Na repartição de competências tributárias pela Constituição, conforme artigo 153, inciso VI, ficou a cargo da União a instituição do imposto sobre a propriedade territorial rural – ITR e, nos termos do artigo 156, inciso I, a cargo dos Municípios e Distrito Federal a instituição do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU.
Conforme preconiza o parágrafo 1º do artigo 32 do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66), cabe ao Município definir a sua zona urbana através de lei municipal, contudo somente poderá considerar como urbanas as áreas em que existam pelo menos dois dos melhoramentos previstos nos incisos de referido parágrafo, a saber: I – meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II – abastecimento de água; III – sistema de esgotos sanitários; IV – rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V – escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado.
Assim, a delimitação dos critérios espaciais do ITR e do IPTU parece estar muito clara na legislação: caso o imóvel esteja localizado dentro da região que o Município considera legalmente como “zona urbana”, a propriedade de referido imóvel estaria sujeita à incidência do IPTU, de competência municipal. No entanto, nos termos do artigo 29 do Código tributário Nacional, caso esteja localizado “fora da zona urbana do Município”, a propriedade do imóvel seria submetida à tributação pelo ITR, de competência federal.
Trata-se do que se convencionou chamar de “critério topográfico”[1], que indica a submissão ao ITR ou ao IPTU pela simples localização do imóvel.
Ocorreu que, no mesmo ano de 1966 foi publicado o Decreto-Lei nº 57/1966 que alterou uma série de regras acerca da apuração e arrecadação do ITR. Em seu artigo 15, estabeleceu que a previsão contida no artigo 32 do CTN (de que seria considerado como urbano o imóvel localizado na zona urbana definida pela lei municipal) não seria aplicável aos imóveis cuja destinação fosse exploração extrativa mineral, agrícola, pecuária ou agroindustrial:
Art 15. O disposto no art. 32 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, não abrange o imóvel de que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agro-industrial, incidindo assim, sôbre o mesmo, o ITR e demais tributos com o mesmo cobrados.
O regramento permaneceu desta forma durante os anos seguintes. Todavia, em 12 de dezembro de 1972 foi publicada a Lei nº 5.868 que, além de criar o Sistema Nacional de Cadastro Rural, através de seu artigo 12 revogava expressamente o artigo 15 do Decreto-Lei nº 57/66:
Art. 12 – Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, em especial os parágrafos 1 e 2 do Art. 5º , e os artigos 7, 11, 14 e 15, e seus parágrafos, do Decreto- lei número 57, de 18 de novembro de 1966, o parágrafo 4 do Art. 5º do Decreto-lei número 1.146, de 31 de dezembro de 1970, e o Art. 39 da Lei número 4.771, de 15 de setembro de 1965.
Em 1991, inconformado com a cobrança do IPTU, municipal e usualmente de alíquotas maiores, um contribuinte pessoa física impetrou Mandado de Segurança com o intuito de ver declarada a inconstitucionalidade da revogação do artigo 15 do Decreto-Lei nº 57/66 pelo artigo 12 da Lei nº 5.868/72.
Em suas alegações, defendeu que o referido dispositivo que estabeleceu o critério da destinação não poderia ser revogado por Lei Ordinária, no caso a Lei nº 5.868/72. Conforme esclareceu o STF no julgamento do Recurso Extraordinário interposto naqueles autos e que recebeu o número 140.773-5, tanto o CTN quanto o Decreto-Lei nº 57/66 foram recepcionados com status de Lei Complementar pela Constituição Federal de 1967:
- O Código Tributário Nacional dispôs sobre o sistema tributário nacional e instituiu normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios.
Assim, embora elaborado como Lei formal ordinária, com observância, portanto, do princípio da legalidade (Lei nº 5.172, de 25.10.1966), quando ainda vigente a C.F. de 1946, foi recebido pela C.F. de 1967 (art. 18 e 49, II) e pela E.C. nº 1/69 (arts. 18, §1º e 46, II), como verdadeira Lei Complementar […].
