeu o relator que a orientação do novo CPC, desde o primeiro grau até a apreciação de recursos nos Tribunais Superiores, é no sentido de prestigiar o julgamento de mérito, o que não poderia ser diferente, não sem desprezar as normas do CPC-15 e fazer tábula rasa das mudanças instituídas pelo novo diploma processual que, aliás, têm égide constitucional.
Espera-se que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, enfrentando detidamente a questão, perceba que não há motivos para se afastar a possibilidade de sanação do vício da não comprovação de feriado local no ato da interposição do recurso e dê a correta interpretação ao art. 932, parágrafo único do CPC-15 ao caso, dando normatividade à primazia do julgamento do mérito, ao modelo comparticipativo de processo e interpretando o novo diploma à luz do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.
Notas e Referências:
[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 26
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