- Antes mesmo que o C.T.N. entrasse em vigor, o que ocorreu a 1º de janeiro de 1967 (art. 218), seu art. 32 foi alterado pelo art. 15 do Decreto-Lei nº 57, de 19.11.1966 […].[2]
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal entendeu, ao analisar a questão, que tanto o CTN quanto o Decreto-Lei que o modificou antes mesmo do início da sua vigência teriam sido recepcionados com status de lei complementar pela Constituição de 1967. E sendo assim, não poderia uma lei ordinária, no caso a Lei nº 5.868/72 revogar uma lei complementar que o é não apenas formalmente mas também materialmente (pois tanto o CTN quanto o mencionado DL tratariam de normas gerais de direito tributário).
Ao proferir seu voto no RE 140.773-5, o Relator Ministro Sydney Sanches concluiu que “é de se declarar, como fez o acórdão recorrido, a inconstitucionalidade do art. 12 da mesma Lei ordinária federal nº 5.868, de 12.12.1972, no ponto em que pretendeu revogar o art. 15 do Decreto-Lei nº 57, de 18.11.1966 […]”.
Referido Recurso Extraordinário foi julgado em 08/10/1998, tendo seu acórdão sido publicado em 21/10/1998. Como se tratava de recurso originário de mandado de segurança, seu efeito era apenas inter partes, o que gerou algumas discussões acerca da aplicabilidade ou não do critério da destinação em detrimento do critério topográfico.
Apenas sete anos depois, no ano de 2005, foi publicada a Resolução do Senado federal nº 9, publicada em 8 de junho de 2005, suspendendo a execução “do art. 12 da Lei Federal nº 5.868, de 12 de dezembro de 1972, no ponto em que revogou o art. 15 do Decreto-Lei Federal nº 57, de 18 de novembro de 1966, declaradas inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário nº 140.773-5/210 – SP.”
Por fim, para colocar uma pá-de-cal sobre a discussão, agora em termos de interpretação da legislação infraconstitucional, no ano de 2009 um Recurso Especial foi selecionado pelo e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo como representativo da controvérsia, qual seja, “sobre a incidência de IPTU sobre imóvel em que há exploração de atividade agrícola, à luz do Decreto-Lei 57/1966”.
Autuado sob o nº 1.112.646, o Recurso Especial foi julgado na sistemática do artigo 543-C do CPC de 1973, reconhecida a supremacia do critério da destinação do imóvel em detrimento do critério da localização:
TRIBUTÁRIO. IMÓVEL NA ÁREA URBANA. DESTINAÇÃO RURAL. IPTU. NÃO-INCIDÊNCIA. ART. 15 DO DL 57/1966. RECURSO REPETITIVO. ART. 543-C DO CPC.
- Não incide IPTU, mas ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do Município, desde que comprovadamente utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial (art. 15 do DL 57/1966).
- Recurso Especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ.
(REsp 1112646/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/08/2009, DJe 28/08/2009)
Conclui-se, portanto, que não obstante as tentativas de alteração pela Lei nº 5.868/72, a aplicação conjunta do artigo 32 do CTN e do artigo 15 do Decreto-Lei nº 57/1966 levam à interpretação de que o critério preponderante para a incidência do IPTU (de competência municipal) ou do ITR (de competência federal) não é a localização do imóvel mas, sim, a destinação conferida ao imóvel. Caso a destinação seja a exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial, deverá incidir o ITR e não o IPTU, ainda que o imóvel se localize na zona urbana do Município.
Notas e Referências:
[1] “[…]” segundo o Código Tributário Nacional, o IPTU só poderá incidir sobre o bem imóvel localizado na zona urbana do Município, prestigiando o critério da localização (topográfico) sobre a destinação do imóvel.” (CARNEIRO, Claudio. Impostos Federais, Estaduais e Municipais. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 520)
[2] RE 140.773-5
Imagem Ilustrativa do Post: America the Beautiful no. 2 // Foto de: Andrew Hernandez // Sem alterações
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